quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

O DESCOMPASSO ENTRE A ESQUERDA E A CLASSE TRABALHADORA EVANGÉLICA

Para a cientista política Clarice Gurgel, a crise econômica e institucional favorece a Igreja Evangélica e seus representantes, como Crivella.

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Para Clarice Gurgel, a gestão Crivella elevou ao máximo a expansão do privado no público

O principal discurso do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), desde sua campanha eleitoral era de que não misturaria religião com política. A “garantia” era de que o passado eclesiástico do bispo licenciado da Igreja Universal não se confundiria com sua atuação no cargo público, alcançado depois de amargar quatro derrotas nas urnas nos últimos 12 anos, duas em disputa para comandar o Estado e duas pela Prefeitura.
Desde o início de sua gestão, não é, porém, difícil encontrar situações que mostram a Igreja presente na esfera pública, seja via exaltações a líderes evangélicos nas casas legislativas ou mesmo em decisões acerca de políticas sociais estratégicas. Em junho, a imprensa noticiou o rebaixamento da Coordenadoria de Diversidade Sexual, que perderia autonomia para criar políticas públicas à população LGBT, além da redução da subvenção municipal para as escolas de samba, que tem levado a uma verdadeira queda de braço entre o prefeito e os carnavalescos.

A cientista política Clarice Gurgel afirma que o estreitamento entre o Estado e a Igreja Universal, e seu consequente favorecimento, não é exclusivo do governo Crivella, “isso esteve presente em todos os governos que o antecederam”. No entanto, reconhece um elemento novo e mais expressivo na atual gestão, “a expansão do privado no público, fruto de uma forte articulação da Igreja com o empresariado”.

Em entrevista à CartaCapital, a especialista diz estar em curso um processo de evangelização da classe trabalhadora fortalecido pelo cenário de crise econômica e institucional. “Temos uma classe trabalhadora aflita, em busca de segurança, e de outro lado a Igreja que ganha o imaginário social ao ofertar o que o Estado hoje não dá conta e que a esquerda deveria disputar”.



Carta Capital: Como explicar esse movimento de expansão da Igreja Universal na política e na sociedade?
 


Clarice Gurgel: Tenho observado uma demanda crescente da população por disciplina, ordem e limitações morais. Sobretudo em um momento em que a classe trabalhadora não sabe o dia de amanhã, a busca é por acolhimento e a Igreja dialoga muito bem com isso. A angústia motivada pela constante perda de direitos, de referenciais importantes como solidariedade e cooperação não vem sendo nomeada pela esquerda e a Igreja se apresenta como a instituição que oferece disciplina, organização, e convites que o Estado deveria estar oferecendo.


CC:  Há um descompasso entre as demandas da esquerda e da população?
 


CG: Sim. A esquerda hoje é permeada por um perfil de classe média alta, os moradores da zona sul da cidade, eleitores do Marcelo Freixo. A grande reivindicação desse grupo é por liberdade, ausência de limitações, que tem a ver com a crise das instituições e dos próprios partidos. Só que a palavra de ordem do povo não é esta. A classe trabalhadora busca por limites e encontra na Igreja a ideia da estabilidade, segurança, tranquilidade e salvação.
Esse descompasso de demandas permite a expansão da Igreja Evangélica, que opera com um excelente trabalho de mediação nos locais de moradia, como nos morros, e inclusive vem praticando a flexibilização de seus limites morais, por entender que isso é tático para não perder setores de fieis que lidam com a agenda da diversidade.


CC: Como isso se agrava em um contexto de crise econômica?
 


CG: Temos um setor de esquerda com caprichos de liberdade e uma classe trabalhadora que demanda limites e segurança coexistindo em um momento que se opera a Reforma Trabalhista e se ventila a Reforma da Previdência. Antes se tinha o dono do escravo que “cuidava” dele, enquanto ele cuidava do trabalho para o senhor. Depois, ao perceber que isso era muito custoso, converte-se para o trabalho assalariado, em que o trabalhador cuida de si e do trabalho do patrão. Agora temos também o microempreendedor individual que é um sujeito que cuida de suas próprias feridas e do seu próprio trabalho e que é responsabilizado pelos possíveis fracassos. A Reforma Trabalhista é o ápice desse processo.
O empresariado joga a responsabilidade da geração de empregos no trabalhador, que passa a entender que a salvação é empreender com seu próprio negócio. E onde ele aprende isso? Na igreja, com o bispo Edir Macedo. É tudo muito bem articulado. Se por um lado a Igreja oferece segurança e as contenções necessárias para esse cidadão que se sente solto no mundo, por outro vai dizer que a salvação está nele próprio, o que parece ser um discurso progressista, e que não é por defender a salvação individual e não coletiva.
A Igreja Evangélica, em especial o bispo Edir Macedo, é a salvação do capital em crise. Não é mais uma preocupação do empresariado manter suas taxas de lucro garantindo consumo através do emprego, a ideia é transformar todo mundo em microempreendedor individual. As Igrejas Evangélicas são essa grande escola por trabalharem esse imaginário do patrimônio na sociedade, por promover as soluções individuais para problemas coletivos. Isso encontra um terreno muito fértil na crise do capital.






CC: Esse movimento não é exclusivo da política praticada por Crivella, certo?
 


CG: Não. A crise se desenvolve de maneira desigual, mas combinada no país inteiro. No Rio de Janeiro, o Estado viveu a farra das Olimpíadas e da Copa do Mundo e deveria se responsabilizar fiscalmente por não administrar bem suas contas. No âmbito do município, Crivella deveria rever suas contas, suas políticas fiscais. Mas como o que está em prática é um projeto de flexibilização do Estado que começa no governo federal e chega às federações, a saída é entregar a política pública para o setor privado. E você, fiel, que não consegue ter acesso a saúde e educação, não empreendeu, é incompetente.
Essa ideia de incutir a saída individual no imaginário da massa pobre é do bispo Edir Macedo, do presbiterianismo e do processo crescente de evangelização do pobre.


CC:  Em que medida a crise institucional contribui com essa dinâmica?
 


CG: O desgaste brutal da política faz com que se perca a referência do público. No imaginário das pessoas, a solução da crise não virá desse âmbito. Falar em política pública na gestão Crivella parece até um anacronismo. A política é algo sujo, impuro, então entre ficar com políticos é melhor ficar com empresários porque a sujeira nunca está neles. Na mesma medida, é melhor que o recurso público esteja na mão de um empresário do que na dos políticos. É um cálculo pessimista dos fieis que também são eleitores. Com essa perda de referencial, não faz mais sentido o aspecto público da política pública. O Brasil conjuga a ideia de que o dinheiro tem que estar na mão de quem faz. Vivemos num contexto em que a forma de fazer as coisas não importa, mas sim alcançar os resultados. Aí o capitalismo encontra o seu reino. A lógica é entregar dinheiro para quem sabe geri-lo, como se fosse somente uma questão de administrar uma empresa.


CC: Quais são os riscos desse enxugamento do papel do Estado?
 


CG: O risco maior é de uma barbárie com a produção de uma pobreza extrema. A perda da fé na política e no público e a crença de que a solução passa pelo dinheiro, sem o compartilhamento de valores comuns, pode levar a isso. O risco é que caminhemos não só para a escassez material, mas também a de serviços públicos e nos afastemos de valores que façam valer o público, o coletivo.


CC: Como a esquerda poderia disputar esse espaço? Há chances de reverter o cenário?
 


CG: A esquerda tem um papel de criar uma linguagem comum para os anseios da sociedade, mas segue desatenta em relação a isso. A sua atuação hoje já não chega aos locais de moradia, a Igreja é a grande mediadora do tráfico de drogas hoje, diante uma ineficácia do Estado. Agora, em um contexto de Reforma Trabalhista, a esquerda não vai mais chegar nem aos locais de trabalho.
A esquerda precisa olhar para ela mesma, investigar sua própria crise e dialogar com a questão da fé, que inexiste em seu vocabulário. Com o momento vivido no Brasil, estamos todos sem fé na humanidade, no futuro, na política, nos partidos, nos companheiros de militância. O alerta é pela necessidade de ocupar os espaços hoje majoritariamente da Igreja.

Disponível em:  https://www.cartacapital.com.br/politica/o-descompasso-entre-a-esquerda-e-a-classe-trabalhadora-evangelica

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