Por: Jéferson Ferreira Rodrigues
A vida humana
irrompe com suas peculiaridades. Nela vive-se aquilo que existe de
melhor e de pior na arte de ser gente. Todas as ações exigem a
interpelação de uma postura ética. Afinal de contas,
diante de tais situações, sempre precisamos tomar uma decisão e
deliberar, partindo de pressupostos que iluminam nossa capacidade de
escolher e nossa consciência. A pergunta básica é: diante disso, o que é
certo fazer?
Na história humana, inúmeros são os sistemas morais/éticos. A moralidade não é apenas um conjunto de regras e normas. Ela implica um estilo de vida",
uma forma de viver e assumir(-se) a(na) existência com responsabilidade
e liberdade. Tais sistemas balizam as relações coletivas e
correspondem, em certa medida, a busca humana incessante por algo
melhor, ou ainda por uma existência plena de sentido.
Nesse caso, sobrevém o “anseio” por felicidade e/ou realização,
assumido em seus dramas e encantos, vividos no cultivo contínuo da
sabedoria, em fina sintonia, consigo mesmo e com os outros (não-humanos e
transcendente/mistério). Esse anseio está consonante com o lugar de
origem. O agir humano irrompe de experiências
concretas. Qualquer universalização abstrata, que não considera os
lugares de origem, poderá ferir profundamente o agir humano no geral.
A “força”
da universalidade surge quando os traços de uma particularidade
mostram-se na sua singularidade. E aqui o conceito estético pode ajudar:
“queres ser universal, comece pintando sua aldeia” (Leon Tolstoi).
O “clássico” recebe tal distinção, porque soube atingir a muitos, não
por imposição, mas porque soube mostra-se sem receios e sem rodeios. O
agir humano pode seguir a mesma lógica: quanto mais contextual, será
mais universal.
Qualquer elaboração sofisticada, em termos morais, precisará estar em
sintonia com o mundo que se vive e se propõe como “norma” e "estilo" de
vida. Cada lugar e tempo, guardados em suas complexidades,
exigem suas perguntas e respostas. Não é suficiente traduzir elementos
de ontem para hoje, sem considera-los nas suas complexidades e na sua
proposição de “visão de mundo”.
Por isso, o mais adequado é falar de “interpretação” de tais mundos, pois os guarda em suas próprias alteridades, mas provoca a consciência
de que algo precisará ficar, e somente assim, permitir-se-á que o novo e
o diferente aconteçam. Os apegos em elementos “acidentais” não permite
uma renovada interpretação. Colocam-se os holofotes naquilo que pouco
significa. E aqui surge a tentação de permanecer no conforto das
respostas prontas.
Entretanto, será preciso dar conta de um mundo em profundas transformações,
onde novas lógicas emergem, e como tal, exigem suas próprias respostas.
A produção de novas respostas porta de uma tensão vitalizante: ouvir
aquilo que foi dito na história humana, mas exercitar a criatividade
para compor e responder com atualidade as exigências e as demandas de
cada tempo. Tal postura é válida para o mundo cultural e religioso.
Hoje se fala em decadência moral. As pessoas não
encontram mais “horizontes” seguros para buscarem seus anseios de
felicidade e de realização. Não se sabe ao certo o que precisa ou se
deve fazer. As múltiplas possibilidades
não dão conta e aprofundam cada vez mais a sensação de vazio e de
incerteza que visita o pensamento e o agir do ser humano em nossos dias.
E aqui surgem dois riscos: relativismo (flexibilização absoluta) e fundamentalismo (rigidez absoluta).
Tal cenário marcado por ausências e incertezas, na verdade, é o
início de um novo momento na/para a humanidade. Ele não encontra
terminologia adequada, mas aqui chamo de “efeito” pós-modernidade.
De fato, não sabemos ao certo como tudo isso irá se desenvolver, mas é o
momento inicial de “mudanças” substanciais nas estruturas humanas como
um todo, em suas múltiplas dimensões. O que está acontecendo não é
provisório e marcará profundamente essa e as gerações futuras. Ele
provoca um desconforto natural.
O “novo” sempre nos desafia. E aqui surge: “Tenta não se acostumar”. É
um mundo onde as lógicas não estão bem definidas e bem delimitadas. É
um mundo que vive no imprevisível, sem muito esperar, deixando que tudo
flua, sem nada ser contido. Nele é permitido perder-se, para
encontrar-se no outro. E como tal, será oportuno cultivar um aprendizado
no exercício da consciência e da liberdade, para o benefício de todos, ou pelo menos, de muitos.
A moral cristã
não ficará imune do “enfrentamento” das questões que emergem desse
“novo mundo” que irrompe. Ela poderá dar sua contribuição, nessa busca
humana, de encontrar-se na profundidade de tantos contornos. Não serão
suficientes respostas prontas: sempre foi assim. Será preciso auscultar
as inquietações das pessoas e lhes fazer companhia. Entendê-las em seus
acertos e dilemas. Discernir com elas aquilo que é mais adequado. E aqui (re)visitar a tradição poderá ser a “oportunidade” de um aprendizado recíproco.
Caso contrário, as questões, no âmbito da moralidade, não ganharão a
dignidade necessária e permanecerão no “limbo” das margens sem
fronteiras. Será preciso (re)pensar a postura de “saber absoluto” entranhado no pensamento eclesial. A infalibilidade moral
precisará encontrar ressonância na vida falível dos humanos. E aqui,
não é oportuno, uma experiência eclesial que pese em demasia as pessoas.
Como tal, uma Igreja de muitos “não” deparar-se-á com uma sociedade
plural dos muitos “sim”.
A Igreja,
em seu ensinamento moral, terá a oportunidade de ajudar as pessoas a
amadurecer sem medo e sem receios. Ela mesmo terá a oportunidade de
(re)interpretar-se e renovar-se à luz das questões e dos desafios desse e
de cada tempo. Os conflitos são inevitáveis, mas
ajudam no processo de amadurecimento. O salto de qualidade reside na
experiência de um Deus, que no seu amor pleno, inspira e propõe
libertação de todas as amarras e rodeios, para bem cultivar a liberdade e
a consciência diante de si e diante do agir.
A ética cristã vivida na experiência salutar do amor de Deus, não é um sistema de normas e de preceitos, mas uma atitude renovada e aberta diante de si e diante dos outros. Essa atitude está consonante com a própria atitude de Jesus de Nazaré,
o Filho, que no despojamento de si aventura-se, na história humana,
para mostrar a vontade de Deus. É a vontade de um Deus que se faz
presença e caminha ao lado das pessoas. Não despreza ninguém, mas
convida para uma nova forma de viver.
Em Jesus, o estilo de vida não
correspondia as “lógicas” oficiais do seu tempo. Elas estavam
fortemente marcadas por uma estrutura jurídica e centradas na
purificação. Era traduzia-se na moral dos escolhidos e dos perfeitos.
Não estava preocupado com as prescrições, apesar de não negligenciá-las,
mas amplia-as buscando o essencial. Ele, ao contrário, aproxima-se dos
desqualificados para a sociedade e para a religião, inclusive ganha um
rótulo dos especialistas em julgar: “beberão e comilão, amigos dos
pecadores”.
A ética de Jesus está atrelada a experiência da mesa. Ela é um lugar apropriado e privilegiado do encontro escandaloso com os mais vulneráveis. Ali comunica a boa-notícia do Reino.
Todos têm lugar e importância. É uma mudança radical. Não acentua a
purificação e o legalismo, mas busca aperfeiçoar a vida das pessoas numa
“nova relação” com elas próprias, com os outros e com Deus. Nela
irrompe a lógica reciprocidade e da busca pelo melhor.
Nesse sentido, acontece uma inversão na lógica dos entendidos: não é o ser humano que com suas ações aperfeiçoa sua vida, mas Deus que irrompendo na sua história, concede-lhe sua graça, para que possa viver plenamente, acertando e errando, na busca pela plenitude e pelo lugar definitivo em Deus. E é aqui que se encontra a força da palavra e do convite de Jesus: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. É uma mudança radical, que não dá importância para as prescrições, apesar de não negligenciá-las, mas amplia buscando o essencial como caminho de real libertação.
A ética cristã é um estilo de vida
em conformidade com o Evangelho, sintonizado com as perguntas que hoje
fazemos, com as situações que hoje nos deparamos, com as injustiças que
hoje nos assolam, com as oportunidades que nos provocam. A Igreja tem se
afastado da rota do Evangelho. Esqueceu-se de percorrer suas veredas.
Criou para si muitas normas e regras que não cabem nas linhas e na
postura do Evangelho. É preciso discernimento para recolocar-se e/ou
converter-se na mesma rota do Evangelho.
Diante de um “novo agir” é lamentável perceber que nem sempre o Evangelho possui o espaço que lhe é devido na vida das pessoas, que vivem sua fé na experiência cristã.
Não é possível entender, como um país que se “orgulha” e até “briga”
para ser considerado cristão, apresenta tamanha desigualdade humana e
social. É inexplicável. O Evangelho não repercute em nós, e com isso,
surgem sujeitos de todo os tipos, em todos os níveis, mas quero acentuar
aqueles(as) tipo Eduardo Cunha, que com uma “fachada” cristã, realizam atrocidades e acaba repercutindo na exclusão de mais pessoas vulneráveis.
Para aprofundar nosso debate, seguimos com José Roque Junges, no Cadernos Teologia Pública, edição 07,
onde através de outra leitura reflete sobre a ética teológica diante
das transformações recentes e prospectivas de futuro. O autor não
pretende esgotar o assunto, mas perpassa os diversos momentos do
desenvolvimento do pensamento moral, inserido na tradição cristã, com
seus desdobramentos próprios. E sugere como indicação de um “novo
paradigma” para a reflexão o início de um percurso de discussão,
pensando a ética de modo mais complexo, tendo a contribuição de Edgar
Morin.
O texto está organizado com os seguintes tópicos:
1. Caráter revelacional e pneumático da ética cristã
2. Descompasso entre a sensibilidade ética atual e a moral oficial da igreja
3. Transformações recentes no paradigma de compreensão da teologia moral
4. Prospectivas de futuro: o paradigma da complexidade
José Roque Junges.
Desde 2002 Desde 2002, é professor e pesquisador na Universidade do
Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Cursou Filosofia e Teologia na
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS.
Especializou-se em História Contemporânea do Brasil na UNISINOS. É
mestre em Teologia Dogmática pela Pontificia Universidad Catolica de
Chile (1980) e doutor em Teologia Moral pela Pontificia Università
Gregoriana (Roma, 1985). Sua tese de doutorado intitula-se Conciencia y
discernimiento.
Algumas de suas obras:
Bioética sanitarista: desafios éticos da saúde coletiva (São Paulo: Loyola, 2014)
(Bio) Ética Ambiental. 2ed. (São Leopoldo: Unisinos, 2010)
Bioética: Hermenêutica e Casuística (São Paulo: Loyola, 2006)
Ética ambiental (São Leopoldo: Unisinos, 2004)
Evento Cristo e Ação Humana: Temas fundamentais de Ética teológica (São Leopoldo: Unisinos, 2001)
Ecologia e Criação. Resposta cristã à Crise Ambiental (São Paulo: Loyola, 2001)
Bioética: Perspectivas de Desafios (São Leopoldo: Unisinos, 1999)
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias/561596-tenta-nao-se-acostumar-a-vivencia-da-etica-crista-em-tempos-de-transformacoes-9
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