Os bancos privados disputam com a Caixa Econômica Federal o destino de
43,6 bilhões de reais das contas inativas do fundo de garantia.
O governo liberou recursos das contas inativas do FGTS
O governo Temer coloca muitas esperanças na recuperação da economia em 2017. Sob intensas críticas de inação depois de o impeachment agravar a depressão, Michel Temer
anunciou um conjunto de iniciativas em dezembro de 2016, em particular a
liberalização dos recursos das contas inativas desde 2015 do Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
O FGTS é, talvez, o maior fundo de investimento da América Latina: cerca de 500 bilhões de reais de ativos, e patrimônio líquido superior a 100 bilhões. O Fundo de Garantia foi criado em 1966 e começou a operar em janeiro de 1967. O Fundo de Garantia foi formado por depósitos dos empregadores no valor de 8% da folha salarial e podia ser sacado em caso de demissão sem justa causa, compra de casa própria ou problemas de saúde.
Assim, contribuiu na época do "Milagre Econômico" (1967-1973) para a enorme rotatividade de empregos no mercado de trabalho brasileiro, essencial para o que se queria na época: manter o salário dos trabalhadores urbanos muito próximos da subsistência mínima e, ao mesmo, criar uma poupança compulsória que financiaria investimentos.
O FGTS foi administrado até 1986 pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) e foi essencial para a construção dos subúrbios de classe média nas grandes cidades brasileiras, central para o crescimento das grandes construtoras, sempre muito próximas do poder público. Os conjuntos populares das Companhias de Habitação (Cohabs), por sua vez, ficavam bem mais distantes dos centros das cidades e tinham uma função precisa: além de hospedar os trabalhadores menos qualificados (inclusive prestadores de serviço das residências nos subúrbios), valorizavam os terrenos desocupados desde os centros das cidades, com grande ganho patrimonial para os bem informados e seus aliados políticos. É essa política que está na raiz da grande horizontalidade e desigualdade nas áreas metropolitanas brasileiras, do enorme custo da infraestrutura urbana, tempo de deslocamento e, em parte, da preferência pelo automóvel individual.
A partir de 1986, o FGTS passou a ser gerenciado pela Caixa Econômica Federal, centralizando recursos dispersos na rede de bancos privados que participava do Sistema Financeiro da Habitação. Os recursos do FGTS são fundamentais para a Caixa, que assume os riscos das operações de crédito e protege o fundo de perda patrimonial. Os investimentos em saneamento e habitação popular dependem desse fundo compulsório e do crédito direcionado pela Caixa e dificilmente seriam atendidos pelos bancos privados.
Tais investimentos dependem também de estados e municípios e, portanto, caem quando uma recessão reduz a arrecadação tributária, e o governo federal, por sua vez, não apenas não compensa as unidades da Federação como também as forças a cortar investimentos para assegurar o pagamento de suas dívidas com a União e contribuir para a austeridade fiscal.
O Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados (Proes, 1997) e a Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000 são os instrumentos legais da submissão das finanças de estados e municípios ao governo federal e, em última instância, à pressão dos credores da dívida pública.
Em 1999 e 2000, por exemplo, a Caixa não fechou qualquer novo contrato de financiamento com entes públicos. Assim, nas recessões, sobram recursos do FGTS e aumentam as pressões, mais dos bancos privados que dos correntistas, para liberalizar seu direcionamento.
A primeira onda de saque neoliberal dos recursos do FGTS veio com o Fundo Mútuo de Privatizações (FMP-FGTS) de 1997, que autorizou o uso de 50% do saldo do Fundo de Garantia para aplicações na Bolsa de Valores. A Caixa também podia conceder recursos do FGTS para incentivar prefeituras a privatizar serviços de água e saneamento.
Vários economistas neoliberais, notadamente o banqueiro Pérsio Arida, chegaram a propor o leilão dos recursos do FGTS e do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT, destinado ao seguro desemprego, ao Abono Salarial e aos financiamentos do BNDES) para os bancos privados que oferecessem melhor remuneração, destruindo o sistema público de crédito direcionado.
Em 2007, os recursos do FGTS continuavam a sobrar, mas, felizmente, as prioridades eram outras. Foi criado o Fundo de Investimento do FGTS (FI-FGTS), autorizado a financiar, além do saneamento, os setores de energia e transportes. O FI-FGTS foi importante para vários empreendimentos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC I), sem risco para o Fundo, dada a garantia da Caixa. Depois veio o Minha Casa Minha Vida.
A nova onda de saque neoliberal dos fundos compulsórios começou recentemente com o FGTS, mas deve seguir em breve para o FAT e o BNDES. Os recursos do Fundo de Garantia sobram não apenas porque o governo federal regula com mão de ferro as finanças das entidades subnacionais, mas deve forçar a privatização das empresas de saneamento no bojo do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Isto foi feito com o Rio de Janeiro: a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) foi imposição para o socorro federal ao estado.
Um relatório do banco de que Arida é sócio, o BTG Pactual ("Saneamento Básico no Brasil - Uma Revolução se Aproxima?"), calcula o negócio da privatização do saneamento entre 20,56 bilhões e 35,67 bilhões de reais. Não vai demorar para que se proponha, como em 1997, o uso do FGTS para incentivar a privatização do que deveria financiar a baixo custo. Como na década de 1990, o resultado provável seria a elevação de tarifas e do custo-Brasil para empresas usuárias, e a queda de salários reais. Os ganhadores são conhecidos.
Enquanto isso, os bancos privados disputam com a Caixa a destinação dos recursos das contas inativas no FGTS: 43,6 bilhões de reais do FGTS acumulados até 2015, quase um 14º salário. É claro que não devem ser usados para construção residencial, pois podiam ser usados assim.
O uso como entrada para crédito de bens de consumo duráveis tampouco será muito estimulado, dado o risco de desemprego e a retração dos bancos, que explicam a queda real de 5,1% do saldo de operações de crédito para pessoas físicas em 2016. O mais provável é que quitem dívidas de consumidores, sobretudo de mais baixa renda. Os correntistas de maior renda, por sua vez, serão objeto de leilão por gestores de fundos privados que aplicam principalmente em títulos públicos com juros elevadíssimos.
É claro que a liberação do FGTS trará algum alívio para trabalhadores endividados, mas não é isso que pode trazer de volta a maravilha do crescimento. O próprio FMI admitiu que o investimento público em infraestrutura tem grandes efeitos multiplicadores sobre a renda privada e, com o tempo, gera recursos tributários que o financiam.
Dado o medo que os bancos privados têm de financiar qualquer empreendimento no longo prazo, o crédito direcionado da Caixa e do BNDES seria essencial para nos retirar do círculo vicioso da austeridade. A eficiência macroeconômica, contudo, é o último dos cálculos que passam pela cabeça dos que defendem o saque neoliberal do FGTS.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/economia/o-saque-neoliberal-do-fgts
O FGTS é, talvez, o maior fundo de investimento da América Latina: cerca de 500 bilhões de reais de ativos, e patrimônio líquido superior a 100 bilhões. O Fundo de Garantia foi criado em 1966 e começou a operar em janeiro de 1967. O Fundo de Garantia foi formado por depósitos dos empregadores no valor de 8% da folha salarial e podia ser sacado em caso de demissão sem justa causa, compra de casa própria ou problemas de saúde.
Assim, contribuiu na época do "Milagre Econômico" (1967-1973) para a enorme rotatividade de empregos no mercado de trabalho brasileiro, essencial para o que se queria na época: manter o salário dos trabalhadores urbanos muito próximos da subsistência mínima e, ao mesmo, criar uma poupança compulsória que financiaria investimentos.
O FGTS foi administrado até 1986 pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) e foi essencial para a construção dos subúrbios de classe média nas grandes cidades brasileiras, central para o crescimento das grandes construtoras, sempre muito próximas do poder público. Os conjuntos populares das Companhias de Habitação (Cohabs), por sua vez, ficavam bem mais distantes dos centros das cidades e tinham uma função precisa: além de hospedar os trabalhadores menos qualificados (inclusive prestadores de serviço das residências nos subúrbios), valorizavam os terrenos desocupados desde os centros das cidades, com grande ganho patrimonial para os bem informados e seus aliados políticos. É essa política que está na raiz da grande horizontalidade e desigualdade nas áreas metropolitanas brasileiras, do enorme custo da infraestrutura urbana, tempo de deslocamento e, em parte, da preferência pelo automóvel individual.
A partir de 1986, o FGTS passou a ser gerenciado pela Caixa Econômica Federal, centralizando recursos dispersos na rede de bancos privados que participava do Sistema Financeiro da Habitação. Os recursos do FGTS são fundamentais para a Caixa, que assume os riscos das operações de crédito e protege o fundo de perda patrimonial. Os investimentos em saneamento e habitação popular dependem desse fundo compulsório e do crédito direcionado pela Caixa e dificilmente seriam atendidos pelos bancos privados.
Tais investimentos dependem também de estados e municípios e, portanto, caem quando uma recessão reduz a arrecadação tributária, e o governo federal, por sua vez, não apenas não compensa as unidades da Federação como também as forças a cortar investimentos para assegurar o pagamento de suas dívidas com a União e contribuir para a austeridade fiscal.
O Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados (Proes, 1997) e a Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000 são os instrumentos legais da submissão das finanças de estados e municípios ao governo federal e, em última instância, à pressão dos credores da dívida pública.
Em 1999 e 2000, por exemplo, a Caixa não fechou qualquer novo contrato de financiamento com entes públicos. Assim, nas recessões, sobram recursos do FGTS e aumentam as pressões, mais dos bancos privados que dos correntistas, para liberalizar seu direcionamento.
A primeira onda de saque neoliberal dos recursos do FGTS veio com o Fundo Mútuo de Privatizações (FMP-FGTS) de 1997, que autorizou o uso de 50% do saldo do Fundo de Garantia para aplicações na Bolsa de Valores. A Caixa também podia conceder recursos do FGTS para incentivar prefeituras a privatizar serviços de água e saneamento.
Vários economistas neoliberais, notadamente o banqueiro Pérsio Arida, chegaram a propor o leilão dos recursos do FGTS e do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT, destinado ao seguro desemprego, ao Abono Salarial e aos financiamentos do BNDES) para os bancos privados que oferecessem melhor remuneração, destruindo o sistema público de crédito direcionado.
Em 2007, os recursos do FGTS continuavam a sobrar, mas, felizmente, as prioridades eram outras. Foi criado o Fundo de Investimento do FGTS (FI-FGTS), autorizado a financiar, além do saneamento, os setores de energia e transportes. O FI-FGTS foi importante para vários empreendimentos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC I), sem risco para o Fundo, dada a garantia da Caixa. Depois veio o Minha Casa Minha Vida.
A nova onda de saque neoliberal dos fundos compulsórios começou recentemente com o FGTS, mas deve seguir em breve para o FAT e o BNDES. Os recursos do Fundo de Garantia sobram não apenas porque o governo federal regula com mão de ferro as finanças das entidades subnacionais, mas deve forçar a privatização das empresas de saneamento no bojo do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Isto foi feito com o Rio de Janeiro: a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) foi imposição para o socorro federal ao estado.
Um relatório do banco de que Arida é sócio, o BTG Pactual ("Saneamento Básico no Brasil - Uma Revolução se Aproxima?"), calcula o negócio da privatização do saneamento entre 20,56 bilhões e 35,67 bilhões de reais. Não vai demorar para que se proponha, como em 1997, o uso do FGTS para incentivar a privatização do que deveria financiar a baixo custo. Como na década de 1990, o resultado provável seria a elevação de tarifas e do custo-Brasil para empresas usuárias, e a queda de salários reais. Os ganhadores são conhecidos.
Enquanto isso, os bancos privados disputam com a Caixa a destinação dos recursos das contas inativas no FGTS: 43,6 bilhões de reais do FGTS acumulados até 2015, quase um 14º salário. É claro que não devem ser usados para construção residencial, pois podiam ser usados assim.
O uso como entrada para crédito de bens de consumo duráveis tampouco será muito estimulado, dado o risco de desemprego e a retração dos bancos, que explicam a queda real de 5,1% do saldo de operações de crédito para pessoas físicas em 2016. O mais provável é que quitem dívidas de consumidores, sobretudo de mais baixa renda. Os correntistas de maior renda, por sua vez, serão objeto de leilão por gestores de fundos privados que aplicam principalmente em títulos públicos com juros elevadíssimos.
É claro que a liberação do FGTS trará algum alívio para trabalhadores endividados, mas não é isso que pode trazer de volta a maravilha do crescimento. O próprio FMI admitiu que o investimento público em infraestrutura tem grandes efeitos multiplicadores sobre a renda privada e, com o tempo, gera recursos tributários que o financiam.
Dado o medo que os bancos privados têm de financiar qualquer empreendimento no longo prazo, o crédito direcionado da Caixa e do BNDES seria essencial para nos retirar do círculo vicioso da austeridade. A eficiência macroeconômica, contudo, é o último dos cálculos que passam pela cabeça dos que defendem o saque neoliberal do FGTS.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/economia/o-saque-neoliberal-do-fgts
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