Especialistas dizem que é impossível reduzir problema sem rever o endurecimento na lei antidrogas e proibição de entorpecentes.
Presos são retirados de cadeia em Itapajé (CE) após massacre. Wellington Macedo EFE Chacinas nas ruas e massacres em presídios
motivados por brigas entre facções criminosas rivais já se tornaram
rotina no Brasil. Pelo segundo ano consecutivo o país vive um mês de
janeiro sangrento com as tradicionais imagens de corpos mutilados,
manchas de sangue no chão e parentes desesperados em busca de
informações. Ano passado ocorreu no Amazonas ,
Roraima, Rio Grande do Norte e Acre. Este ano Goiás e Ceará foram palco
da violência. Como é de praxe, nestas horas as autoridades anunciam
pacotes de medidas emergenciais tais como envio de tropas federais,
construção de presídios e endurecimento das penas e da repressão ao tráfico de drogas .
Mas especialistas ouvidos pelo EL PAÍS apontam que algumas destas
supostas soluções são, na verdade, parte do problema. Proibição das
drogas, encarceramento em massa e o tratamento desumano
dentro do cárcere são justamente alguns dos fatores que levaram ao
crescimento exponencial e à nacionalização do crime organizado no país.
Pior: traçam um cenário sombrio no qual só a reversão dessas medidas,
algo que não parece estar no horizonte nem no médio prazo no país,
poderiam mitigar o problema. É uma má notícia para quase metade dos brasileiros que têm a
percepção de viver em áreas sob influência das facções criminosas.
Segundo levantamento nacional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
feita pelo Instituto Datafolha em agosto passado, 23% dos entrevistados
consideram que é alta a chance de que o crime organizado ou facção atue
em sua vizinhança. Outros 26% responderam que a chance é média. Fenômeno
antes restrito principalmente a São Paulo e Rio de Janeiro, hoje as
facções estão presentes dentro e fora dos presídios de todos os Estados –
com conexões internacionais nos principais países produtores de cocaína da América do Sul.
“É
preciso rever a política de guerra às drogas, que não deu certo em
lugar nenhum do mundo”, diz Camila Dias, socióloga da Universidade
Federal do ABC e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
“É difícil, quando vemos estas cenas de violência, tentar lidar com isso
dizendo que é preciso romper com a política de encarceramento em massa e
combate às drogas. Mas se você olhar para as ultimas duas décadas,
foram justamente estes dois fatores que provocaram esta crise”.
O fracasso da guerra às drogas no Brasil é constatado até mesmo por quem atua dentro do Estado: “A guerra às drogas é perdida, irracional” , afirmou o ex-secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro José Maria Beltrame em 2015. Enquanto muitos países começam a flexibilizar sua política de repressão e permitir o uso recreativo de algumas drogas leves ,
como é o caso da maconha nos Estados Unidos, o Brasil continua seguindo
a mesma política de enfrentamento adotada nos anos de 1960. Aqui, a
chamada guerra às drogas começou em 1961, antes mesmo do então
presidente dos EUA Ronald Reagan ir à TV em 1986 com seu famoso discurso
anti-drogas. “Houve uma convenção no Rio para discutir drogas e uso de
tóxicos. E o que se seguiu foi um progressivo endurecimento das leis e
ai o combate deslanchou. À partir daí tudo piorou”, afirma Michel Misse,
professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e fundador do Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e
Violência Urbana.
Ela [a legalização] é estratégica, não só para o funcionamento da
Justiça e para a pacificação das relação sociais. Mas na América Latina é
possível dizer que o Estado de Direito depende disso
Mesmo no período democrático a legislação manteve o viés de enfrentamento. A lei de drogas sancionada pelo então presidente Lula
em 2006 endureceu a pena para o pequeno traficante sob o verniz de
fazer a distinção entre usuários e traficantes. Na prática, o local de
residência da pessoa detida pela polícia continua sendo o parâmetro
usado pela polícia e pelo Judiciário para distinguir o primeiro do
segundo. “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o
juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao
local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias
sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”,
diz o artigo 27 da lei. “Como a lei não especifica a partir de qual
quantidade de posse você é traficante ou usuário acaba ficando a
critério dos agentes públicos”, afirma Misse.
O professor defende a legalização das drogas
como única solução possível para romper o ciclo de violência. “Ela [a
legalização] é estratégica, não só para o funcionamento da Justiça e
para a pacificação das relação sociais. Mas na América Latina é possível
dizer que o Estado de Direito depende disso. Isso é ponto pacífico, é
consenso na academia”, afirma Misse. Ele, no entanto, é pessimista
quanto à possibilidade da legalização avançar no Brasil, seja via poder
Legislativo seja via Supremo Tribunal Federal. “Somos um país
conservador. Veja o tempo que demorou para aprovarmos uma lei do
divórcio! [a lei do divórcio brasileira é de 1977]”. O STF chegou a
discutir a descriminalização da maconha, mas a votação foi suspensa em agosto de 2017 após o falecido ministro Teori Zavascki pedir mais tempo para analisar o tema. O placar estava 3 a 0 para a descriminalização.
Encarceramento em massa e a “falácia” de construir presídios
O fortalecimento das facções criminosas no Brasil andou de
mãos dadas com o aumento vertiginoso do número de presos no país, no
período de 1990 até os dias atuais. Se 15 anos atrás o problema era
circunscrito principalmente ao Rio de Janeiro e São Paulo, hoje é
correto afirmar que Primeiro Comando da Capital
e Comando Vermelho - as duas maiores facções brasileiras - estão
presentes em quase todos os Estados. Para o professor Misse o cárcere
está ligado umbilicalmente às facções. “O processo do crime organizado
aqui se dá sempre a partir do sistema penitenciário. Enquanto em outros
países as organizações ligadas a mercados ilegais se organizam fora do
sistema, nas ruas, aqui são os presídios que potencializam estas redes
de contatos e permitem a atuação nestes mercados ilegais”, afirma.
O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo ,
com cerca de 726.712 pessoas trancadas, atrás apenas dos Estados Unidos
e da China. Nos últimos dez anos, este número mais do que dobrou. E, no
entanto, dificilmente alguém dirá que se sente mais seguro. Além disso
os indicadores criminais também não apresentaram melhoras no país. Pelo
contrário, apesar de termos uma enorme quantidade de pessoas presas, as
taxas de homicídio ainda crescem. “Nós prendemos muito e prendemos mau.
Nós não prendemos os principais fornecedores, os atacadistas, prendemos
os varejistas e olhe lá. Em geral nós prendemos a ponta do varejo. Você
não tem eficácia nenhuma com relação a este combate”, diz Misse. Para o
sociólogo, tentar controlar completamente a entrada destas substâncias
no país seria como “enxugar gelo”: “Não há trabalho de inteligência
sistemático que seja capaz de identificar a chegada de drogas e armas
por todas as fronteiras brasileiras, sejam secas, aéreas ou marítimas”.
A socióloga Camila Dias, que pesquisou a fundo as dinâmicas
do PCC, afirma que “o problema das facções foi sendo forjado pelas
políticas públicas de todos os estados do Brasil”. De acordo com ela,
foi feita uma aposta no encarceramento como forma de resolver o problema
da segurança. “A partir dos anos 2000 isso passou a ser uma prioridade
dos Estados”, diz. A cada novo presídio, abria-se o campo para a
influência do crime organizado. “Ao construir novas unidades você amplia
as redes pelas quais os grupos se articulam”, diz. Para ela
A cada novo presídio, abria-se o campo para a influência do crime organizado
Outra peculiaridade do nosso sistema carcerário é a grande quantidade de presos provisórios ,
ou seja, que ainda não foram condenados. Eles representam 49% da
população total atrás das grades. De acordo com o Conselho Nacional de
Justiça, 29% destes presos provisórios são acusados de tráfico de
drogas. O Conselho realiza mutirões anuais para avaliar a situação
destes detidos: em 2017 uma ação batizada de “Choque de Justiça”
absolveu mais de 4.500 presos provisórios e revogou a prisão de outros
21.700, que poderão aguardar o julgamento em casa.
“Presídios são locais que deveriam ser reservados a
criminosos muito perigosos, que felizmente são uma minoria no país”,
defende Misse. O que ocorre aqui, no entanto, é que “o sistema
penitenciário está sendo utilizado para prender qualquer pessoa que
participe de mercados ilegais: aí não acaba nunca. Você constrói
presídio e ele enche. Constrói e ele enche...”. Segundo o sociólogo “há
um volume excessivo de pessoas cumprindo penas por tráfico ou atividades
ligadas aos mercados ilegais, como formação de quadrilha e roubos, e
isso é um fator importantíssimo para explicar essa tragédia que vive o
Brasil”.
O padre Valdir João Silveira , coordenador nacional da Pastoral Carcerária ,
concorda com Misse. “Quanto mais presídios você constrói, mais aumenta a
violência. Há uma propaganda enganosa de que existe um déficit de vagas
nas cadeias, e que esse é o problema. Na verdade são os presídios,
quase todos comandados por facções criminosas que também atuam nas
periferias, que alimentam o ciclo de violência”, diz.
Ou seja, basta que se construa um presídio para que em
alguns meses ele esteja superlotado. Um exemplo claro disso ocorre no
Estado de São Paulo. Nos últimos quatro anos foram construídas 42
unidades, praticamente todas já estão operando muito acima da
capacidade. Dos cinco presídios e centros de detenção provisória (CDPs,
para presos ainda não condenados) inaugurados em 2017 no Estado, quatro
já estão superlotadas. A mais nova é a penitenciária de Franca,
inaugurada em primeiro de outubro do ano passado. Com capacidade para
847 presos, já conta com 1.801 internos, mais do que o dobro da lotação
prevista. E o ritmo das obras não para: outras 15 unidades estão
atualmente em construção, ainda sem data para começar a operar.
Mas para além das grades, o aumento de presos teve um impacto devastador nas comunidades mais pobres do país. “A prisão empobrece as famílias atingidas por ela ,
que precisam prover para o parente preso. Além disso, para manter o
vínculo elas precisam viajar grandes distâncias [até os presídios do
interior], o que não é barato. Para cada preso existem várias outras
pessoas que são afetadas”, afirma o cientista social Rafael Godoi, autor
do livro Fluxos em Cadeia: As prisões em São Paulo na virada dos tempos (Editora Boitempo ).
A violência contra os presos que se reflete no lado de fora
O Primeiro Comando da Capital foi fundado em 1993 no Anexo da Casa de
Custódia de Taubaté (conhecida como Piranhão). O apelido da unidade,
considerada então uma das mais seguras do Estado, tem relação com os
maus tratos sofridos pelos detentos nas mãos de guardas e outros presos.
Em seu primeiro estatuto a organização explicava a importância da união
entre os presos: “Temos que permanecer unidos e organizados para
evitarmos que ocorra novamente um massacre semelhante ou pior ao
ocorrido na Casa de Detenção em 2 de outubro de 1992, onde 111 presos
foram covardemente assassinados, massacre este que jamais será esquecido
na consciência da sociedade brasileira. Porque nós do Comando [PCC]
vamos mudar a prática carcerária, desumana, cheia de injustiças,
opressão, torturas, massacres nas prisões”. O papel do Massacre do Carandiru na criação da maior facção criminosa do país é hoje consenso entre estudiosos do tema.
“O PCC surge num contexto de muita violência dentro do cárcere, e se
expande nesse contexto de encarceramento em massa”, afirma a
pesquisadora Camila Dias. “Quando se aumenta a superlotação das unidades
aumentam as pressões dentro do sistema, pressão por segurança, proteção
e formas de sobreviver lá dentro de forma menos vulnerável”, diz.
O Comando Vermelho, criado no final dos anos de 1970 no presídio da
Ilha Grande (conhecida como Ilha do Diabo), também foi uma resposta dos
detentos às condições de violência e precariedade dentro do cárcere.
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/31/politica/1517410163_964093.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário