Há uma incompatibilidade entre o que ensina o livro cristão e o
comportamento dos deputados e senadores que se dizem representantes da
fé.
Neste tempo, o pastor das ovelhas se chamava Eduardo Cunha
No segundo domingo de dezembro, comunidades evangélicas tradicionalmente celebram o Dia da Bíblia.
Criada em 1549, como parte do livro de orações do rei inglês Eduardo
VI, a data foi introduzida no Brasil, na segunda metade do século XIX,
pelos primeiros evangélicos, missionários chegados da Europa e dos
Estados Unidos.
O que pouca gente deve se dar conta é que desde 2001 o Dia
da Bíblia passou a integrar o calendário oficial do Brasil, por meio da
Lei n. 10.335, de autoria do então deputado federal Eber Silva (PST/RJ),
pastor da Igreja Batista. Descontada a controvérsia de uma lei como
esta ser promulgada em um Estado laico,
quem sabe o Dia da Bíblia possa ser transformado numa oportunidade de
revisão da equivocada compreensão em voga deste livro sagrado?
Digo isto por conta do apelido (criativo, reconheçamos)
atribuído à frente conservadora que hoje atua no Congresso Nacional.
Refiro-me ao termo “Bancada BBB: Boi, Bala e Bíblia”, classificador da aliança ideológica entre as bancadas ruralista, das "armas” e evangélica da Câmara dos Deputados.
Vários projetos de lei e de emendas constitucionais que
representam retrocessos em direitos e garantias sociais alcançados ou em
processo de conquista são articulados por estes grupos. Entre eles
estão a compreensão restrita de família, a liberação do porte de armas, a
redução da maioridade penal, a privação dos povos indígenas ao direito
aos seus territórios, a obstrução ao direito ao aborto legal em caso de
estupro, o desprezo ao Estado Laico com a imposição de princípios
religiosos específicos sobre todos os cidadãos e cidadãs, entre outros.
Como chamar de Bancada da Bíblia um grupo de congressistas
que propõe e vota projetos que servem para segregar seres humanos,
promover mais violência física e simbólica e mais morte, sacrificar
bodes expiatórios, alimentar a exploração dos trabalhadores, controlar
os corpos de mulheres violentadas física e simbolicamente?
É, não dá. A Bíblia, o livro sagrado dos cristãos e cristãs,
é um conjunto de escritos com belíssimas narrativas, ensinamentos, leis
sociais religiosas, poesias, produzidos por indivíduos de diferentes
origens (a maioria muito simples), em distintas épocas e locais. É uma
variedade de abordagens que têm como tema a ação libertadora de Deus na
história, como criador do mundo, e sua revelação significativa: Jesus de
Nazaré.
Uma das características mais interessantes dos textos
bíblicos é que ela não descarta as contradições humanas: estão todas ali
nas situações as mais distintas, registradas a partir de diferentes
formas de interpretar a fé e a vontade divina. Por isto há quem critique
a existência de contradições na Bíblia. Sim, há, e aí está a beleza de
seu conteúdo. A crueza das contradições humanas e a consequente
tentativa de manipular Deus para que assuma “um lado” estão lá.
Apesar de toda esta diversidade de perspectivas,
interpretações e gêneros literários, há um ponto comum: o amor de Deus
pelo mundo, e a revelação de sua vontade nas palavras e ações dos
profetas, realizadas por meio de Jesus. Quando há dúvida entre um ou
outro texto mais controverso ou “incoerente”, leitores e leitoras
perspicazes sabem que é nas palavras e atitudes atribuídas aos profetas e
a Jesus que se encontram os pontos centrais de orientação para se viver
a fé de forma coerente e comprometida.
Neste ponto está a incompatibilidade da Bíblia com a chamada
Bancada BBB. A pauta do amor de Deus pelo mundo, encarnado em Jesus de
Nazaré, é justiça, despojamento e misericórdia. É a preferência pelos
mais fracos, chamados de “pequeninos”: os pobres, as crianças, as
mulheres, os desprezados, os presos, os estrangeiros. É uma ética que
nega e enfrenta a violência (a bala) e a desigualdade, o acúmulo e a
exploração (o boi).
Como chamar de Bancada da Bíblia aquele grupo que faz uso
dela para pregar e praticar justamente o oposto ao que os escritos
sagrados atestam?
Em homenagem ao Dia da Bíblia, a ser celebrado no domingo 10
entre evangélicos, ouso fazer uma proposta: vamos manter de forma
crítica o criativo apelido “BBB”: o B de Bala, o B de Boi, mas vamos
mudar o terceiro B. Proponho Boi, Bala e Babel.
A imagem de Babel, contida na narrativa bíblica, remete a confusão,
dominação, exploração. Cidade que, por isso, foi condenada e dissolvida
por Deus, que é misericordioso e justo.
O termo, portanto, parece ser mais coerente com aquilo que
representa a atual presença religiosa no Congresso Nacional. Assim
podemos fazer justiça à Bíblia e ao que ela representa, na direção
oposta às ações anticristãs que tais congressistas desenvolvem.
Nesse sentido, o Dia da Bíblia, que se aproxima, pode ser,
para os diferentes grupos evangélicos no Brasil, a oportunidade para se
reafirmar o que disse Jesus de Nazaré: “Felizes os que ouvem a palavra
de Deus e a praticam” (Lucas 11.28). E para assumir o compromisso de
direcionar 2018 para bem longe desta Babel.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/bancada-da-biblia-nada-disso-melhor-chama-la-de-bancada-de-babel
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