As falhas desse levantamento ocultam uma realidade que certamente é mais severa do que a registrada.
Em 19/01/2018 a página GuiaGayBrasília publicou matéria “alertando” para o “sensacionalismo” dos relatórios anuais de mortes de LGBT+ no Brasil,
o que colocaria indevidamente o país em primeiro lugar na escala
mundial da violência homofóbica e transfóbica. Assinado por Welton
Trindade, “ativista LGBT desde 2000”, o texto se assemelha a boa parte
das matérias pretensamente jornalísticas baseadas em opinião pessoal
que, ainda que fundamentada, traçam uma linha narrativa que induz a uma
conclusão que é mais a de quem escreve do que baseada em análise
cuidadosa. O texto de Trindade vai por esse lado: opinativo, se
apresenta como análise detalhada de um contexto complexo e amplo. Seu
alvo são os relatórios anuais de mortes de pessoas LGBT+ produzido pelo
Grupo Gay da Bahia, o mais antigo em atuação no país. Trata-se,
portanto, de uma crítica severa a um trabalho realizado há décadas pelas
poucas pessoas vinculadas ao grupo, e que se intensificou com a
popularização da internet, gerando uma página específica para contabilizar nossos mortos.
Segundo o artigo, a metodologia de contagem das vítimas, boa parte
das vezes incluídas no site no momento de sua repercussão, infla os
números. Trindade afirma que Luiz Mott, presidente de honra do GGB e
autor do relatório, opera com alarmismo, ainda que não saibamos por que
ele faria isso – o texto não se preocupa em apresentar uma justificativa
para essa suposta conduta. Baseando-se nos exemplos de oito mortes de
LGBT+ no Distrito Federal, o autor pretende descortinar a “farsa” e
mostrar como temos, na verdade, bem menos mortes causadas pela
homofobia, lesbofobia e transfobia do que é divulgado pelo relatório
(nestes oito casos, aparentemente, não há relato de morte de
bissexuais). Trindade afirma ter falado com Mott sobre a metodologia do
levantamento, mas, no texto, não se apresenta sua réplica, apenas a
crítica autoral que vaticina: “Portanto, por todos esses pontos
levantados, não há de dar crença ao relatório do GGB! O Brasil que sai
de suas páginas não é o Brasil real. Pelo demonstrado aqui, há clara
contabilidade superdimensionada”.
O relatório tem problemas? Óbvio que sim, e isso tem sido apontado
por diferentes lideranças do movimento LGBT brasileiro há alguns anos.
Em especial, Luiz Mott tem sido confrontado pelo movimento de travestis,
mulheres transexuais e homens trans por diversas manifestações em redes
sociais que claramente as discrimina, como invalidar ações ou falas de
lideranças trans apontando a si mesmo como “decano do movimento”, ou
seja, detentor de uma fala mais autorizada. Não escrevo, portanto, no
sentido de defender a liderança, mas de salvaguardar os ganhos que temos
com o relatório e sua importância histórica. É importante também
apontar que este relatório não pertence mais somente a Mott ou ao GGB,
mas a um grupo extenso, e muitas vezes anônimo, de pessoas que
contribuem para alimentá-lo.
1. Crimes de ódio raras vezes têm sua motivação explicitada
“(..) crime de ódio, pelo conceito mais aceito no mundo jurídico e de direitos humanos, é aquele quando o autor escolhe sua vítima tendo como motivação principal o fato de ela pertencer a um determinado grupo social, étnico, sexual, de gênero, geográfico etc.”:
Aparentemente a afirmação é razoável e visa dar um norte para a
análise: não se pode chamar toda a morte de LGBT+ de motivada por ódio.
Ok, uma chamada à razão, que para na proposta.
Em primeiro lugar, onde está a aceitação deste conceito? Em algum
documento internacional de que o país seja signatário? Em normativas
nacionais ou estaduais/municipais? Não se trata de apontar detalhes
insignificantes, mas informar quem está lendo. Se este é o conceito mais
aceito, de onde ele vem? Quem o criou, o defende ou o critica? Termos e
conceitos têm história e contextos, não são neutros, a-históricos ou
universais.
Certamente essa definição de “crime de ódio”, que incluiria racismo,
machismo e xenofobia, não se encaixa em todos os contextos sociais por
um simples motivo: constrói uma relação idealizada de racionalidade na
escolha do perpetrador de violência em relação à vítima. Há nuances e
relações interpessoais que tornam esta afirmação mais complexa: há muito
tempo agressões de mulheres por seus cônjuges são caracterizadas como
crimes de gênero e não crimes passionais. Trata-se de um movimento que
visa qualificar e quantificar tais crimes a fim de pressionar governos
por medidas protetivas a estas mulheres. A Lei Maria da Penha é um ganho
enorme e, na leitura de Trindade, seria um “crime passional”.
Além disso, vale dizer, a amplitude do levantamento também ajuda a
pressionar as instâncias jurídicas, que muitas vezes vê nas mortes e
agressões motivações menores e, por isso, confere penas leves aos
agressores – se é que os pune. Não é o caso de ser punitivista, mas isso
tem um efeito pedagógico devastador: se quem mata LGBT+ não sofre
sanção, então não é necessário pensar duas vezes antes assasinar
homossexuais ou transexuais. E mais: não basta matar, tem que marcar o
corpo que não é só individual, é social. O caso do diretor de teatro
Luís Antônio Martinez Corrêa, irmão do também diretor Celso Martinez
Corrêa, exemplifica a brutalidade destes assassinatos: aos 37 anos, foi
encontrado em seu apartamento com 107 facadas, um golpe na cabeça,
estrangulado e com pés e mãos amarrados. Esta é uma realidade que ronda a
vida de LGBT+ até hoje, como será trazido mais à frente no caso de
mortes de travestis e mulheres trans.
2. Não é porque a vítima conhecia o agressor que este não é um crime de ódio
“Crimes passionais” não deveriam ser incluídos como crimes de ódio,
afirma Trindade. Será? Temos um problema aqui em como definir o que é
crime passional. É aquele realizado no calor de brigas entre casais ou
pessoas que mantêm relações afetivas? É a não aceitação de desilusões
amorosas e consequente agressão? É a frustração em relação à
possibilidade de realização do afeto?
Neste item, Trindade utiliza o exemplo de um rapaz que teria sido
morto com um tiro pelo companheiro, principal suspeito da polícia.
Assim, já que foi o companheiro, não há motivação de ódio homofóbico.
Mas, como o próprio autor mostra, não temos maiores informações além da
suspeita, que pode muito bem não ter sido confirmada. Ou seja, o
companheiro da vítima pode não ser o autor do homicídio. Há dois pontos a
serem considerados:
- Quantos homens cis são mortos por “crimes passionais”? O conceito de “crime passional” é historicamente utilizado como forma de justificar agressões de homens que se acham donos das vidas das mulheres com que se relacionam. O machismo e a misoginia, atrelados a esta construção jurídica, estão muito próximos à invisibilização de crimes motivados por homofobia e transfobia, por exemplo.
- Há importantes estudos que mostram como a polícia e outras estruturas do judiciário tentam burlar denúncias de crimes motivados por lesbo-homo-bi-transfobia por diferentes motivos, desde ter menos “trabalho” ou receber menor pressão de ativistas e governos, até já dar um veredito antes mesmo de qualquer investigação. Nós, ativistas, diríamos que a pessoa está sendo assassinada inúmeras vezes, desde a morte do corpo, passando pelas mortes institucionais e o não-reconhecimento de sua dignidade. Cito o artigo de Adriana Vianna e Sérgio Carrara (2004) sobre os julgamentos de assassinatos de homossexuais masculinos no Rio de Janeiro durante a década de 1980 que parte, inclusive, dos números do relatório criticado para explorar o cenário carioca da época. Também o trabalho denso de Roldão Arruda (2001) ao explorar uma série de assassinatos de homens homossexuais em São Paulo no fim dos anos 1980, muitos deles relacionados a justificados como crimes praticados por companheiros afetivos ou sexuais.
Não é uma equação simples que se resolva apenas aludindo à matéria
jornalística referida. Se queremos mesmo criticar o relatório, ou, me
parece mais adequado, melhorá-lo, é leviano utilizar o exemplo desta
forma. Por que o mesmo interesse em desqualificar o relatório não foi
dado a saber como terminou o julgamento, ou se houve julgamento? Não é
demais lembrar da série de assassinatos em 2008 num parque público em
Carapicuíba, local conhecido pela presença de homens em busca de sexo
anônimo. A investigação levou a um ex-policial que teria assassinado cerca de 15 homens.
3. O assassinato de travestis e mulheres trans é, sim, transfobia
O texto utiliza dois casos de disputa de pontos de prostituição entre
travestis e mulheres trans. O primeiro aponta um crime em que quatro
travestis supostamente teriam assassinado uma quinta para demonstrar
poder; o segundo trata da morte de uma travesti que teria sido
assassinada pelo companheiro por acerto de contas na prostituição. Se
levarmos o conceito de crimes de ódio sugerido por Trindade certamente
vamos retirar essas duas mortes. E cairemos numa trapaça.
Há muitos estudos qualitativos sobre a vida de travestis e mulheres
trans que trabalham na prostituição, sendo essa uma saída quase
obrigatória para que possam ter uma vida um pouco mais independente.
Nestes mesmos estudos há menção às estruturas que vinculam
financeiramente as prostitutas a companheiros que também fazem as vezes
de cafetões ou outras travestis e trans que organizam os pontos (ver os
trabalhos de Larissa Pelúcio e a pesquisa quantitativa “Muriel”).
A forma como estas trabalhadoras são encaradas pela polícia e pelas
instituições governamentais não oferece alternativas: há inúmeros casos
de travestis e mulheres trans que são agredidas com pedradas na cabeça,
garrafadas e tiros e, quando procuram uma delegacia, são destratadas,
agredidas ou estupradas. Para onde correr?
O conceito levantado não dá conta do fato de que as vidas de
travestis, mulheres trans e homens transexuais, no contexto social mais
amplo, vale menos do que a de pessoas cisgêneras. Há uma estrutura que
garante a exploração desta população sem punição ou salvaguarda
institucional. As críticas do transfeminismo ajudam muito a entender que
a prostituição pode ser uma opção de trabalho, mas, no caso de
travestis e mulheres trans, são poucas as que podem de fato podem
escolher outras profissões.
Claro, tivemos muitos avanços como a obrigatoriedade de cursos de
direitos humanos em academias de polícia. Mas os números de casos que
nem chegam a ser julgados é desesperador. Quem está olhando para isso? É
ético apontar no relatório que estas mortes não deveriam estar
listadas? Não seria melhor acompanhar os casos? A quantidade de mortes
de prostitutas que são mulheres trans e travestis é equiparável ao
número de assassinatos de prostitutas que são mulheres cis?
4. Suicídios são causados por homofobia ou transfobia, externa ou internalizada
Há um entendimento atual de que os suicídios de pessoas LGBT+, em
especial dos mais jovens, está intimamente ligado a situações de
violência cotidiana, discriminação e não-aceitação nos círculos sociais.
As campanhas que visam desmotivar esta faixa da população a tirarem a
própria vida se intensificaram com o surgimento da campanha It Gets Better,
em que funcionários de grandes estúdios de cinema e de grandes
empresas, entre outros milhares de LGBT+ famosos e anônimos, gravaram
vídeos compartilhando suas experiências de sofrimento na juventude – e
como as coisas melhoraram depois quando ficaram adultos.
Além disso, a justificativa de se tratar de um problema emocional individual não convence: desde 1897, quando Émile Durkheim publicou o estudo “O Suicídio”,
compreendemos que há padrões nestas mortes por recorte temporal, de
classe, de filiação religiosa e de maior ou menor aceitação social. Como
apontou o criador da disciplina da Sociologia, o suicídio é um fenômeno
social, e mostra antes um contexto mais geral, que se expande para além
das relações sociais de uma pessoa, do que “desilusões amorosas”.
Suicídios de pessoas LGBT+, por tanto, são claramente causados por
homofobia – seja ela externa, ou internalizada.
.o0o.
Os crimes de ódio, quando vistos da forma esquemática apresentada por
Trindade, se resumiriam a agressões muito claras por alguém que anuncia
odiar LGBT+. A realidade, no entanto, é muito mais complexa. Estamos
falando de diferentes situações que facilitam a morte de LGBT+ pela
manutenção de maior vulnerabilidade social e jurídica, que pode ser
aprofundada pelo entrecruzamento de marcadores sociais de diferença como
classe, raça e origem, por exemplo.
Discordando de Trindade, o paralelo ao feminicídio não é equivocado:
se os movimentos feministas e de mulheres seguissem sua linha de
raciocínio, a Lei Maria da Penha nunca existiria. Depois que foi criado o
Disque 100, o número de denúncias de violência contra mulheres aumentou
assustadoramente. Por causa disso, muitos homens (maldosamente?)
afirmam que a Lei Maria da Penha cria desigualdades de gênero e
incentiva a agressão. Chegam a dizer que se sentem discriminados.
Qualquer pesquisadora/or sensato sabe que há subnotificação nestes
levantamentos, em especial em seu início. Sabe que o sucesso para a
produção de dados nacionais de violência depende de campanha intensiva e
criação de estruturas que garantam anonimato e proteção. Sabe que
certamente há muito mais casos do que os registrados.
Não há dúvidas de que algo semelhante acontece com a denúncia de
crimes causados pela homofobia e pela transfobia. A criação do Disque
100 e a inclusão de denúncias de crimes contra LGBT+ na Secretaria Nacional de Direitos Humanos no âmbito federal em 2011 foi um ganho extraordinário e gerou relatórios que apontam crescimentos sucessivos nas denúncias (de 6.809 em 2011 para 137.516 em 2015).
Só isso já deveria nos fazer parar para pensar em quantos não são os
casos sem denúncia, sem investigação, sem julgamento e sem atenção da
mídia, que passam longe deste levantamento. Faz mais sentido imaginar
que há mais casos de crimes de ódio contra LGBT+ no Brasil e no mundo do
que o que apontam estes relatórios.
De fato, apenas juntar os casos assim que eles são relatados na mídia
não é a melhor ferramenta, mas, pela experiência brasileira, se
fizermos como sugere Trindade e aguardarmos investigação e julgamento
antes de notificarmos uma morte de LGBT+ é possível que tenhamos um
número pífio de notificações. Considero mais prudente utilizar, sim, o
relatório como ferramenta para lutar por políticas públicas melhores e
mais qualificadas, quando existirem, e, em caso de maior interesse nos
detalhes dos casos, dar atenção às continuidades judiciais. Além disso,
há outros relatórios, dados e ferramentas que ajudam a melhorar o
relatório do GGB, como o Disque 100 e pesquisas realizadas durante a
realização de Paradas do Orgulho, por exemplo. Esta e outras políticas
correm sérios riscos de desaparecerem e precisam, urgentemente, fazer
parte da luta pela cidadania de LGBT+ no Brasil
Saliento, portanto, a necessidade do relatório anual publicado pelo
GGB e seus parceiros, mesmo com suas falhas. Por fim, gostaria de
apontar o que me parece ser um ganho desta reflexão. É muito difícil
acompanhar todos os casos enumerados nesses levantamentos. No ano
passado (2017), conforme aponta, foram elencadas 445 mortes de LGBT+ no Brasil.
Quantos destes casos foram julgados? Quantos dos julgados tiveram
punição do agressor como crime de ódio, quando da argumentação em favor
desta motivação? Temos estes dados? Infelizmente não, pelo motivo
principal de que o Brasil não tem se empenhado em combater tais crimes
ou garantir salvaguarda ampla a pessoas LGBT+.
Trabalhos citados
Adriana Vianna e Sérgio Carrara (2004). “As vítimas do
desejo”: os tribunais cariocas e a homossexualidade nos anos 1980. No
livro Sexualidades e Saberes: convenções e fronteiras, organizado por
Carrara, Adriana Piscitelli e Maria Filomena Gregori. Editora Garamond.
Larissa Pelúcio (2009). Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids. Editora Annablume/Fapesp.
Roldão Arruda (2001). Dias de Ira: uma história verídica de assassinatos autorizados. Editora Globo.
Bruno Puccinelli é doutor em Ciências Sociais
pela Unicamp na área de Estudos de Gênero.O autor agradece pelas
primeiras reflexões compartilhadas no grupo #VoteLGBT e ao estímulo em escrever este texto.
Disponível em: http://ladobi.uol.com.br/2018/02/relatorio-ggb-homofobia-transfobia/
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