É do que trata a reforma da Previdência e o projeto de terceirização ampla e irrestrita.
Vivemos inegavelmente tempos difíceis no que diz
respeito aos direitos conquistados. A aprovação pela Câmara dos
Deputados do projeto que terceiriza todas as atividades
de uma empresa, não somente a atividade meio, como vigorava até então,
precariza a vida do trabalhador e da trabalhadora e é um grande
retrocesso e uma saída regressiva.
A reforma da Previdência,
que caminha no Congresso sob a forma da Proposta de Emenda
Constitucional nº 287, também é um acinte, pois aumenta o tempo de
contribuição para 25 anos e a idade mínima para 65 anos para as
mulheres.
Essa medida não leva em consideração a divisão sexual do trabalho
imposta em nossa sociedade. Mulheres ainda são aquelas moldadas para
ser responsáveis pela criação dos filhos e os trabalhos domésticos. Não
se vê que as mulheres partem de pontos diferentes, sobretudo desiguais.
Para além dessa constatação, é necessário fazer algumas observações.
Que as duas medidas são configuradas pelo
retrocesso, sabemos, porém, questiono: quais os grupos mais afetados e
por que existe uma maior comoção a partir do momento em que aqueles mais
privilegiados correm o risco de ser atingidos?
Explico: de modo geral, mulheres negras não conseguiam se
aposentar antes de a PEC 287 ser proposta. Por conta da informalidade,
de uma relação descontínua no mercado de trabalho e da dificuldade das
empregadas domésticas de terem seus direitos garantidos, esse grupo
historicamente sempre se viu à margem. E isso se dá por conta da relação
direta entre escravismo e trabalho doméstico.
No processo de industrialização do
Brasil, com o incentivo à imigração de trabalhadores europeus, a
população negra saiu da condição de escravizada para aquela de
“precarizada” ou desempregada. Mulheres negras empreendiam por
necessidade ou trabalhavam como domésticas nas casas dos ex-senhores.
Essa relação de desigualdade leva esse grupo a uma condição de maior
vulnerabilidade.
Para se ter uma ideia, de 2003 a 2014,
segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua
(Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o
contingente de domésticas sem carteira assinada que contribuíam para o
INSS aumentou de 8% para 23% no período.
Ainda assim, a categoria tem dificuldade
de se aposentar por tempo de contribuição, pois o setor é marcado por
grande informalidade. No último trimestre do ano passado, 68,1% das
trabalhadoras domésticas não tinham carteira assinada. O mesmo
raciocínio se aplica em relação ao trabalho terceirizado para atividades
meio.
Existe um grande contingente de negras
nessa relação de trabalho, sobretudo em funções de limpeza. Essas
medidas vão dificultar ainda mais a vida dessas trabalhadoras, que já
viviam em uma realidade precária. Antes essa condição não gerava muita
comoção, justamente por se tratar de grupos historicamente
“invisibilizados”.
Por conta desses atentados, propagou-se a ideia de que
viveríamos uma relação de escravidão moderna, o que, a meu ver, é
equivocado.
A escravidão moderna refere-se à
comercialização de seres humanos que legitimou a dominação europeia. Ela
fez parte da história de muitos povos. Quem perdia a guerra tornava-se
propriedade do outro e existem vários exemplos de como esse processo se
dava.
O que entendemos por escravidão moderna
foi, porém, a mercantilização de indivíduos, corpos negros como
mercadoria a atravessar o Oceano Atlântico e para enriquecer os senhores
na base do chicote nos países para os quais foram sequestrados.
Entendo o uso do termo escravidão
moderna quando se mencionam os quase 46 milhões de seres humanos a viver
em um sistema análogo à escravidão pelo mundo. Nesse caso, falamos de
tráfico humano, trabalho forçado, escravidão por endividamento,
casamento forçado ou servil e exploração sexual comercial.
Em relação à redução das leis trabalhistas, diria que viveremos uma espécie de “escravidão remunerada”.
Em um país que ainda nega a terrível
herança dos mais de 300 anos de escravidão e as violências históricas
contra a população negra, apesar do reconhecimento de que a escravidão
foi um crime contra a humanidade, como consta no documento final da
Conferência de Durban, em 2001, é necessário fazer a historicidade do
conceito. Nenhum conceito é “a-histórico”.
Acredito que devemos lutar contra todas
as formas de injustiças sociais e não somente contra aquelas que passam a
nos atingir. É um dever moral exibir a realidade dos grupos
categorizados “como vidas que não importam”, para citar Judith Butler. Dessa forma, poderemos realmente denunciar de maneira mais ampla todas as violências e reivindicar a humanidade verdadeira.
Djamila Ribeiro
Pesquisadora na área de Filosofia Política e feminista. Foi
secretária-adjunta da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São
Paulo
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/revista/946/escravidao-remunerada
Nenhum comentário:
Postar um comentário