Nova biografia do líder do Queen entremeia a trajetória de Freddie Mercury com a evolução da epidemia do HIV.
Deitado naquele que se tornaria seu leito de morte, o cantor recebia
medicamentos que eram injetados em seu sistema circulatório por meio de
um cateter Hickman implantado em seu pescoço. As drogas e um auxiliar
dedicado esforçavam-se para conter suas dores e sua náusea, para que ele
pudesse usufruir de seus elaborados jardins japoneses e de sua casa em
Londres que havia montado com tanto apreço. Ele havia decidido parar de
tomar AZT, e uma horda de paparazzi e vigias de celebridades faziam
plantão do lado de fora de sua casa, todos tentando conseguir um relance
do desvanecimento desse homem tão amado. Parecia que, mesmo na hora de
sua morte, todos queriam um pedaço de Freddie Mercury.
Em Somebody to Love: The Life, Death, and Legacy of Freddie Mercury
(“Alguém para amar: vida, morte e legado de Freddie Mercury”), os
autores Matt Richards e Mark Langthorne oferecem a primeira biografia do
célebre cantor e líder da banda Queen justaposta à história
antropológica do HIV. Não é a história que a maioria das pessoas
conhece, aquela que parte da teoria do chamado “Paciente Zero”
em que um comissário de bordo sexualmente insaciável espalhou a doença
para seus inúmeros amantes homens ao redor do globo. Até porque essa
teoria já foi refutada nos últimos anos. Os autores de Somebody to Love
preferem retornar ao ano 1908, o ano em que o vírus que se tornaria o
HIV realizou o salto dos chimpanzés para seus caçadores humanos.
Coincidentemente, esse foi o ano em que nasceu o pai de Freddie Mercury,
um persa que imigrou do Irã para a Índia tentando escapar da
perseguição realizada pelos muçulmanos.
“Freddie Mercury foi um dos primeiros astros do alto escalão a morrer
por causa dessa doença, e sua história e a história da Aids estão, de
certa forma, inextricavelmente
ligadas”, afirma Langhorne. “Para nós era importante utilizar o formato
da biografia para contar a história da doença, e quem seria melhor para
um projeto como esse que Freddie Mercury?” Essa biografia é como
nenhuma outra: paralela à história de como Mercury cresceu em um colégio
interno na Índia, uma criança pársi insegura por ser dentuça e
apaixonada pela música, correm as informações que a pesquisa científica
contemporânea têm sobre a história do HIV.
O volume surpreenderá os leitores que esperam uma simples biografia
de celebridade, repleta de fotos e escrita para fãs. Era exatamente essa
a intenção, aponta Langthorne: “seus fãs dificilmente comprariam um
livro sobre HIV e Aids, então resolvemos entremear as duas histórias, e
assim construímos uma oportnidade de informar as pessoas que normalmente
não se interessariam por essa doença terrível e a luta que as pessoas
tiveram que enfrentar.”
Mercury teria hoje 70 anos, não tivesse morrido de pneumonia em
decorrência da Aids em 1991. Mesmo 25 anos depois de sua morte, a
biografia de Freddie Mercury continua relevante devido a sua obsessão
com temas como orientação sexual e identidade pública, saúde e
resiliência, estigma e força.
Mercury era um homem curioso, uma personalidade exuberante muito
antes de tornar-se consciente de sua atração pelo mesmo sexo. Durante
sua juventude o artista teve um relacionamento com uma mulher, Mary
Austin, considerada por ele o amor de sua vida (mesmo durante um
relacionamento duradouro com outro homem) e para quem ele deixou quase
todo seu patrimônio e suas cinzas, para que fossem distribuídas em
sigilo. Enquanto esteve junto de Austin, Mercury começou relacionar-se
sexualmente com outros homens. Consta que quando Mercury contou para
Austin que era bissexual, ela respondeu “Não, Freddie, você é gay”.
Os autores de Somebody to Love fazem o possível para
descobrir por que Mercury amava outros homens, mas colocava Austin num
patamar acima de todos os outros. A causa talvez fosse vergonha: a
homofobia internalizada de Mercury refletia a crença geral da sociedade
de que os relacionamentos gay não eram relacionamentos “de verdade”. Ao
ler-se o livro, no entanto, é inevitável considerar se ele realmente não
era bissexual, num mundo que até flerta com essa noção mas não
compreendia – e ainda não comprende – a identidade bissexual,
especialmente em homens. Num universo em que qualquer homem que faz sexo
com homens automaticamente é rotulado como gay, não importa o quanto
ele afirme seu amor por mulheres, será que Mercury realmente não
sentia-se dividido entre esses dois lados de seu ser?
É uma questão que até os autores deixam em aberto: qual seria a identidade sexual de Mercury, estivesse ele vivo hoje?
“Gosto de pensar que hoje Freddie teria saído do armário”, pondera
Langthorne. “O mundo mudou tanto. Ele era um astro das décadas de 1970 e
1980, duas décadas em que o nível de homofobia era tão grande que as
pessoas nascidas depois de 1980 mal conseguem compreender. O Reino Unido
e os Estados Unidos eram lugares especialmente assustadores para os
gays, e o surgimento da Aids deu munição para os inquisidores religiosos
e os moralistas de direita.”
A esperança de Langthorne é que o livro “esclareça os tempos
tenebrosos que muitos tiveram que atravessar e durante os quais muitos
morreram.”
Lanthorne é um fã do Queen de longa data, em parte porque uma das
primeiras composições da banda (que na época chamava-se Smile) gravou
uma de suas primeiras demos no banheiro do cinema de seu pai, o Regal,
em Wadebridge, Inglaterra. Havia também a lenda de que a banda havia
feito um show na prefeitura da cidadezinha onde Langthorne nasceu, algo
que foi confirmado durante as pesquisas para o livro. O autor conta que
viu o Queen tocar ao vivo no Wembley Stadium em 1996 durante a Magic
Tour, a última com todos os membros originais, um espetáculo que para
sempre permanece em sua memória.
Richards afirma que ele e Langthorne consideraram que o 25o.
aniversário da morte de Mercury era o momento certo para se reavaliar a
vida do músico. Somebody to Love é uma leitura comovente, cheia
de informações novas desconhecidas até pelos fãs mais ardorosos. É o
primeiro livro que observa de perto a luta de Mercury contra o HIV: sua
luta para manter a doença em segredo (ele anunciou que tinha Aids apenas
um dia antes de morrer), o despertar de sua sexualidade, seus
relacionamentos, e a homofobia que seguiu-se a sua morte. O livro
detalha a homofobia cultural e a maneira como ela afetou as decisões que
Mercury tomou com relação a seu tratamento e sua figura pública,
influenciando até sua decisão de não mais aparecer em público. Em sua
última aparição ele encontrava-se emaciado, sem bigode, e vestindo um
terno grande demais; sua única palavra foi “obrigado”. O livro chega a
calcular qual teria sido o período em que Mercury viveu com HIV:
Foi durante a passagem de sua turnê pelos EUA que Freddie explorou seu desejo por sexo gay em Nova York, e em 25 de setembro, durante uma participação no programa Saturday Night Live, ele já exibia alguns sintomas associados com alguém que acabou de se infectar com HIV. Secretamente ele já havia se consultado com um médico naquela cidade algumas semanas antes por estar acometido de uma lesão branca em sua língua (provavelmente leucoplasia pilosa, um dos primeiros sintomas da infecção pelo HIV) e isso aponta que Freddie teria contraído o HIV entre 26 de julho e 13 de agosto de 1982, durante uma pausa da turnê em Nova York.
O texto às vezes é um tanto pobre e antiquado (alguns leitores vão
fazer cara feia ao ler alguns termos), mas também é algumas análises
interessantes capazes de entreter os estudantes da teoria queer por
vários dias. É o caso da canção “Bohemian Rhapsody”, considerada por
muitos a obra em que Mercury tenta sair do armário.
Langthorne e Richards não conseguiram fazer com que os outros membros
do Queen comentassem mais uma vez sobre essa canção. “Freddie nunca
confirmou que ‘Bohemian Rhapsody’ fosse sobre sua orientação sexual”,
admite Langthorne. “E os outros membros do Queen que já falaram sobre
esse assunto recusam-se a retomar essa discussão.”
No entanto várias análises da canção, afirma, “apontam para o caráter
confessional e para o retrato de suas conjunturas emocionais durante
aquele período. Na época de sua composição, Mercury já estava envolvido
com David Minns, apesar de morar com Mary Austin.” Esse foi o primeiro
relacionamento que Mercury teve com um homem; na época, ele e Austin já
viviam juntos há sete anos. A musicista Sheila Whiteley (autora de Queering the Popular Pitch,
“Deixando os sucessos populares mais queer”, em tradução livre) sugere
que o verso “Mama I killed a man” seria sua confissão de que o Mercury
heterossexual já era; e que “Mamma Mia let me go” poderia ser um pedido
literal para que Mary Austin compreendesse que ele tinha que partir.
Esse hino operático do rock, com mais de seis minutos, já foi
interpretado por artistas tão díspares como Elton John, Axl Rose e
Panic! at the Disco, e entre os vários prêmios e indicações em listas
das “maiores canções de todos os tempos”, foi incluída no Grammy Hall of
Fame em 2004.
John Reid, empresário do Queen na época, falou com Richads e
Langthorne pela primeira vez sobre o subtexto de “Bohemian Rhapsody”.
“Várias análises da música já foram feitas, mas eu acredito na teoria de
que essa foi a maneira que ele encontrou de sair do armário, apesar de
nunca ter discutido isso diretamente com o Freddie”, confessa.
Langthorne afirma que Mercury considerava “Bohemian Rhapsody” sua
maior realização. Seja ela ou não um testemunho autobiográfico de sua
homossexualidade, a narrativa trágica descrita nos versos da música
ganharia um significado ainda maior depois de sua morte.
Ao associar a história pessoal do cantor ao ambiente cultural e
médico em que ele viveu e morreu, o livro é um lembrete do quanto já se
evoluiu, de tudo que temos a perder, e – especialmente quando se trata
do HIV, da compreensão da bissexualidade, e de homens que fazem sexo com
homens – quanto ainda precisamos avançar.
Queen - I Want to Break Free (Official Lyric Video)
https://www.youtube.com/watch?v=WUOtCLOXgm8
Disponível em: http://ladobi.uol.com.br/2018/02/freddie-mercury/
Nenhum comentário:
Postar um comentário