sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

FRANCISCO E A TENTATIVA DE TRANSFORMAR A CÚRIA: NÃO À CORTE DE 'PRÍNCIPES'.

A dura tarefa de purificar a cúria romana na era do papa argentino.

A maioria dos discursos de Bergoglio voltados àqueles que exercem cargos de autoridade na Igreja são construídos a partir da realidade do forte carreirismo eclesial presente na Europa. 
A maioria dos discursos de Bergoglio voltados àqueles que exercem cargos de autoridade na Igreja são construídos a partir da realidade do forte carreirismo eclesial presente na Europa. (AP)


Por Mirticeli Dias de Medeiros*


Em discurso dirigido aos altos representantes dos organismos da cúria romana, na semana passada, Papa Francisco voltou a proferir um discurso com um tom nada amigável. Usando palavras fortes, o pontífice lamentou o fato de alguns de seus colaboradores não compreenderem o espírito da reforma que ele tenta levar adiante desde 2013. Esse foi um dos discursos mais fortes que Francisco já realizou às vésperas do Natal, quando tradicionalmente o papa fala aos chefes de dicastérios e colaboradores ligados diretamente à cúria romana. Em 2014, o papa argentino já havia identificado na mesma ocasião as “quinze doenças” que, segundo ele, podem acometer os servidores curiais. A repercussão das palavras do papa à época foi tamanha que muitos especialistas expuseram suas análises através de livros, artigos e fizeram que as constatações apontadas por Francisco virassem pauta de debate no ambiente acadêmico romano. “A cúria é chamada a melhorar, a melhorar-se sempre e a crescer em comunhão, santidade e sabedoria para realizar plenamente a sua missão. Também essa, como todo corpo humano, é exposta também a doenças, mal funcionamentos e enfermidades”, ressaltou o papa.
Há quem diga que o precursor desse movimento de transformação curial tenha sido Bento XVI. No entanto, apesar da boa vontade do papa emérito, nada foi feito para mudar uma estrutura que herda resquícios do ‘espírito da corte’ do período renascentista. O que o pontífice alemão fez, como experiente colaborador da cúria romana, foi identificar que ‘a casa precisava de uma ‘limpeza profunda’. No entanto, a renúncia foi a demonstração que ele não tinha forças para fazê-la. Primeiro porque a postura diplomática que assumiu durante o pontificado o impediu de bater de frente com determinadas realidades. Uma demonstração disso foi o não afastamento do cardeal Tarcísio Bertone, secretário de estado do Vaticano durante o seu governo, considerado um dos piores que já assumiu a função na era contemporânea. Em segundo lugar, o título de “colaborador número 1” durante o longo pontificado de João Paulo II o impediu de exercer uma certa autonomia na condução do papado. Vale recordar que os participantes do conclave de 2005 elegeram Bento XVI na intenção de que ele conduzisse um governo de transição e desse continuidade ao pontificado do papa polonês sem causar mudanças bruscas. Ratzinger não sabia mais lidar com uma estrutura que não se movia e não queria, durante a velhice, perder voz ativa diante de uma situação que conhecia muito bem.
Francisco, por outro lado, não traz sobre si o peso dessa cadeia diplomática e pode sim, como alguém que vem de fora, mover-se livremente na condução de uma reforma concreta sem se preocupar com o pensamento dos “blocos”, mas com o que ele considera justo. Além disso, a personalidade do papa argentino, a partir daquilo que se observa, não é de alguém que se deixa condicionar e sabe, até nas entrelinhas, impor sua autoridade. No discurso citado no início deste artigo, por exemplo, ele atribuiu para si por diversas vezes o título ‘sucessor de Pedro’, usado por ele em pouquíssimas ocasiões, uma vez que ele sempre prefere intitular-se ‘bispo de Roma’ para favorecer o clima de colegialidade. Além disso, a maioria dos discursos de Bergoglio voltados àqueles que exercem cargos de autoridade na Igreja são construídos a partir da realidade que ele, na atualidade, é capaz de observar: a do forte carreirismo eclesial presente na Europa. É certo que também na América Latina e em outras realidades há aqueles que são ávidos por poder, mas a diferença é que aqui o ambiente favorece: a pastoral é tímida, os leigos são pouco atuantes e o clericalismo está enraizado na mentalidade do católico comum. Um grande desafio para Francisco, o qual já entendeu que, para que a mudança alcance toda a Igreja, é necessário primeiro pôr ordem na casa, na sua casa.


*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e bacharel em História da Igreja e bens culturais pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, e atualmente, mestranda em História da Igreja na mesma instituição. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé. 

Disponível em:  http://domtotal.com/noticia/1219805/2017/12/francisco-e-a-tentativa-de-transformar-a-curia-nao-a-corte-de-principes/
 

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