Propostas de revogação do Estatuto do Desarmamento ganham corpo no Congresso
em meio ao crescimento da criminalidade no país. Especialistas em
segurança pública questionam argumentos trazidos por parlamentares e
temem escalada da violência caso projetos sejam aprovados.
A reportagem é de Andre Antunes, publicada por EPSJV/Fiocruz.
Fonte: Portal Fiocruz
Os dados são ao mesmo tempo estarrecedores e banais: 61.619 pessoas foram assassinadas no Brasil em 2016, segundo informações do 11º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgados em outubro do ano passado. Nunca se matou tanto no país: são 168 homicídios por dia, sete por hora.
Em nenhum país do mundo se mata mais do que no Brasil, em números
absolutos: um em cada dez assassinatos cometidos no mundo acontecem em
território brasileiro. Esse é o lado estarrecedor. O banal? Nada disso é
novidade. O país convive há décadas com índices de violência
altíssimos, maiores do que os de países em guerra civil. Ainda assim, o
Estado brasileiro fez pouco para enfrentar esse quadro. É praticamente
consenso entre especialistas em segurança pública que a falta de prioridade da agenda de redução dos homicídios
é um problema crônico no Brasil. E eles alertam: no vácuo de políticas
públicas de longo prazo ganham força propostas que, amparadas pelo
pânico social criado pela escalada dos índices de violência, procuram
desmontar as poucas iniciativas efetivas implementadas nos últimos anos.
Uma delas é uma lei que completa 15 anos em 2018: o Estatuto do Desarmamento. Aprovada no primeiro mandato do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva,
a lei impôs várias restrições ao porte de armas por civis. Entre outros
requisitos, estabeleceu que os interessados em adquirir arma de fogo
devem ter mais de 25 anos (anteriormente a idade mínima era de 21 anos),
e precisam apresentar à Polícia Federal uma declaração
que justifique a necessidade da aquisição da arma além de documentos
que comprovem que o interessado possui capacidade técnica e aptidão
psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestada por profissionais
credenciados pela própria Polícia Federal. A lei também
especificou na legislação penal os crimes de comércio ilegal e tráfico
internacional de armas de fogo, e ampliou as penas para o porte de arma
em situação irregular. Além disso, o Estatuto criou, por meio do Sistema Nacional de Armas (Sinarm),
um banco de dados com as características das armas em circulação no
país, permitindo que armas e munições sejam rastreadas em investigações
criminais. A partir do Estatuto, o governo federal também instituiu a Campanha do Desarmamento, que previa o pagamento de indenização às pessoas que entregassem suas armas de fogo sem registro à Polícia Federal. A campanha tirou de circulação 570 mil armas entre 2004 e 2011.
O que propõem os parlamentares
A lei vem enfrentando resistência desde que foi concebida, no entanto. Segundo levantamento do Nexo Jornal, desde 2004 o Estatuto
sofreu mais de 20 alterações em relação ao texto original. A grande
maioria das alterações flexibilizou as regras para o porte de armas no
país. No contexto atual, a disputa se acirrou: vários projetos que
tramitam hoje no Congresso Nacional propõem
simplesmente revogar o estatuto. O principal argumento de quem defende a
medida é o de que a lei se mostrou ineficaz para a redução da
criminalidade no país. Exemplo disso seria o próprio número de
homicídios por armas de fogo, que saltou de 33.419 em 2005 para 41.817
em 2015, segundo dados do Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A taxa de homicídio no país no mesmo período cresceu 10,6%, passando de
26,1 para 28,9 homicídios para cada 100 mil habitantes. Já o número de
latrocínios – roubo seguido de morte –, segundo o 11º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aumentaram 57,8% em sete anos no país, passando de 1.593 em 2010 para 2.514 em 2016.
No Senado Federal, uma das principais vozes contrárias ao Estatuto do Desarmamento é a do senador Wilder Morais (PP-GO),
autor de três projetos de lei que propõem flexibilizar a legislação
sobre porte de armas de fogo, todos apresentados em 2017. Um deles é o Projeto de Decreto Legislativo 175, que defende a convocação de um plebiscito sobre a revogação do Estatuto do Desarmamento. O projeto conta com 95% de aprovação em enquete do portal e-Cidadania: já são mais de 259 mil votos favoráveis contra 12 mil contrários. Morais também é autor do Projeto de Lei do Senado (PLS) 378, que institui o Estatuto do Armamento,
que propõe facilitar a fabricação, a comercialização, a posse e o porte
de armas no país. Entre outras medidas, o projeto reduz de 25 para 18
anos a idade mínima para aquisição de armas de fogo, amplia de cinco
para dez anos a validade do registro e permite que as Secretarias Estaduais de Segurança Pública se responsabilizem pelos registros, o que hoje é uma atribuição da Polícia Federal. Este projeto conta com 102 mil votos favoráveis no portal e-Cidadania, contra 13 mil contrários. Por fim, há também o PLS 224, que propõe alterar o Estatuto do Desarmamento para residentes em áreas rurais de modo a permitir que menores de 21 anos possam adquirir armas de fogo.
Nas justificativas dos projetos, um argumento em comum: um suposto fracasso do Estatuto do Desarmamento em reduzir os índices de violência. “Após mais de dez anos da promulgação do Estatuto do Desarmamento”, diz o texto que justifica a apresentação do PLS 175,
“não se apresentam quaisquer dados objetivos que apontem no sentido da
redução dos índices de violência: pelo contrário, desde a entrada em
vigor daquela Lei, o número total de homicídios no Brasil apresentou um
aumento de 20%, atingindo a preocupante marca de 60 mil assassinatos”.
Para ele, os números representam uma falha da política de
desarmamento civil, que teria se tornado “insustentável”. “Em um Estado
Democrático de Direito, somente se justifica a limitação do exercício de
um direito fundamental quando restar patente que essa restrição trará
maiores benefícios para a coletividade”, argumenta Morais no texto que
justifica o PL, invocando uma ideia que está presente na legislação dos
Estados Unidos e que vai na direção contrária ao que diz o Estatuto do
Desarmamento, ou seja, a de que o porte de armas é um “direito” dos
cidadãos, ao qual o Estado deve restringir acesso apenas em casos muito
específicos. “O número de armas de fogo registrados nos EUA é 20 vezes
maior do que o número de armas de fogo registradas no Brasil. No
entanto, a taxa de homicídios no Brasil é quase quatro vezes maior do
que a dos EUA”, indica a justificativa do PLS 378.
No caso do PLS 224, que reduz a idade mínima para aquisição de armas de fogo
no meio rural, até as “intempéries do ambiente” são motivo para
flexibilizar a legislação. A argumentação confusa, no entanto, não
impediu que o projeto recebesse parecer favorável do relator Sergio Petecão (PSD-AC) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), em novembro.
Na mesma linha dos projetos do Senado segue o PL 3722/2012, que tramita na Câmara dos Deputados. De autoria do deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC), o projeto também propõe a revogação do Estatuto do Desarmamento
sob a justificativa de que ele se mostrou “ineficaz” na redução da
criminalidade. Por outro lado, o deputado defende que vários foram os
efeitos adversos da lei aprovada em 2003. “O comércio de armas de fogo e
munição caiu noventa por cento no país, dadas às quase intransponíveis
dificuldades burocráticas que foram impostas para a aquisição desses
produtos. Dos 2.400 estabelecimentos especializados registrados pela
Polícia Federal no ano 2000, sobravam apenas 280 em 2008. Essa drástica
redução, comemorada de forma pueril por entidades desarmamentistas, não
produziu qualquer redução nos índices de homicídio no país, pela simples
e óbvia constatação de que não é a arma legalizada a que comete crimes,
mas a dos bandidos, para os quais a lei de nada importa”, diz o texto.
Para o deputado, o aumento no número de crimes contra o patrimônio é
consequência direta da política de desarmamento da população civil. “A
certeza de que a vítima estará desarmada somente torna o criminoso mais
ousado”, afirma o deputado em sua justificativa.
O que dizem as pesquisas
Mas é justo colocar a culpa pelo aumento da violência no Estatuto do Desarmamento?
A revogação do estatuto, por si só, deve significar uma redução da
criminalidade no país? Se não, quais as outras medidas consideradas
necessárias para que isso aconteça? Que dados e pesquisas subsidiam o
diagnóstico contrário, de que o aumento no número de armas em circulação
tem o potencial de reduzir os índices de criminalidade? Essas foram
algumas das perguntas encaminhadas pela reportagem da Poli aos
parlamentares, mas nenhum deles atendeu à solicitação para uma
entrevista nem respondeu às perguntas enviadas por email.
Para pesquisadores da área de segurança pública,
os argumentos trazidos pelos parlamentares para defender a revogação do
estatuto não têm fundamentação nas pesquisas sobre esse tema
desenvolvidas ao longo da última década. Algumas delas, realizadas por Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea,
têm apontado que o aumento no número de assassinatos cometidos por
armas de fogo na última década no Brasil não significa que o Estatuto do
Desarmamento foi ineficaz. Segundo ele, para entender o impacto da lei é
preciso comparar o crescimento das taxas de homicídio antes e depois de
sua entrada em vigor. Em apresentação feita em audiência pública
realizada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em 2015, o
pesquisador argumentou que a aprovação do Estatuto pode ter poupado a
vida de 121 mil pessoas entre 2004 e 2012. Para chegar a essa conclusão,
ele comparou o crescimento nas taxas de homicídio no país, ou seja, o
número de assassinatos a cada 100 mil habitantes, nos períodos anterior e
posterior à aprovação da lei. Segundo ele, entre 1995 e 2003, essa taxa
cresceu 21,4%. Já entre 2004 e 2012, esse crescimento foi de apenas
0,3%.
Isabel Figueiredo, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
utiliza esses dados para concluir que o estatuto foi, sim, uma política
de sucesso. “É claro que é mais fácil eu entender o sucesso dela quando
eu estou com 50 mil homicídios e no ano seguinte cai para 45 mil. Aí
não tem discussão. Agora, quando eu estou com 50 mil e a tendência era
que eu estivesse no próximo ano com 53 mil e eu aumento só pra 51 mil,
isso é um fator de sucesso também. Essa é uma coisa que acho que as
pessoas não conseguem direito pegar: a gente estaria numa situação muito
mais séria se o estatuto não existisse”, ressalta.
Cerqueira traz ainda outros dados que atestariam a
eficácia do Estatuto na redução dos homicídios. Segundo ele, embora sua
aplicação não tenha se dado de maneira uniforme pelo país, nos estados
que tiveram maior redução no número de homicídios nos anos 2000 – São Paulo, Pernambuco e Rio de Janeiro
- houve também maior redução na difusão de armas de fogo. Já nos três
estados com maior aumento na taxa de homicídio no período – Pará, Maranhão e Bahia
– não houve redução na difusão dessas armas. A relação entre a
quantidade de armas de fogo e as taxas de homicídios foi objeto ainda de
um estudo elaborado pela Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest) do Ipea.
A pesquisa apontou que a taxa média de homicídios entre as 20
microrregiões do país com mais armas de fogo em 2010 chegava a 53,3 a
cada 100 mil habitantes; já nas 20 microrregiões com menos armas de
fogo, a taxa média de homicídio é consideravelmente menor: 7,2
homicídios para cada 100 mil habitantes.
Por fim, em sua tese de doutorado apresentada em 2011 à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Cerqueira concluiu que 1% a mais de armas nas cidades faz aumentar a taxa de homicídio em 2%,
mas não tem efeito para dissuadir os crimes com motivação econômica,
como roubos e furtos. Os resultados obtidos por Cerqueira são
compatíveis com os do maior estudo feito nos Estados Unidos sobre a
relação entre armas e crimes, publicado no American Journal of Public Health
em 2013, que concluíram que um aumento de 1% na proporção de domicílios
onde há pelo menos uma arma implica um crescimento de 0,9% na taxa de
homicídio por armas de fogo.
“A experiência norteamericana é um amplo e dramático desastre”, afirma o sociólogo e ex-deputado federal Marcos Rolim,
que ressalta que graças à ideia de um ‘direito às armas’, o acesso se
tornou tão facilitado lá que, em alguns estados, é possível comprar
armas semiautomáticas até em supermercados. “O resultado dessa política
irresponsável comprada pelo lobby das armas são centenas de eventos a
cada ano de atiradores disparando contra aglomerações em todo o país”,
aponta Rolim, destacando um dos efeitos indesejado do
aumento do número de armas em circulação. Nos Estados Unidos, onde
existem hoje 270 milhões de armas de fogo nas mãos da população civil,
pouco menos do que uma por habitante, são cada vez mais comuns eventos
como o massacre ocorrido em Las Vegas em outubro, quando um homem de 64
anos abriu fogo contra uma multidão durante um festival de música
country, matando 58 pessoas e ferindo mais de 500. “Os americanos
empregam a expressão ‘mass shootings’ para esse tipo de evento. Eles
consideram mass shooting todo evento de disparos aleatórios que tenha
produzido pelo menos quatro vítimas, entre mortos e feridos, sem contar o
atirador. Apenas este ano [2017] já ocorreram 397 casos desse tipo”,
aponta. Foi um massacre como esse – o de Columbine, em 1999 – que
segundo a Polícia Civil teria inspirado o estudante de Goiás que em
outubro abriu fogo contra colegas de sala, matando dois e ferindo
quatro. Filho de policiais militares, o adolescente pegou a arma
escondido dos pais. “No caso do Brasil, importar a experiência americana
tende a produzir uma tragédia muito maior”, ressalta Rolim.
Já de acordo com Isabel Figueiredo, uma análise um
pouco mais aprofundada sobre a relação entre armas e violência nos
Estados Unidos traz elementos para fazer cair por terra a comparação
feita pelo senador Wilder Morais, que na justificativa do PLS 378
traça uma relação direta entre o maior número de armas em circulação
nos Estados Unidos e a menor taxa de homicídios registradas lá em
comparação com o Brasil. “As coisas não são tão simples assim”, reitera,
destacando que a legislação sobre armas no sistema federativo
norteamericano é de competência estadual. “A lei federal vai falar que
todo mundo pode portar, mas os estados lidam com isso de jeitos
completamente diferentes. Juntar tudo em um mesmo ‘balaio’ é um jeito
deturpado de ler os dados”, completa.
Isabel cita um relatório de 2014 elaborado pelo Law Center to Prevent Gun Violence,
centro que promove a prevenção da violência causada por armas de fogo
no país. Nele, a organização identificou que nos estados onde há menos
controle sobre armas, como Lousiana, Kentucky, Mississippi e Arizona,
o número de mortes per capita causado por armas de fogo é até cinco
vezes maior do que estados onde a legislação sobre armas é mais rígida,
como Nova York, California, Nova Jersey e Massachussets.
Um outro levantamento da mesma organização apontou que, dos 600 mil
suicídios ocorridos nos Estados Unidos desde 2000 – entre eles 20 mil
menores de idade – 50% foram cometidos com armas de fogo. “Suicídios em
geral são atos impulsivos utilizando quaisquer métodos disponíveis
naquele momento. 48% das pessoas se ferem no espaço de 10 minutos após
decidirem se suicidar. 71% o fazem dentro de uma hora”, diz o
levantamento, que também traz conclusões similares às encontradas com
relação aos homicídios: entre os estados, quanto menor for o controle
sobre a circulação de armas de fogo, maiores são as taxas de suicídio
registradas.
A ideia de que o porte de arma de fogo oferece à vítima de um crime
melhor condições de defesa, argumento comum entre os que defendem a
revogação do Estatuto do Desarmamento, também carece de sustentação, segundo Marcos Rolim.
“Todas as pesquisas disponíveis a respeito de ocorrências em que
vítimas reagiram com armas mostram exatamente o contrário”, diz Rolim, citando como exemplo uma pesquisa realizada em 2009 pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser),
no Rio de Janeiro. O estudo, que examinou 3.394 registros policiais de
roubos, concluiu que reagir a um assalto com uma arma aumentava em 180
vezes as chances de morte da vítima e em 57 vezes as chances de ela ser
gravemente ferida. “Um detalhe importante: nesse estudo, mais da metade
das vítimas que reagiram eram policiais, vale dizer, profissionais
treinados no uso de armas de fogo”, destaca. A mesma pesquisa traz ainda
um dado que contribui para desconstruir o argumento usado pelo deputado
federal Rogério Mendonça na justificativa de seu
projeto de lei, o de que não são as armas legalizadas que são usadas
para cometer crimes, e sim a dos bandidos. Em muitos casos, não é
possível fazer essa distinção: o estudo do Iser
constatou que 30% das 77.527 armas apreendidas com criminosos no Rio de
Janeiro haviam sido obtidas no mercado formal e depois roubadas.
Delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone
acredita que o alto número de policiais militares mortos no estado em
2017, número que até o início de dezembro chegava a 126, é um indicativo
de que portar uma arma não traz mais segurança. “Esses policiais têm
sido mortos, muitas vezes, principalmente por estarem portando uma arma.
O assaltante vai querer se antecipar para não sofrer uma reação por
conta daquele que está armado”, argumenta Zaccone, para
quem a presença da arma de fogo tem o potencial de tornar situações
cotidianas mais tensas, ampliando o risco de que uma disputa que poderia
ser resolvida de maneira pacífica se torne violenta e potencialmente
letal. “Recentemente a gente teve um caso aqui no Rio de um policial
militar que se deparou com uma briga de casal em um ponto de ônibus,
interveio e acabou atirando e matando o rapaz, sem que ele estivesse
armado nem nada. Um erro de percepção”, diz Zaccone. E
completa: “Se isso existe entre policiais, imagina em relação a
particulares. Ainda mais com essa tensão e com esse medo que hoje
circunda o ambiente social. Nós vamos ter uma quantidade imensa de
homicídios que vão ser praticados mediante uma precipitação”.
Impasses
O Brasil precisa de menos pesquisa em segurança e mais armamento. Foi assim que o então Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, hoje no STF,
resumiu, em agosto de 2016, as prioridades na área de segurança pública
do governo, que à época ainda era interino. O Ministério vinha sendo
pressionado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que
em julho daquele ano havia emitido um acórdão solicitando que o governo
federal enviasse em 60 dias um plano de ação para implantação do Pacto Nacional de Redução de Homicídios, anunciado pelo Ministério da Justiça em 2015, quando o titular da pasta era José Eduardo Cardozo. A resposta oficial do MJ ao TCU,
no entanto, foi a de que o Pacto, que estabelecia a meta de reduzir os
homicídios no país em 5% anualmente, “não diz respeito às ações deste
governo”.
O caso é emblemático de problemas apontados por especialistas em
segurança pública como os maiores desafios para a redução dos homicídios
no país: falta prioridade para essa agenda, e falta também capacidade
de articulação entre as diferentes esferas de governo para implementação
de políticas de longo prazo voltadas para prevenir e também solucionar
os homicídios que são registrados todos os anos. “Toda política de
segurança séria deve começar por um diagnóstico a partir de evidências e
pela definição de prioridades. A redução das taxas de homicídio deveria
ser a mais importante dessas prioridades em um país com as taxas que
temos, mas não é e nunca foi. Os diferentes governos brasileiros nunca
focaram sua atenção nesse tema”, destaca Marcos Rolim.
Isabel Figueiredo cita como um dos principais
problemas a falta de um arranjo federativo que diga, por exemplo, quais
são as atribuições de cada ente federado e quanto cada um deve investir
na segurança pública. “Na educação e na saúde temos um desenho
constitucional de sistemas, que vão dizer exatamente o nível de
atribuição de cada ente da federação, trazendo também informações sobre o
financiamento, com vinculações orçamentárias, que é uma coisa
importantíssima. No SUS, por exemplo, tem uma série de instâncias que,
bem ou mal, asseguram essa política pública. No caso da segurança
pública não tem”, afirma Isabel. Uma das consequências desse quadro é a variação ao longo dos anos nos recursos destinados para o Fundo Nacional de Segurança Pública,
criado em 2001 no âmbito do Ministério da Justiça para apoiar projetos
nessa área e prevenção à violência nos estados e municípios. Sem nenhum
tipo de vinculação orçamentária, o valor do Fundo caiu de R$ 187 milhões
em 2005 para R$ 143 milhões em 2015. “Como é possível fazer uma
política de segurança pública se a cada ano você pode ter orçamento ou
não? Esse é um problema grave”, aponta Isabel. Historicamente, a maior parte dos recursos do fundo vem sendo destinada para a compra de equipamentos para as polícias.
A escassez de recursos é apontada por Isabel como um problema para o
trabalho de investigação conduzido pela Polícia Civil. A situação é
especialmente complicada atualmente, com vários estados em situação de
crise fiscal adotando políticas de contingenciamento de recursos . “Em
São Paulo há denúncias de que o contingente hoje é menor do que era há
20 anos atrás. Aqui no Distrito Federal o contingente
hoje da Polícia Civil é menor do que no início do século. No Ceará é a
mesma coisa”, enumera a pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública. “Sucatear a Polícia Civil significa ir contra a investigação
policial. Mesmo que eu tenha a melhor política sobre armas do país, não
adianta nada se eu tiver uma polícia que não está dando conta de
investigar de onde estão vindo as armas do crime. Isso é coisa que
investigação resolve, mas se não tem o braço da política pública
responsável por investigar conseguindo trabalhar, fica difícil”,
ressalta.
O que funciona
Mas o que seria uma política de segurança pública eficaz para a redução dos homicídios e da criminalidade violenta? Para Isabel,
ela deve ter como foco invariavelmente a prevenção da violência. “Aí
entra o policiamento comunitário, as políticas de criar oportunidade de
emprego e renda para jovens, criação de espaços e oportunidades de
convivência, projetos de cultura e esportes, até políticas mais focadas
como, por exemplo, trabalhar com os meninos que estão saindo do sistema
socioeducativo e sistema carcerário. Essas pessoas saem do sistema hoje
sem terem passado por nenhum tipo de qualificação ou cuidado lá dentro e
são jogadas de novo na rua sem nada para os acolher. Elas vão voltar
para o crime”, opina a pesquisadora.
Apesar dos problemas que afetam o planejamento de políticas de
segurança pública no país, o Brasil possui algumas experiências bem
sucedidas de redução dos homicídios implementadas nos níveis municipal e
estadual que, não por acaso, adotaram medidas de prevenção da violência
como as enumeradas por Isabel. O Atlas da Violência 2017 do Ipea cita como exemplo o caso do programa ‘Pacto pela Vida’, implementado em Pernambuco no governo de Eduardo Campos.
O programa foi uma tentativa de elaborar uma política de segurança
pública sob um paradigma diferente, com base em valores que orientaram
sua construção: articulação entre segurança pública e direitos humanos;
compatibilização da repressão qualificada com a prevenção específica do
crime e da violência; transversalidade e integralidade das ações de
segurança pública; incorporação em todos os níveis da política de
segurança de mecanismos de gestão, monitoramento e avaliação;
participação e controle social desde a formulação das estratégias à
execução da política. Na esteira da implementação do programa, o estado
reduziu em 36% a taxa de homicídio entre 2007 e 2013. “O que Pernambuco fez? Unificação territorial da Polícia Civil e da Polícia Militar,
porque, normalmente, uma área de um batalhão não corresponde a uma área
de um distrito, e para gerir, o território fica confuso; fez um sistema
de metas e de controle externo dessas metas, e investiu também em
capacitar as polícias para o cumprimento das metas”, enumera Isabel Figueiredo.
Desde 2013, no entanto, a taxa de homicídios no estado voltou a
subir, passando de 33,9 a cada 100 mil habitantes em 2013 para 41,2 em
2015. Para Isabel, o caso de Pernambuco exemplifica o
problema da fragilidade das políticas de segurança pública, que em geral
dependem da vontade política dos gestores. “Falta uma política de
Estado mesmo, que de alguma forma sobreviva a essas mudanças. É muito
ruim um projeto que dependa fundamentalmente da liderança do gestor
porque política pública não é de curto prazo”, lamenta.
No nível municipal, um exemplo de política eficaz na redução dos homicídios frequentemente citada na literatura é o de Canoas, no Rio Grande do Sul.
Inspirada em políticas de sucesso na redução da criminalidade violenta
adotadas em cidades como Nova Iorque, Bogotá, e em estados como
Pernambuco, a cidade implantou um programa que reduziu o número de
homicídios em 22% entre 2009 e 2016, na contramão dos números
apresentados pelo estado como um todo, que registrou um aumento de 65%
nos homicídios no mesmo período. “Canoas é uma
experiência interessante porque é articulada a partir do município, que é
quem aciona o estado e eles, em conjunto, vão desenhar um pacote de
medidas de prevenção, que é a parte que cabe mais ao município, que não
tem polícia propriamente dita”, explica Isabel. Com esse objetivo, o município criou um Sistema Municipal de Prevenção à Violência,
por meio do qual foram criados mecanismos para monitorar situações de
violência nas escolas. Também foram criados programas para o
monitoramento e atendimento de jovens que apresentassem comportamentos
considerados de risco para a violência, como evasão escolar e abuso
sexual. Foram criadas ainda as Casas da Juventude, para atendimento a jovens em conflito com a lei, e as Casas de Cidadania,
para atender egressos do sistema prisional e suas famílias, bem como um
serviço municipal para reabilitação de homens autores de violência
contra mulheres, entre outras iniciativas.
A cidade de Diadema, na Grande São Paulo, é outro exemplo citado por Marcos Rolim.
O município, que em 1999, tinha a maior taxa de homicídios do estado,
com 102,8 assassinatos para cada 100 mil habitantes, identificou que o
consumo de álcool era um fator de risco com peso grande nos homicídios
cometidos na cidade, e havia um grande número de casos registrados em ou
próximos a bares, entre as 23h e 4h da manhã. “Com base nisso Diadema
implantou medidas como o controle sobre a venda de bebidas alcoólicas
com horários obrigatórios para o fechamento de bares, o que reduziu
significativamente o número de homicídios”, explica Rolim.
Em 2011, a taxa de homicídio na cidade havia caído para 9,52 para cada
100 mil habitantes, uma redução de 90%. “Na América Latina, o que
ocorreu na Colômbia segue sendo uma referência fundamental. Por conta de
políticas públicas inteligentes que investiram na prevenção, cidades
como Bogotá e Medellin, que já estiveram entre as mais violentas do mundo, são hoje bem mais seguras que a maioria das capitais brasileiras”, conclui Rolim.
Entre consensos e ‘achismos’
Como ressalta Isabel Figueiredo, são vários os
exemplos de políticas eficazes no combate à violência, e nenhum deles
trouxe como proposta o armamento da população civil. Segundo ela,
existem hoje consensos sobre o que funciona para a redução da violência.
“Existem temas na segurança que são bastante polêmicos, mas há muitos
temas importantes que têm consenso, da Polícia à academia, passando pelo
gestor. Uma delas é a necessidade de construção de um arranjo
federativo. É sobre os consensos que o Congresso deveria estar
trabalhando”, diz Isabel. E complementa: “Do ponto de vista do desarmamento, o Estatuto
é ótimo. A gente estaria no caos absoluto se ele não existisse. Mas
falta um ‘conjunto da obra’ para efetivá-lo como parte de uma política
de segurança pública decente. Temos que andar para frente, e não
retroceder com base em ‘achismos’”.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/575669-mais-armas-menos-crimes
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