"Pergunto-me, então: é idolatria respeitar de modo indiscutível as
interpretações particulares dos princípios de liberdade e igualdade? É
a Igreja, na pessoa de Francisco, que deve assumir para si a tarefa
de dessacralizar a modernidade?", escreve Emilce Cuda, teóloga
em Buenos Aires, dirige o Programa para o estudo da cultura na
Universidade Arturo Jauretche e ensina na Faculdade de Teologia da
Pontifícia Universidade Católica e da Faculdade de Letras da
Universidade de Buenos Aires, em texto publicado por Avvenire. A tradução de Luisa Rabolini.
Abaixo segue trechos do seu novo ensaio: "Ler Francisco. Teologia, Ética e Política", ed. Bollati Boringhieri, com prefácio de Juan Carlos Scannone.
Eis o texto.
É palavra profética, a de Francisco.
Palavra que "cheira a ovelhas" e militância. Palavra que é saudade
tangueira de um paraíso perdido, com uma mistura de euforia
futebolística por uma esperança escatológica; fórmula insólita, a de um
portenho que coloca tão perto o céu e o inferno para mostrar possível o
primeiro e tornar o outro visível. Palavra com que, em uma noite romana,
sem querer, nivelaram-se os destinos dos que estão acima e dos que
estão abaixo, dos depois e dos aindas. Palavra que arrasta atrás de si um mar imenso, das lutas, das conquistas e das derrotas de um povo, que é todos os povos, com os seus vivos e os seus mortos, seus amigos e seus inimigos. Palavra que parece a última voz do planeta e desmascara o demônio, escondido atrás de um capitalismo desumanizado; religião opaca, aquela do consumo. Palavra de pastor com fundamento teológico e pulso político.
Palavra que, como em um tango, faz-nos conhecer hoje o que sabíamos
ontem, o Evangelho de Jesus, o Cristo, para o qual todos são pessoas,
especialmente os pobres,
dignos de uma vida boa em abundância e alegria, aqui e agora, e não de
refugos do sistema. Essa palavra prega unidade na diferença, a união sem
a confusão.
O discurso pontifício do atual papa latino-americano tende a desmascarar as causas da pobreza,
dessacralizando aquelas estruturas injustas que foram, ao contrário,
divinizadas e desnaturalizando processos que na realidade são
históricos. Um gesto desse porte feito por um dos sucessores de Pedro,
leva os estudiosos e a imprensa internacional a centrar a sua atenção
sobre o pensamento teológico e político argentino. Mas quanto há de argentino no discurso de Francisco? Muito, se considerarmos a sua denúncia política sem desculpas. A atitude profética
- na pessoa de um pontífice - faz com que o mundo, teológico e não, se
pergunte de novo, e desta vez de forma interdisciplinar: é legítimo
falar hoje de teologia e de política, de teologia política e de ética teológica? O discurso de Francisco não parece ser apenas uma crítica escrita entre quatro paredes, porque exorta abertamente a uma conversão estrutural, social e política, como produto de uma praxe cultural encarnada, ou seja, envolvida nas tensões do presente. Seu discurso convida a tomar o caminho do exílio de uma cultura da morte e da tristeza para uma cultura da vida e da alegria. Quanto pode ser eficaz similar exortação para um público não-católico, não-crente e não-politizado?
À primeira vista, podemos ver que, ao longo dos últimos três anos, todos os dias pode ser registrada a presença de Francisco nas manchetes dos jornais ao redor do mundo todo. Logo após o triunfo da modernidade e seu liberalismo laico, que em muitos casos, tornou-se anticatólico,
assistimos com assombro a esse espetáculo inesperado: um papa faz
notícia, porque o papa é a notícia. Parece então que a voz do pastor não
prega mais no deserto. Sua palavra é ouvida e levada em conta pelos governos laicos
de quase todos os países do mundo e, em alguns casos, até mesmo temida,
porque com ela se mede a opinião pública que os legitima [...].
Antes mesmo de nos perguntarmos se o discurso do Papa é teológico ou político, sem desdenhar as duas práticas como faria um reducionismo simplista que divide a realidade em bons e maus, observamos que a crítica do pontífice aos fundamentos políticos de estruturas sociais injustas tem prioritariamente o objetivo de "dessacralizá-las". A dessacralização é primariamente uma função teológica antes que filosófica ou política. Mesmo se o Papa assume posição nos conflitos políticos,
lendo a realidade como um texto na busca de destacar as incoerências, e
tornando audível e visível a exigência de justiça por parte do irmão -
como acontece entre Caim e Abel no Gênesis -, não por isso acredita que
os fundamentos políticos sejam transcendentes - como pretendia afirmar a
modernidade – mas imanentes. Quando os princípios
políticos imanentes são apresentados como transcendentes, necessários,
invioláveis acabam sendo divinizados, eles tomam o lugar de Deus e geram
novas religiões: o caso da relação entre capitalismo e consumo, alvo de críticas ostensivas do pontífice.
Pergunto-me, então: é idolatria respeitar de modo indiscutível as interpretações particulares dos princípios de liberdade e igualdade? É a Igreja, na pessoa de Francisco, que deve assumir para si a tarefa de dessacralizar a modernidade? Não seria uma tarefa já enfrentada por Bento XVI em seus famosos debates com Jürgen Habermas e com Paolo Flores D'Arcais? Francisco insere-se um debate que faz uso da terminologia marcado por um sistema desumanizado,
ou institui novas categorias nesse debate, substituindo "igualdade" por
"pessoas", "liberdade" por "trabalho" e "justiça" por "misericórdia" ?
Reconhecer a prioridade de misericórdia sobre a justiça é o exemplo mais evidente da palavra soberana de Francisco que, embora não seja teológica, nem por isso parece ser menos política. A misericórdia é algo diferente da justiça,
ou é uma maneira diferente de entender a justiça, ou seja, não como
sistema de retribuição dos méritos adquiridos, mas como sistema
distributivo e de compensação, com o entendimento que as necessidades
geram diferenças sociais e culturais, e que a tentação é mais uma causa do mal quando se divide e se julga? Dessa forma, o conflito social deixa de ser a território exclusivo da sociologia e da política, e também se torna território legítimo da teologia, em um plano diferente, mas não menos envolvente, “façam barulho”, conclama Francisco, tenham o “cheiro das ovelhas”. Como defende Juan Carlos Scannone, encontramo-nos com o Papa Francisco diante do surgimento de um novo paradigma, a partir do qual se critica o paradigma atual. A visão trinitária de Deus opõe-se, portanto, à idolatria do dinheiro, à autorregulação e à absolutização dos mercados, que se esquecem a categoria da relação. Na encíclica Laudato si’ é clara a afirmação do ser relacional; relação que agora se estende também à natureza.
Assim, o magistério pontifício de Francisco coloca novamente o político no centro do debate teológico, não como fundamentalismo religioso, mas como praxe limitada dos princípios construídos a posteriori pela experiência e marcando a fronteira entre ética e política, e entre religião e filosofia. Da mesma forma nasce o cristianismo,
isto é, como uma teologia que critica a religião do Estado por ser
fundamento absoluto da opressão e da exclusão, e que luta para deixar
vazio aquele trono.
No entanto, para ler Francisco não podemos deixar de lado alguns critérios próprios da teologia latino-americana,
que foram se delineando graças à praxe teológica com aquele povo
específico. Os critérios são: o primado da relação com Deus, Cristo e
Maria; a consciência de pertencimento à Igreja enquanto Povo de Deus e
Corpo místico de Cristo; o sentimento de fraternidade e solidariedade
com os outros; o culto dos mortos e a prática dos sacramentos,
especialmente o batismo, que confere dignidade aos homens enquanto
homens, independentemente de seus méritos.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/577476-injustica-a-modernidade-dessacralizada
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