A dura tarefa de purificar a cúria romana na era do papa argentino.
A maioria dos discursos de Bergoglio voltados àqueles que exercem cargos de autoridade na Igreja são construídos a partir da realidade do forte carreirismo eclesial presente na Europa. (AP)
Por Mirticeli Dias de Medeiros*
Em
discurso dirigido aos altos representantes dos organismos da cúria
romana, na semana passada, Papa Francisco voltou a proferir um discurso
com um tom nada amigável. Usando palavras fortes, o pontífice lamentou o
fato de alguns de seus colaboradores não compreenderem o espírito da
reforma que ele tenta levar adiante desde 2013. Esse foi um dos
discursos mais fortes que Francisco já realizou às vésperas do Natal,
quando tradicionalmente o papa fala aos chefes de dicastérios e
colaboradores ligados diretamente à cúria romana. Em 2014, o papa
argentino já havia identificado na mesma ocasião as “quinze doenças”
que, segundo ele, podem acometer os servidores curiais. A repercussão
das palavras do papa à época foi tamanha que muitos especialistas
expuseram suas análises através de livros, artigos e fizeram que as
constatações apontadas por Francisco virassem pauta de debate no
ambiente acadêmico romano. “A cúria é chamada a melhorar, a melhorar-se
sempre e a crescer em comunhão, santidade e sabedoria para realizar
plenamente a sua missão. Também essa, como todo corpo humano, é exposta
também a doenças, mal funcionamentos e enfermidades”, ressaltou o papa.
Há
quem diga que o precursor desse movimento de transformação curial tenha
sido Bento XVI. No entanto, apesar da boa vontade do papa emérito, nada
foi feito para mudar uma estrutura que herda resquícios do ‘espírito da
corte’ do período renascentista. O que o pontífice alemão fez, como
experiente colaborador da cúria romana, foi identificar que ‘a casa
precisava de uma ‘limpeza profunda’. No entanto, a renúncia foi a
demonstração que ele não tinha forças para fazê-la. Primeiro porque a
postura diplomática que assumiu durante o pontificado o impediu de bater
de frente com determinadas realidades. Uma demonstração disso foi o não
afastamento do cardeal Tarcísio Bertone, secretário de estado do
Vaticano durante o seu governo, considerado um dos piores que já assumiu
a função na era contemporânea. Em segundo lugar, o título de
“colaborador número 1” durante o longo pontificado de João Paulo II o
impediu de exercer uma certa autonomia na condução do papado. Vale
recordar que os participantes do conclave de 2005 elegeram Bento XVI na
intenção de que ele conduzisse um governo de transição e desse
continuidade ao pontificado do papa polonês sem causar mudanças bruscas.
Ratzinger não sabia mais lidar com uma estrutura que não se movia e não
queria, durante a velhice, perder voz ativa diante de uma situação que
conhecia muito bem.
Francisco, por outro lado, não traz sobre si o
peso dessa cadeia diplomática e pode sim, como alguém que vem de fora,
mover-se livremente na condução de uma reforma concreta sem se preocupar
com o pensamento dos “blocos”, mas com o que ele considera justo. Além
disso, a personalidade do papa argentino, a partir daquilo que se
observa, não é de alguém que se deixa condicionar e sabe, até nas
entrelinhas, impor sua autoridade. No discurso citado no início deste
artigo, por exemplo, ele atribuiu para si por diversas vezes o título
‘sucessor de Pedro’, usado por ele em pouquíssimas ocasiões, uma vez que
ele sempre prefere intitular-se ‘bispo de Roma’ para favorecer o clima
de colegialidade. Além disso, a maioria dos discursos de Bergoglio
voltados àqueles que exercem cargos de autoridade na Igreja são
construídos a partir da realidade que ele, na atualidade, é capaz de
observar: a do forte carreirismo eclesial presente na Europa. É certo
que também na América Latina e em outras realidades há aqueles que são
ávidos por poder, mas a diferença é que aqui o ambiente favorece: a
pastoral é tímida, os leigos são pouco atuantes e o clericalismo está
enraizado na mentalidade do católico comum. Um grande desafio para
Francisco, o qual já entendeu que, para que a mudança alcance toda a
Igreja, é necessário primeiro pôr ordem na casa, na sua casa.
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e bacharel em História
da Igreja e bens culturais pela Pontifícia Universidade Gregoriana de
Roma, e atualmente, mestranda em História da Igreja na mesma
instituição. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de
comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas
brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da
Santa Sé.
Disponível em: http://domtotal.com/noticia/1219805/2017/12/francisco-e-a-tentativa-de-transformar-a-curia-nao-a-corte-de-principes/
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