“Os militares diziam que a tortura não passa nunca. Eles
tinham razão. A marca não sai, seja no corpo, seja na cabeça.” Aos 68
anos, a jornalista Rose Nogueira ainda se preocupa se o filho Cacá, de
45, está passando frio. Ainda acorda no meio da noite com pesadelos em
que acredita estar sendo perseguida. E, depois de passar nove meses
presa, entre os anos de 1969 e 1970, não conseguiu engravidar novamente.
O relato dela é um dos que compõem o relatório da Comissão Nacional da Verdade, documento divulgado na última semana
que ajudou a apontar e esclarecer crimes cometidos durante a ditadura
militar. Na última sexta-feira, ela voltou com a reportagem do EL PAÍS
ao local onde foi torturada: a sede do antigo Departamento de Ordem
Política e Social (Dops), que hoje abriga o Memorial da Resistência de São Paulo, um museu sobre os graves crimes cometidos pela repressão do regime.
“As celas onde eu fiquei já não existem mais”, aponta ela,
enquanto caminha pelo corredor onde estão reproduzidas três celas
daquele período. Ao começar a contar sua história, chama a atenção do
público da exposição, que se aglomera para ouvir parte dos relatos.
Chora ao se lembrar das torturas que presenciou e é abraçada por uma
mulher, que não a conhece, mas se solidariza. Mesmo após ter visitado o
local inúmeras vezes, ainda se emociona muito ao lembrar do que viveu.
“Quando cheguei, no dia 4 de novembro de 1969, ainda estava
amamentando. Cacá tinha 33 dias. Eu tinha passado 20 dias no hospital
porque sofri uma ruptura da bexiga durante o parto. Sangrava muito e
tinha apenas uma calcinha, sem absorvente. Na cela não tinha chuveiro,
só uma pia. Só me deixaram tomar banho um mês depois. Eu fedia a leite
azedo”, conta ela, que foi presa ao lado do então marido Luiz Roberto
Clauset por emprestar sua casa para o encontro de membros da Ação
Libertadora Nacional (ALN), entre eles o líder Carlos Marighella. “A
gente era cururu [militante de menor importância na
organização]. Eles queriam saber quem mais a gente conhecia. Naquele dia
tocou o telefone na delegacia e alguém gritou: ‘ele entrou!’. Os
policiais saíram correndo, agarraram um monte de arma, mandaram a gente
descer pras celas. Mais tarde voltaram gritando: ‘matamos o chefe!’”,
conta ela. O chefe, no caso, era Marighella, morto em uma emboscada no
próprio dia 4. “Ninguém acreditou. Mas aí chegou a fotógrafa Makiko
Kishi, que tinha sido presa ao fotografar o corpo dele, que confirmou a
informação.”
Rose ficou no Dops por 50 dias. A todo momento ouvia dos
policiais que buscariam seu filho recém-nascido para torturá-lo. Teve
uma infecção que só foi tratada tarde, motivo pelo qual desconfia nunca
mais ter podido engravidar. Bonita, foi apelidada pelos guardas de Miss
Brasil. “Diziam: acabou de ter um filho e como tem esse corpo? É uma
vaca. Uma vaca terrorista”, lembra. Assim como muitas outras mulheres
que passaram pelo Dops, foi violentada. Por diversas vezes foi colocada
em uma sala e despida. “O [policial João Carlos] Tralli me colocava
debruçada e enfiava o dedo em mim. E como eu estava fedida por causa do
leite ele me beliscava, me batia, por eu atrapalhar o prazer dele.”
Algum tempo depois, um médico aplicou nela uma injeção que cortou o
leite.
Depois do Dops, a jornalista foi levada para o presídio
Tiradentes, onde dividiu cela com a presidenta Dilma Rousseff (PT), uma
“jovem estudiosa e inteligente”. Ficou lá por sete meses. Um dia recebeu
um telefonema: o padrasto, por quem foi criada desde criança, tinha
morrido. “Não tive coragem de ir ao enterro algemada, com escolta
policial. Era uma humilhação enorme”, relata. “Quando eu saí, meu filho
tinha dez meses. Foi quando comecei a conhecê-lo melhor”.
Ao lado de seu grupo da ALN, só foi julgada dois anos depois
e acabou absolvida, ao lado de vários militantes. “Só que todas as
pessoas tinham tido a vida destroçada. Mesmo sem ter sido condenados, já
tinham sido. Já tinham cumprido pena”. No dia em que voltou ao trabalho
após o julgamento, numa revista técnica de construção, foi avisada da
demissão pelo porteiro, ainda na calçada do prédio. “Ele me disse que
tinham me visto na imprensa, que eu era uma terrorista e que colocava
todo mundo ali em perigo”, relembra.
Logo depois, conseguiu um emprego na TV Cultura,
onde trabalhou com o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo
da emissora. “Tudo o que eu aprendi sobre televisão foi ele quem me
ensinou”. O grupo conseguia fazer um jornal mais progressista para a
época, apesar da censura. Até chamar a atenção dos ditadores. “Um dia, Vlado
chamou todo mundo da equipe, disse que a polícia estava na casa dele e
que ele tinha decidido se apresentar. Fui para a casa apavorada. No
outro dia, à noite, era um sábado. Dois funcionários da TV bateram em
casa para dizer que ele havia se suicidado na cadeia”, conta ela,
emocionada. Apenas em 15 de março do ano passado é que a família dele
conseguiu ter um atestado de óbito onde constava a informação
verdadeira: ele foi assassinado pelos militares durante o
interrogatório.
Dentre as marcas que ficaram em Rose após esse período, há
algo de positivo. “Saí com a necessidade de luta. Desde que deixei a
prisão, decidi que tinha a obrigação de defender os direitos humanos”,
diz ela, que após o fim da ditadura presidiu o grupo Tortura Nunca Mais,
que luta contra as violações de direitos humanos, e o Conselho Estadual
de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (Condepe).
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/14/politica/1418512628_738857.html?%3Fid_externo_rsoc=FB_BR_CM
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