O massacre em curso.
Foto de Lula Marques
Valdete Souto Severo, juíza no Tribunal Regional do Trabalho da
Quarta Região (RS), adverte sobre o cenário das reformas do governo
Temer que massacram os trabalhadores: “muito mais está por vir”, num
processo de “desmantelamento completo do Estado” e liquidação da frágil
rede de proteção social aos pobres criada a partir da Constituição de
1988.
Conversei com ela para uma entrevista veiculada no site Previdência, Mitos e Verdades.
Para ela, o processo de destruição das instituições do Estado é
liderado pelas cúpulas das próprias instituições, articuladas com forças
econômicas poderosas; só a mobilização de rua conseguirá barrar a
“reforma” da Previdência e a trabalhista.
Ela relatou um episódio emblemático e assustador, que revela o animus dos poderosos, sobre o corte
de 50% dos recursos para custeio e 90% da verba para investimento da
Justiça do Trabalho no Projeto de Lei Orçamentária de 2016: “O Ricardo
Barros, que agora é ministro da Saúde, foi o deputado relator do projeto
de Orçamento de 2016 e escreveu que a redução era uma punição para que a
Justiça do Trabalho repensasse sua posição, porque somos ‘extremamente
condescendentes com o trabalhador’ E quer saber mais? Pode parecer
inacreditável, mas diante de uma ação de inconstitucionalidade contra
essa lei absurda o STF considerou essa aberração constitucional.”
O cenário visto pela juíza é como uma atualização dos momentos
mais dramáticos da vida do povo de Israel, denunciados pelos profetas
bíblicos. Durante a conversa veio-me à mente mais de uma vez o grito
angustiado e a acusador de Miqueias, 700 anos antes de Cristo, contra os
poderosos de então: “Os que devoram a carne do meu povo, arrancam-lhe a
pele, quebram-lhe os ossos, cortam-nos como pedaços na panela e como
carne dentro do caldeirão!” (Mq 3,3).
Leia a íntegra da conversa telefônica, acontecida nesta terça, 28 de março.
Mauro Lopes
Como a senhora analisa este tripé de reformas do governo
Temer, o teto nos gastos sociais, a terceirização e a liquidação da
Previdência e seus efeitos sobre os trabalhadores?
Olha, acho que falta colocar um pé, e tornar este banquinho uma
cadeira: a reforma do ensino médio. É um projeto de desmanche, de
desmantelamento completo do Estado. Um ataque a todas as frentes capazes
de gerar resistência. Então, a reforma do ensino é fundamental, porque
ela vai criar uma geração operários, educados para executar tarefas,
receber pouco e aceitar a sujeição que é intrínseca à relação entre
capital e trabalho , que serão submetidos a este reino do “precariado”,
sem acesso à Previdência, que pretendem liquidar, ou aos recursos
públicos, que serão reduzidos a quase nada para os pobres: desde seguro
desemprego ao acesso a saúde, à rede de proteção social da Constituição
de 1988 que está sendo estrangulada.
Estamos à beira do inferno pra os trabalhadores e trabalhadoras…
Já estamos a caminho, escorregando pra baixo. As pessoas ainda não se
deram conta, mas haverá, se aprovados os projetos que tramitam no
congresso, várias modalidades de contratos de trabalho com previsão de
prazos curtos de duração (flexível, por safra, intermitente) sem
qualquer proteção, como o acréscimo de 40% em caso de despedida, aviso
prévio ou acesso ao seguro desemprego, pois agora só com um ano de
trabalho é possível obter o benefício -e nessas modalidades de trabalho
precário ninguém vai chegar nem perto de um ano. Será uma loucura.
Porque a senhora fala em desmantelamento completo do Estado?
Há um esgotamento da própria função do Estado, a forma de organização
da sociedade que conhecemos está em evidente colapso. Há classes ou
segmentos econômico-políticos que passaram a enxergar na
desregulamentação selvagem e radical o melhor caminho para o atendimento
de seus interesses, na contramão do que a civilização ocidental
construiu por dois séculos, sendo o Estado do Bem-Estar Social o
principal alvo dessa ação destrutiva. O que está tornando esse processo
ainda mais dramático e violento, como estamos vendo no Brasil, é que
forças integrantes do próprio aparelho de Estado estão atuando no
sentido de sua destruição –alojadas especialmente nas cúpulas do Poderes
tradicionais, com ação que pretende apenas preservar direitos para o
capital internacional.
É um processo global e não apenas brasileiro…
O cenário é muito grave em quase todo o planeta. O que estamos
assistindo no Brasil hoje aconteceu na Europa e um pouco depois já na
América Latina. O fato é que houve resistência no Brasil, mas se você
observar bem, alguns dos projetos que estão desengavetando agora são do
governo FHC. A terceirização é um exemplo: desengavetaram o PL 4302, de
1998, portanto, da época do governo FHC, aprovado por um Senado de
composição completamente diversa da atual, exatamente porque houve
resistência suficiente para impedir a aprovação do PLC 30, cujo projeto é
de 2004. O projeto do governo FHC foi uma articulação de resposta à
crise russa de 1998; os projetos aprovados na Europa foram uma resposta
do mercado à quebra do Lehman Brothers e outros; agora, no Brasil, é a
resposta dos segmentos financeiros ou financeirizados ao fim do ciclo
das commodities e à recessão que se apresenta na verdade desde 2014.
O que vem pela frente?
Estamos em um processo cuja implementação está começando ainda. A
reforma trabalhista e a da Previdência ainda vão trazer muitas notícias
ruins para os trabalhadores, trabalhadoras e para o projeto de um Brasil
que se seja minimamente decente. Há mais de 30 projetos em tramitação
no Congresso, todos apresentados pelo mesmo conjunto de forças que
sustenta as reformas de Temer. Eles irão liquidar a CLT por completo. Há
um pacote de desumanidades, a começar pelo aumento da jornada de
trabalho, que nos fará voltar ao cenário dos primórdios da revolução
industrial.
Há uma ofensiva evidente contra a Justiça do Trabalho, que
foi considerada descartável pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, um dos principais protagonistas na aprovação das reformas. Como vocês estão sentindo isso?
Faz parte do projeto extinguir a Justiça do Trabalho. E mesmo dentro
da instituição temos vozes nesse sentido, basta pensar nos
pronunciamentos do presidente do TST (Tribunal Superior do Trabalho), o
Ives Gandra Martins Filho, para não falar das barbaridades que o Rodrigo
Maia tem dito, com apoio entusiasmado da mídia conservadora. Vou te
contar algo que é público, mas pouca gente sabe, porque não leu o
relatório da lei orçamentária de 2016. O Ricardo Barros, que agora é
ministro da Saúde, foi o deputado relator do projeto de Orçamento e
escreveu que a redução era uma punição para que a Justiça do Trabalho
repensasse sua posição, porque somos ‘extremamente condescendentes com o
trabalhador’ E quer saber mais? Pode parecer inacreditável, mas diante
de uma ação de inconstitucionalidade contra essa lei absurda o STF a
considerou essa constitucional! Agora me diga como é possível para
qualquer instituição ou empresa ou organização de qualquer tipo
funcionar em condições razoáveis com um corte abrupto em seu orçamento
de custo de 50% e de 90% de seus investimentos, sem qualquer
planejamento anterior, sem nada…
Qual o clima na Justiça do Trabalho?
Há uma sensação de falta de apoio, de respaldo. Mas não creio que
seja algo só nosso. Porque estamos em meio a uma crise institucional,
então o desamparo e desespero é geral, claro que apenas para o lado
fraco da corda. No Judiciário é uma situação sem precedentes em décadas:
o Supremo por vezes se aparta do ordenamento jurídico do país, e julga a
partir de considerações econômicas, como vimos no caso da decisão que
reduziu o prazo de prescrição para cobrar o recolhimento do FGTS; e são
considerações econômicas parciais, todas questionáveis.
Como resistir a esta força avassaladora?
Bem, há um processo importante acontecendo, de união, de novas
articulações no interior das instituições, é uma reação ao desmonte, de
gente que quer resistir mas não sabe muito bem como. Precisamos levar em
conta que isso está acontecendo na “base” de diferentes instituições,
entre os estudantes, e mesmo que não haja forças para mudar o quadro
neste momento, trata-se de uma união importante de forças, estamos
acordando. O problema é que se nos damos conta de que há um esgotamento
do sistema, acabamos tendo de concluir que o único jeito de barrar as
reformas de destruição do Estado Social é nas ruas. Não me parece haver
outra alternativa neste momento.
Disponível em: http://outraspalavras.net/maurolopes/2017/03/29/juiza-denuncia-liquidacao-do-estado-massacre-dos-pobres-e-adverte-muito-mais-esta-por-vir/
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