O Crucificado de ontem . . .
"A sexta-feira santa continua, mas não possui a última palavra. A
ressurreição, como irrupção do ser novo é a grande resposta do Pai e a
promessa para todos nós", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
Eis o artigo.
Hoje a maioria da humanidade vive crucificada pela miséria, pela
fome, pela escassez de água e pelo desemprego. Crucificada está também a
natureza devastada pela cobiça industrialista que se recusa a aceitar
limites. Crucificada está a Mãe Terra, exaurida a ponto de ter perdido seu equilíbrio interno que se mostra pelo aquecimento global.
Um olhar religioso e cristão vê o próprio Cristo presente em todos
estes crucificados. Pelo fato de ter assumido totalmente nossa realidade
humana e cósmica, ele sofre com todos os sofredores. A floresta que é derrubada pela motosserra significa golpes em seu corpo. Nos ecossistemas dizimados
e pelas águas poluídas, ele continua sangrando. A encarnação do Filho
de Deus estabeleceu uma misteriosa solidariedade de vida e de destino
com tudo o que ele assumiu, nossa inteira humanidade e tudo o que ela
pressupõe de sombras e de luzes.
O evangelho mais antigo, o de São Marcos, narra com
palavras terríveis a morte de Jesus. Abandonado por todos, no alto da
cruz, se sente também abandonado pelo Pai de bondade e de misericórdia.
Jesus grita:
“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? E dando um forte brado, Jesus expirou (Mc 15,34.37).
Jesus morreu não porque todos nós morremos. Ele morreu assassinado
sob a forma mais humilhante da época: a pregação na cruz. Pendendo entre
o céu e a terra, durante três horas agonizou na cruz.
A recusa humana pode decretar a crucificação de
Jesus; mas ela não pode definir o sentido que ele conferiu à
crucificação imposta. O crucificado definiu o sentido de sua
crucificação como solidariedade para com todos os
crucificados da história que, como ele, foram e serão vítimas da
violência, das relações sociais injustas, do ódio, da humilhação dos
pequenos e do rechaço à proposta de um Reino de justiça, de irmandade,
de compaixão e de amor incondicional.
Apesar de sua entrega solidária aos outros e a seu Pai, uma terrível e
última tentação invade seu espírito. O grande embate de Jesus agora que
agoniza é com seu Pai.
O Pai que ele experimentou com profunda intimidade filial, o Pai que ele havia anunciado como misericordioso
e cheio de bondade, Pai com traços de mãe carinhosa, o Pai cujo Reino
ele proclamara e antecipara em sua práxis libertadora, este Pai agora
parece tê-lo abandonado. Jesus passa pelo inferno da ausência de Deus.
Por volta das três horas da tarde, minutos antes do desenlace final,
Jesus gritou com voz forte: "Elói, Elói, lamá sabachtani: Meu Deus, Meu
Deus, por que me abandonaste"? Jesus está às raias da desesperança. Do
vazio mais abissal de seu espírito, irrompem interrogações pavorosas que
configuram a mais assustadora tentação sofrida pelos seres humanos e
agora por Jesus, a tentação do desespero. Ele se interroga:
"Será que não foi absurda a minha fidelidade? Sem sentido a luta
sustentada por causa dos oprimidos e por Deus? Não teriam sido vãos os
riscos que corri, as perseguições que suportei, o aviltante processo
jurídico-religioso a que fui submetido com a sentença capital: a
crucificação que estou sofrendo?"
Jesus encontra-se nu, impotente, totalmente vazio diante do Pai que
se cala e com isso revela todo o seu Mistério. Jesus não tem mais
ninguém a quem se agarrar.
Pelos critérios humanos, ele fracassou completamente. A própria
certeza interior se lhe esvai. Apesar de o sol ter tramontado de seu
horizonte, Jesus continua a confiar no Pai. Por isso grita com voz
forte: "Meu Pai, meu Pai!”. No auge do desespero, Jesus se entrega ao
Mistério verdadeiramente sem nome. Ele lhe será a única esperança para
além de qualquer segurança. Não possui mais nenhum apoio em si mesmo,
somente em Deus que se escondeu. A absoluta esperança de Jesus só é
compreensível no pressuposto de seu absoluto desespero. Onde abundou a
desesperança, superabundou a esperança.
A grandeza de Jesus consistiu em suportar e vencer esta assustadora
tentação. Esta tentação lhe propiciou uma entrega total a Deus, uma
solidariedade irrestrita a seus irmãos e irmãs também desesperados e
crucificados ao largo da história, um total desnudamento de si mesmo,
uma absoluta descentração de si em função dos outros. Só assim a morte é
morte mesmo e poderá ser completa: a entrega perfeita a Deus e aos seus
filhos e filhas sofredores, seus irmãos e irmãs menores.
As últimas palavras de Jesus mostram esta sua entrega, não resignada e
fatal, mas livre: "Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito" (Lc
23,46). "Tudo está consumado" (Jo 19,30)!
A sexta-feira santa continua, mas não possui a última palavra. A
ressurreição, como irrupção do ser novo é a grande resposta do Pai e a
promessa para todos nós.
OS CRUCIFICADOS DE HOJE . . .
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/566587-os-crucificados-de-hoje-e-o-crucificado-de-ontem
Analogia válida em termos literários no contexto sócio-histórico onde as minorias são oprimidas e suprimidas por uma parte da sociedade, hipócrita por sinal. Agora não se aplica a comparação destes mesmos oprimidos, vítimas da própria sociedade que integram, pois redundantemente são parte dela, paralela-las a Jesus. Esta justificativa se encontra em ver quem foi, e é, Jesus e quem somos.
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