segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A IGREJA É TRANS PORQUE JESUS NUNCA DISSE NADA CONTRA ELAS

Congregação inclusiva recebe travestis e transexuais em reunião semanal com oração e roda de conversa.


Igreja recebe trans e travestis em reunião semanal

Igreja recebe trans e travestis em reunião semanal

 
Havia um lugar para Jacque Chanel em todas as igrejas pelas quais passou na vida. A parte de trás. Preferencialmente, onde ninguém notasse sua presença. Em que a porta da rua estivesse por perto, caso uma saída rápida fosse necessária. Não é que alguém a obrigasse a ficar lá, mas é que, no caso dela, chamar mais atenção do que o pastor era algo a se evitar. De comum, caso fosse percebida, seria chamada de possuída, de anomalia, de pomba-gira, de aberração e daí pra baixo. O pastor ali na frente pregava com louvor que todos eram aceitos naquela casa. Todos menos ela.

Transexual e evangélica, Jacque tem um histórico de rejeição que começou aos 13 anos de idade, quando sua mãe, em Belém do Pará, no norte do país, percebeu que ela não era um menino “comum” e resolveu deixá-la na porta de uma igreja evangélica para ver se ela endireitava. Lá, ela diz ter encontrado o amor de Deus e a intolerância dos homens. Depois de muito rejeitada, saiu da igreja, de casa e, pouco depois, veio dar em São Paulo, onde trabalha como cabeleireira. Isso é o que ela contava ao EL PAÍS, de forma bem resumida, omitindo a dor diária do relato, antes de fazer um círculo de oração que dá início ao encontro que ela organiza toda quarta-feira à noite para travestis transexuais.

Em um sobrado debaixo da via elevada apelidada de Minhocão, em um dos trechos mais degradados do centro de São Paulo, competindo com o barulho dos carros que passam praticamente na altura das janelas de vidro pichadas pelo lado de fora. Jacque se levanta e dá a mão ao grupo de cerca de 20 trans, gays e travestis. “Obrigado, Senhor, por ter nos reunido aqui hoje. Obrigado, Jesus Cristo, pelo milagre de nos ter deixado viver, porque ser trans e estar viva é um verdadeiro milagre”, prega enquanto algumas pessoas da roda fazem interjeições de “glória a Deus” e “amém”. Divulgado em 2015, um levantamento feito pela ONG Transgender Europe diz que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Por aqui, a expectativa de vida dessa população é de apenas 35 anos.
“Quando não são assassinadas, geralmente acontece alguma outra fatalidade”, disse a ativista Rafaela Damasceno em entrevista recente à Agencia Brasil. Quem participa do encontro com Jacque sabe bem disso. Não à toa, depois da curta oração, é hora de falar, desabafar, em uma conversa conduzida por um psicólogo voluntário. Depois ainda virá mais uma reflexão de um texto bíblico e, por fim, um jantar preparado pela própria Jacque. Tudo acontece ali no sobrado, sede administrativa da Congregação Cristã Nova Esperança (CCNE), uma igreja inclusiva – que não faz distinção de gênero para aceitar fiéis e pastores –, da qual o encontro semanal das transexuais faz parte. Oração encerrada, o tema da conversa da noite não podia ser mais simbólico: identidade.
O papo começa com um desabafo da Evelyn, de 45 anos, que diz estar tendo muita dificuldade para colocar seu nome social – o feminino – em seus documentos. Todas concordam que, apesar de estar na lei, essa é uma luta diária. “O que a gente ouve o dia todo é ‘não’”, dizem. Segundo elas, o único órgão que não traz dificuldades nesse caso é o SUS. Muitas vezes só essa carteirinha tem a identidade com que elas se reconhecem. Amanda, de 27 anos, emenda dizendo que, como o que está impresso na carteira de trabalho é uma coisa e a realidade é outra, o único jeito de conseguir um emprego é se fantasiando de homem. “O problema é que a partir de certo ponto da nossa transformação, fica impossível fingir que é ‘bofinho’. Aí o pessoal fica: ‘que treco é esse? é um sapatão?”, brinca para a gargalhada geral.
“Esse encontro não é um culto evangélico fundamentalista, não esperamos converter ninguém, nem impor nada. Isso aqui é uma porta de entrada para a possibilidade de uma vida mais digna. A parte espiritual existe, mas só se aprofunda quem quer”, diz Jacque. Ao menos cinco das participantes daquela noite dizem ser espíritas ou de religiões afro-brasileiras e não ter interesse imediato no cristianismo. “A oração que faço no início é ecumênica, eu sou evangélica, mas não espero isso delas”, completa. Já no final da roda de conversa, Simone, 40 anos, pede a palavra para dizer que nem mesmo novos documentos fazem com que as pessoas respeitam quem ela é.
Jacque Chanel durante a reunião 
BRUNO FUJII
“Eu sou evangélica e quando ia à igreja, o pastor olhava pra mim e chamava o ‘irmão Fábio’ para orar lá na frente. Quem é o irmão Fábio? Ah, é! Sou eu. Como pode? Olha pra mim: peito, bunda e cabelo comprido!”, diz Simone. E por que ela continuava indo? “Por que eu sentia que Deus estava ali. Ele está em outros lugares, mas lá era o lugar de eu encontrar com Ele”. Em momentos como esse, em que o assunto sexualidade e religião emergem naturalmente na conversa, Jacque aproveita para sugerir: “Pois não vá mais lá, eles nunca vão te aceitar. Você pode vir aos cultos religiosos da CCNE”.
A “Igreja Trans”, como tem ficado conhecido o encontro semanal de Jacque na região, é, na verdade, o Ministério Séforas, um dos braços da CCNE – só uma das várias igrejas inclusivas que têm surgido no Brasil nos últimos dez anos. A congregação independente, a exemplo de muitas outras do seu tipo, não se diz propriamente dita evangélica, mas segue a liturgia pentecostal com cantos gospels, louvores a Deus e sermões. Em um culto regular de domingo, um desavisado demoraria a perceber que aquela igreja não é como a maioria: só se atentando aos casais homoafetivos abraçados nos bancos é que notaria a diferença. Em tempos em que muitas igrejas adotaram o discurso da “cura gay”, tratando a diversidade sexual como anomalia, tem sido em espaços como esses que a população LGBT tem conseguido expressar sua espiritualidade cristã livremente. Afora as inclusivas há duas possibilidades hoje: ocultar a identidade de gênero ou deixar os bancos da igreja.
“Nós não somos uma coisa para se olhar com curiosidade, somos uma realidade que tem aumentado cada vez mais. Fomos criados à imagem e semelhança de Deus e também temos o direito de viver em comunhão com Ele, o texto bíblico não pode ser lido do mesmo jeito que era lido séculos atrás. Jesus nunca disse nada contra nós”, diz o pastor homossexual Justino, fundador da CCNE. Hoje a congregação está em 20 cidades, e já tem uma sede internacional, em Piza, na Itália, onde a pastora é uma transexual. Justino estima que atualmente a igreja tenha cerca de cinco mil fiéis. Para o antropólogo e professor da USP, Marcelo Natividade, “não é possível quantificar o número de seguidores das inclusivas, mas um dado importante é que em só 10 anos já é possível dizer que toda capital brasileira tem uma dessas”.
"Eu sou evangélica e quando ia à igreja, o pastor olhava pra mim e chamava o 'irmão Fábio' para orar lá na frente. Quem é o irmão Fábio? Ah, é! Sou eu. Como pode? Olha pra mim: peito, bunda e cabelo comprido!"
Se novas igrejas inclusivas não param de surgir, Natividade também aponta para movimentos de líderes religiosos que podem mostrar que elas já foram notadas: “Recentemente o bispo Edir Macedo disse que ele não poderia julgar um homossexual, que seria necessário olhar a questão com os olhos de Jesus”. O antropólogo também lembra que o papa Francisco disse em pronunciamento que os cristãos devem “desculpas aos homossexuais”. Uma pesquisa recente, realizada pelo coletivo Vote LGBT, mostrou que metade da Parada LGBT 2016, de São Paulo, identificou-se como cristã. Não é que a vida da população LGBT esteja fácil, mas lentas mudanças de comportamento sobre a questão são notadas. A realidade de gays e lésbicas, contudo, é bem diferente das travestis e transexuais que frequentam as reuniões de Jacque. Sem dúvida, elas são a minoria nos cultos das igrejas inclusivas.
Igrejas não deixam de ser igrejas, de ter dogmas, e a monogamia e o discurso contrário à prostituição são duas coisas muito enraizadas, inclusive nas congregações inclusivas”, diz Natividade. É uma contradição. Se, um dia andando pela rua Major Sertório, zona de prostituição de travestis e trans, o pastor Justino se deu conta de seu próprio preconceito e resolveu abrir as portas para Jacque e suas reuniões, ele continua abordando o adultério em muitos de seus sermões e se orgulha de que, no ano passado, apenas um casal da congregação se separou. “Como muitas trans e travestis vivem de prostituição, o discurso dogmático vira um impedimento para elas”, comenta o professor da USP.
À frente do Ministério Séforas, que além dos encontros semanais também realiza um sarau cultural bimestral com performances gospel e ecumênicas, Jacque diz que seu trabalho é ser uma porta para um momento de acolhida. “Onde essa porta levará, pouco importa. O que eu não posso é tornar a vida delas, que têm dificuldade até para serem chamadas pelo nome certo, ainda mais difícil”, diz. Com o Ministério, ela já ganhou quatro prêmios e tem recebido cada vez mais pessoas. “O público é muito rotativo, mas sempre tem as que voltam mais vezes, algumas vão para a igreja, outras não”.
A localização da sede da CCNE, entre as regiões da República e Santa Cecília, diz muito sobre quem vai aos encontros do Séforas. O barulho constante dos ônibus e carros que interrompe pensamentos; a penumbra da entrada do sobrado; a prostituição e o tráfico de drogas nas ruas da região; os pilares sujos e crus que sustentam a pista elevada do Minhocão – verdadeira cicatriz aberta separando bairros prósperos do centro degradado da cidade. É nesse cenário que todas as quartas-feiras as transexuais vão atrás de acolhimento e, quem sabe, de algo que possam chamar de Deus.
Depois da roda de conversa, em que a conclusão fundamental foi que o processo de reconhecimento da identidade das transexuais talvez não seja concluído na geração delas, o clima foi de descontração no jantar. Enquanto Jacque serve macarrão com frango, preparado na cozinha do Centro de Referência da Diversidade de São Paulo, a alguns quarteirões do sobrado, algumas trans pedem mais informações sobre os encontros, sobre os cultos da CCNE, sobre como tirar documentos. Já na calçada, quando todos começam a ir embora, Simone, a mesma que foi insistentemente chamada de “irmão Fábio” por seu antigo pastor, diz com um abraço ao repórter: “Se quiser, você pode voltar sempre, querido. Aqui todos são aceitos”.
Disponível em:  http://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/15/politica/1468609991_896571.html?rel=cx_articulo#cxrecs_s

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