Marcos Tiaraju conversou com a reportagem durante a parada da Caravana
de Lula em Pontão, terra da Fazenda Annoni, onde sua mãe foi morta
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Luís Eduardo Gomes
Em 31 de outubro de 1985 nascia na Fazenda Annoni, um latifúndio de 9
mil hectares ocupado dois dias antes por pelo menos 1,5 mil famílias do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o primeiro bebê a vir ao
mundo em um assentamento do MST no Brasil. Diante de todo simbolismo que
aquela ocupação e aquele nascimento significavam para o movimento, o
nome dele não seria definido por pai e mãe, mas pelo voto das famílias
daquela comunidade que se formava. A escolha foi homenagear um guerreiro
que havia lutado contra impérios pela preservação de seu território em
um Rio Grande do Sul ancestral e cujo nome significava “raio de luz” em
guarani: Marcos Tiaraju.
Hoje, aos 32 anos, o filho de Roseli Seleste Nunes da Silva e José
Correa da Silva é um dos 10 médicos que atuam pelo MST no Estado. Nas
últimas semanas, percorreu milhares de quilômetros e visitou mais de 20
cidades acompanhando a caravana do ex-presidente Lula pela região Sul.
O filho de Rose
A ocupação da Fazenda Annoni, à época pertencente ao município de
Ronda Alta – hoje, Pontão -, no noroeste do Estado, era algo que jamais
tinha se visto. Logo em seus primeiros dias, chegou a abrigar 7,5 mil
pessoas. Era uma demonstração de força de um movimento que havia
conseguido organizar, nacionalmente, a luta pela terra, que,
historicamente no Brasil, ocorria de forma isolada.
O cenário chamou a atenção da documentarista carioca Tetê Moraes, que
resolveu contar essa história, costurando-a pela narrativa de uma
mulher, uma liderança sem terra, que chegara ao local no dia da ocupação
com o marido e os dois filhos, uma menina de quatro anos e um menino de
quase dois, grávida e prestes a dar à luz. Roseli Nunes daria nome ao
documentário “Terra para Rose”, lançado em 1987.
Roseli Nunes
Rose, mesmo com três filhos pequenos, cumpriria o papel de organizar a
luta, o que a levou a estar, no dia 31 de março de 1987 – 31 anos
completados ontem -, em um trevo de acesso à cidade de Sarandi, na
BR-386, junto com outros integrantes do movimento e um grupo de pequenos
agricultores que compartilhava o anseio por melhores condições para
plantar. Ali, ela e outros 13 pessoas seriam atropeladas por um caminhão
de uma empresa agrícola carregado com barras de ferros. Aos 33 anos,
morreria, juntamente com Vitalino Antonio Mori, 32, e Iari Grosseli, 23.
Em junho de 1988, a CPI da Violência da Assembleia Legislativa,
presidida pelo então deputado estadual Adão Pretto (PT), que ajudara a
fundar o MST no Estado, concluiria que não se tratava de um acidente,
mas de um crime acidental. A perícia apontou que, a 400m de distância de
onde ocorria a manifestação, o motorista já tinha visibilidade e,
portando, tempo hábil para frear e parar o caminhão. Ninguém seria
preso, mas a empresa proprietária do caminhão seria condenada a
indenizar as famílias das vítimas.
Coube a José criar Marcos, então com 1 ano e meio, e os irmãos, com 6
e 3 anos. Um homem que junto com a esposa havia tentado trabalhar no
campo em Ronda Alta e Rondinha, mas sem nunca ter tido casa própria. Com
três filhos pequenos, decidiu tomar o ruma da cidade. Em Sarandi,
começou a trabalhar como pintor. Pintava casas para sustentar a família.
Mas essa era uma lida difícil. No verão, havia emprego. Quando as
chuvas e o frio tomavam conta do noroeste do Estado, o emprego minguava.
Faltava dinheiro e alimento na mesa. Vendo os filhos revirarem o lixo
em busca de comida, foi obrigado a migrar pela região.
Foi nesse contexto que Tetê Moraes voltaria a encontrar a família
para continuar a contar a história do movimento, mais uma vez pelos
olhos de Rose, dando origem a um novo documentário que viria a se chamar
“O Sonho de Rose”. “Ela nos encontra nessa realidade no município de
Rondinha. Em condições bastante precárias do ponto de vista social,
econômico”, conta Marcos, que na época tinha entre 10 e 11 anos. “O nome
da minha mãe acabou sintetizando aquela luta que era de várias
mulheres, de várias famílias, várias Roses e vários Josés. E, quando ela
nos encontra, naquela realidade, o documentário ajuda a estimular um
debate dentro do movimento sem terra de que era necessário que a família
da Roseli Nunes, que iniciou o processo de luta pela terra, que morreu,
que deu a vida por essa causa e que não conseguiu acesso à terra,
também cumprisse o sonho de Rose.”
E assim José e os filhos voltariam a conviver com o movimento. Em
1998, ele e o filho mais velho haviam migrada para Porto Alegre em busca
de melhores condições de trabalho, ainda atuando como pintor. Marcos
ficara em Rondinha, junto com a madrasta, para terminar a 7ª série e à
espera de uma notícia de que a vida do pai melhorara. O que veio, em
1999, foi um pequeno pedaço de terra em um assentamento do MST em
Viamão. Adolescente e ainda no colégio, Marcos não teria um local
propício para ficar. “Então, uma família me convidou para morar no
assentamento de Nova Santa Rita. É o primeiro contato que eu venho a ter
com um assentamento, com 14 anos. Eu nasci num acampamento, minha mãe
perdeu a vida na luta pela terra, porém até os meus 14 anos era uma
história que em casa não se comentava. Talvez pelo trauma, pela dor da
lembrança, meu pai também não comentava sobre isso. Então eu venho a
conhecer as minhas origens aos 14 anos.”
Por outro lado, todos os conheciam. Era o Marquinhos, o Tiarajuzinho,
o filho de Rose, sem ainda entender direito o que aquilo
significava. Ao mesmo tempo em que começava a tomar parte da luta pela
reforma agrária, Marcos também passou a buscar informações sobre a sua
história e sua mãe, sobre a qual aquelas pessoas sabiam mais do que ele.
Foi assim que passou a entender que Rose não tinha sido acometida por
uma fatalidade. “A minha mãe não havia simplesmente falecido, ela havia
sido morta, assassinada”. Marcos conta que sentiu uma mistura de raiva,
tristeza e revolta quando finalmente conheceu a história de sua mãe.
Sentimentos que transformou em vontade de saber mais, conhecer mais da
realidade que poderia ter sido a sua desde criança.
“Ao chegar em Nova Santa Rita, ver como era a vida de quem morava
nesse assentamento e comparar com a minha, que morava na vila, ao
escutar as pessoas falando de como a minha mãe era, que era uma
liderança, que era uma mulher à frente do tempo dela, que puxava as
outras mulheres, que era respeitada, que lutava, que foi morta, aí eu
comecei a fazer a ligação e entender que a morte dela não era
simplesmente um falecimento, era um assassinato decorrente de um
processo de luta de classes. Então, aquela raiva, aquela tristeza,
aquela revolta foram se convertendo em combustível para a minha decisão
de que aquele era o caminho que eu queria seguir para mim e para minha
família mudar de vida. E, me veio a compreensão que, se essas famílias
hoje conseguem estender a mão para eu vir morar no assentamento, é
porque elas fizeram um processo de luta e não esqueceram dos que ainda
não conquistaram a terra. Aí vem a segunda compreensão, eu não posso
lutar só por mim, só pela minha família, mas eu tenho que entrar nesse
processo de luta pela transformação da sociedade”, relata Marcos.
E foi assim que o primeiro bebê nascido em um assentamento do MST,
aos 14 anos, passava a militar no movimento, participando de
acampamentos, ocupações de terra, marchas, protestos.
Tornando-se médico em Cuba
A chegada de Marcos Tiaraju à militância ocorre num momento em que o
MST começa a se transformar – mudança que se acentuaria a partir do
governo Lula. Se no princípio o movimento era uma coalizão de pessoas
que não tinham propriedade alguma e lutavam pela reforma agrária, agora
já possuíam acampamentos, se organizavam em assentamentos. A luta
passava a ser a de conquistar melhores condições de vida para as
famílias assentadas – acesso à moradia, saúde, escola, sementes,
crédito, estradas, formas de escoamento da produção, etc. – e construir
um modelo novo de sociedade. “O MST com o tempo vai aprendendo, vai
crescendo em consciência social, em consciência política, em consciência
organizativa e vai surgindo esse terceiro elemento, que é o da
transformação da sociedade. A conquista pela terra não era mais o
capítulo final da história”, diz Marcos, ressalvando, porém, que a luta
pela reforma agrária ainda está longe de terminar.
Foi nesse contexto que Marcos partiu, em 2 de maio de 2005, junto com
milhares de outros membros do MST, em uma marcha de Goiânia (GO) a
Brasília (DF) para cobrar do governo Lula maior celeridade na
distribuição de terras e melhorias nos assentamentos que duraria 17
dias. Quando a marcha já batia às portas da Capital Federal, em uma data
que não recorda com exatidão, um companheiro do movimento visita a sua
barraca à meia-noite para lhe avisar que Cuba estava oferecendo uma vaga
ao movimento no curso de Medicina criado para abrigar jovens de países
pobres no mundo e que, por decisão da coordenação do movimento, a vaga
era dele, se assim quisesse. Marcos, que nunca tinha pensado em ser
médico na vida, tinha até as 7h da manhã seguinte para decidir se
tomaria o rumo da ilha caribenha dali a seis dias.
“Eu nunca sonhei em ser médico, porque não fazia parte da minha
realidade. A minha cabeça, e a de todos os jovens, pensava de acordo com
o local onde os pés estavam pisando. A minha realidade era
assentamento, acampamento, luta pela terra”, conta. “Eu pensei: ‘Como é
que o médico se encaixa nesse negócio? Eu não sabia de Medicina, era um
jovem de 19 anos. Mas sabia que o médico cura, não deixa a pessoa
morrer. Se ele não deixa a pessoa morrer, então ele também defende a
vida. Então, se como ser humano eu quero me dedicar a salvar vidas,
lutando por melhorias materiais na vida dessas pessoas e está surgindo a
oportunidade de estudar, me qualificar, para salvar vidas também de
outra forma e eu entendo que buscar o conhecimento é importante, eu
digo: ‘Eu vou estudar Medicina'”.
Em Cuba, Marcos conheceu uma sociedade que, por um lado, havia
alcançado educação e saúde públicas universais e de qualidade – uma
realidade ainda distante no Brasil de hoje. Por outro, vivenciou as
dificuldades materiais de um país que, há décadas, está mergulhado em um
regime sob embargo econômico dos Estados Unidos e uma democracia com
liberdades restritas.
Percebeu que as pessoas mais velhas, que haviam vivido sob a ditadura
de Fulgêncio Batista, eram defensoras do regime castrista porque haviam
vivenciado uma profunda transformação material de qualidade de vida. Já
os jovens, queriam ter direito a outras coisas. Se no princípio via
esses críticos do regime como contrarrevolucionários, como ‘gusanos’
(vermes, na tradução do espanhol), a partir da metade de sua estadia
passou a compreender que eles não queriam destruir as conquistas da
revolução cubana, mas sim avançar. “Eu entendi que, por mais que as
melhorias sociais venham, por mais que as conquistas venham, a geração
que nasce com aquilo conquistado em algum momento não vai se contentar
com aquilo, vai querer chegar mais longe”.
O mesmo que ele acabaria vendo dentro do próprio movimento sem terra.
Afinal, se tinha sido o primeiro a nascer em um assentamento, fora
seguido por milhares. “Meu pai trabalhou como pintor uma época da vida,
foi sem terra, agricultor, assentado e hoje o filho dele é médico. Você
vê que aquilo que no início bastava para os meus pais, para minha
geração já não é suficiente, nós queremos e podemos chegar mais longe, e
temos direito a isso, então eu compreendo os jovens cubanos nessa
lógica, de que eles querem chegar mais longe porque é natural do ser
humano querer progredir”.
No entanto, entende que é preciso fazer uma separação entre querer
ter acesso a mais coisas e progredir como resultado de um processo de
luta coletiva, em que há um direito a ser conquistado. “A maioria das
pessoas quer ser alguém na vida, ter acesso a coisas materiais, quer
estudar. Nós também queremos, mas não é só isso, queremos avançar em
conjunto, queremos debater com a sociedade, queremos melhoria para
todos”.
Marcos se formou em 2012, mesmo ano em que foi aprovado no Revalida.
Em 2013, se apresentou ao MST com o diploma e apto para exercer medicina
no Brasil. Por decisão do movimento, retorna à Nova Santa Rita e se
soma a outros nove médicos do movimento, colocando-se à disposição para
atuar em acampamentos, assentamentos e nas demais atividades do
movimento, como o acompanhamento médico de marchas, protestos, etc. E é
assim a sua trajetória se cruza com a do ex-presidente Lula. Neste março
de 2018, foi escalado para participar como auxílio médico da caravana
pelo Sul do País.
A caravana e a luta política
Militante em diversas atividades do MST e supervisor acadêmico do
programa Mais Médicos ligado à Universidade Federal da Fronteira Sul,
Marcos já havia participado de eventos com os ex-presidentes Lula e
Dilma. Mas desta vez coube a ele cumprir uma tarefa política, que
entende como a defesa do direito de o ex-presidente concorrer novamente
ao cargo.
“É uma obrigação moral com o governo que mais fez a defesa da vida,
que mais deu moradia, que mais permitiu que jovens pobres como eu
pudessem acessar a universidade, que permitiu às pessoas comerem três
vezes ao dia, que permitiu que as pessoas pudessem sonhar com uma vida
melhor e, portanto, ter vida de verdade. Não tem como eu não me
comprometer a ajudar. Então, vim para a atividade assumir a tarefa
delegada a mim pelo MST e pela Frente Brasil Popular”.
Marcos vê no processo jurídico contra Lula um mesmo movimento que
acostumou-se a ver contra o MST, isto é, um processo acompanhado de uma
campanha midiática de criminalização, de disseminação de histórias
negativas. “Criaram uma história, inventaram fatos para desmoralizar,
que é o que fizeram a vida inteira com o nosso movimento. Baderneiros,
vagabundos, pegam as terras para vender, um bando de bêbados, só querem
roubar, uma série de coisas negativas. Mas não se fala que a maior
produção de arroz orgânico da América Latina é no assentamento de
Viamão, do MST; que as áreas de proteção ambiental de maior envergadura
são nas áreas de assentamento; que as áreas onde se faz um debate para
não usar veneno, para não usar agrotóxicos para não agredir o meio
ambiente, para ter um desenvolvimento sustentável, estão nos
assentamentos”.
Morando em Sério, um pequeno município no Vale do Taquari, interior
do RS, com a mulher Karen, costarriquenha também formada em Medicina em
Cuba, e a filha de 1 ano e 3 meses do casal, Bianca Seleste – uma
homenagem à Rose -,Marcos segue à disposição do movimento.
“Se hoje eu tenho essa história, não é graças a mim, não é porque eu
sou mais inteligente, porque eu sou mais bonito. Eu não queria ter
perdido minha mãe, eu preferia que ela estivesse viva. Eu não pedi para
ser médico, a história me delegou isso. Nós não determinamos o
surgimento da revolução cubana, mas ela surgiu e pensou em formar
médicos pobres. Então, a história foi evoluindo de uma maneira que me
colocou nesse caminho. Há alguns meses, essa tarefa da caravana não
existia. Mais uma vez a história cobra uma atitude e me coloca nessa
situação. O que vem depois? Não será decisão minha, estou à disposição
do grupo social ao qual pertenço, que é o grupo dos pobres, apesar de
ser médico, dos sem terra, apesar de já ser assentado, por uma
consciência social e não por uma condição social”.
Disponível em: https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2018/04/marcos-tiaraju-1-bebe-nascido-em-um-acampamento-do-mst-e-medico-formado-em-cuba/?utm_source=facebook&utm_campaign=sul21
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