A medida, que limita os gastos públicos por 20 anos, consagra o Brasil como paraíso dos rentistas.
Os gastos com juros da dívida pública não serão limitados, e o Brasil é recordista mundial neste quesito
Figura no panteão
dos anúncios da equipe econômica do governo a Proposta de Emenda à
Constituição para instituir o Novo Regime Fiscal, a PEC 241.
Em síntese, o “novo regime fiscal”
pretende fixar limite à despesa primária dos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário, para cada exercício e pelos próximos 20 anos.
Para 2017, o limite será equivalente à
despesa primária realizada neste ano corrigida pelo IPCA. Daí em diante,
será definido pelo valor limite do ano imediatamente anterior corrigido
pelo índice de inflação.
A nova métrica do “equilíbrio fiscal”
busca impedir o crescimento real do gasto primário de um ano para o
outro. Sua ampliação será no máximo igual à inflação do ano anterior, ou
seja, concedida apenas a atualização monetária.
Como o PIB varia não só pela inflação,
que majora seu valor nominal, mas também pelo aumento de todos os bens e
serviços produzidos no País, salvo casos de deflação e recessão, a
defasagem na taxa de expansão da despesa primária provocará a perda da
sua participação relativa, decorrente de um crescimento inferior ao PIB.
O texto da PEC ressalta suas expectativas: “Estabilizar a despesa primária, como instrumento para conter a dívida pública...
Entre outros benefícios a implantação dessa medida... reduzirá o
risco-País e, assim, abrirá espaço para redução estrutural da taxa de
juros”.
Há quase 20 anos, o advento do superávit
primário estava prenhe da mesma esperança. De lá para cá a economia
brasileira exibiu ao longo de 16 anos (1998 a 2013) superávits
primários, o que não impediu o salto da dívida bruta do setor público do
patamar de 40%, em 1998, para quase 58% do PIB, em 2013, acompanhada da
elevação de 6% na carga fiscal, também medida em relação ao PIB.
Dizem os sabichões que a taxa de juro é
elevada por causa do estoque da dívida, mas o caso brasileiro parece
afirmar que a dinâmica da dívida é perversa em razão da taxa de juro de
agiota. Mesmo em 2015, o ano da desgraça fiscal, 82% do déficit nominal
que engordou a dívida bruta foram gerados pelos juros nominais. Em vez
de confirmarem as hipóteses que relacionam “espaço fiscal” e juros, os
dados apontam a patologia da economia brasileira.
Os resultados
primários informados pelo FMI tampouco oferecem amparo às hipóteses que
relacionam “espaço fiscal” e juros. Para evitarmos embates metodológicos
acerca de defasagens temporais entre causa e efeito, utilizaremos uma
singela média dos resultados primários de 2007 a 2015 para uma amostra
de países.
Rússia, Índia, China, México, Estados
Unidos, Reino Unido e Japão apresentam média deficitária (déficit
primário), enquanto Chile, Alemanha, Turquia e Brasil apresentam média
superavitária (superávit primário) no mesmo período.
O Japão, que figura há tempos entre as
menores taxas de juro do mundo, apresenta o pior resultado fiscal entre
os países, com um déficit primário médio no período em torno de 6,5%. O
México exibe déficit primário médio de 0,8% do PIB e pratica juros de
4,25%, já a Turquia com quase 1,3% de superávit médio sustenta juros de
7,5%.
O Brasil, com a maior média de superávit
primário entre 2007 e 2015 dentre os países listados (pasmem!), quase 2%
do PIB, exibe exuberantes 14,25% de taxa Selic, revertendo quase 10% do
PIB aos detentores da dívida pública, que representa menos de 70% do
PIB, enquanto a Grécia, que tem uma relação dívida/PIB de 170%, despende
aproximadamente 5% do seu PIB com juros.
No mundo da finança globalizada,
demarcado pela hierarquia entre as moedas, a descuidada abertura da
conta de capitais aprisionou as políticas econômicas “internas” à busca
de condições atraentes para os capitais em livre movimento. Esse é o
ponto central e inalcançável aos leitores de manuais papai-mamãe.
Surpreendentemente, o texto de proposição do “Novo Regime Fiscal”
apresenta, no entanto, oposição e crítica explícita à pedra angular da
Lei de Responsabilidade Fiscal, concomitantemente ao reconhecimento do
seu caráter pró-cíclico:
“O atual quadro constitucional e legal
também faz com que a despesa pública seja prócíclica, quer dizer, a
despesa tende a crescer quando a economia cresce e vice-versa. O
governo, em vez de atuar como estabilizador das altas e baixas do ciclo
econômico, contribui para acentuar a volatilidade da economia: estimula a
economia quando ela já está crescendo e é obrigado a fazer ajuste
fiscal quando ela está em recessão... Também tem caráter prócíclico a
estratégia de usar a meta de resultados primários como âncora da
política fiscal... o Novo Regime Fiscal será anticíclico: uma trajetória
real constante para os gastos associada a uma receita variando com o
ciclo resultarão em maiores poupanças nos momentos de expansão e menores
superávits em momentos de recessão. Essa é a essência de um regime
fiscal anticíclico.”
Gunnar Myrdal foi pioneiro na preocupação em estabelecer uma política fiscal capaz
de suavizar as flutuações econômicas. Sua proposta apoiava-se em
estímulos fiscais durante o período de retração e, simetricamente,
medidas restritivas durante a expansão, contendo pressões inflacionárias
e garantindo uma transição suave da parte descendente do ciclo. No
entanto, sua proposta permitia ao governo equilibrar o Orçamento durante
todo o ciclo econômico, em vez de considerá-lo ano a ano.
Apesar de assemelhar-se à proposta posterior de John Maynard Keynes para
um Orçamento de capital, Myrdal, em 1930, via o investimento público
como uma linha de defesa contra flutuações cíclicas, a ser ativada tão
somente quando as circunstâncias assim determinarem. Recomendava,
portanto, intervenções pontuais de curto prazo.
A ideia de Keynes, por contraposição, é
formulada como um projeto de longo prazo. Propunha a “socialização do
investimento” em companhia de um sistema tributário progressivo, a
eutanásia do rentista e o controle do movimento internacional de
capitais para prevenir a instabilidade. Entre outras coisas, Keynes
pretendia neutralizar os desvarios da finança nacional e internacional.
Sua proposta jamais foi implementada, nem sequer ensaiada.
As propostas de
Myrdal e Keynes sustentam em comum a regência de custeio e investimento
por métricas distintas. A imposição de um limite linear e genérico às
despesas primárias, como consta na PEC 241, pode deteriorar ainda mais a
qualidade do gasto público.
Historicamente as despesas com
atividades-meio e custeio apresentam tendência mais autônoma de
crescimento. Por exclusão, os investimentos assumem o papel de despesas
discricionárias. Os investimentos, já baixos e insuficientes, podem ser
comprimidos ainda mais com a imposição de um limite genérico. Um regime
fiscal que se pretende anticíclico necessariamente deve enfrentar a
composição das despesas primárias.
A abordagem do Orçamento camuflada em uma
áurea exclusivamente técnica e científica delegável às burocracias não
eleitas transformou-se em ferramenta para limitar a disponibilidade de
políticas que pareçam viáveis para a comunidade.
O Orçamento é um pilar do Estado Social,
expressão da confiança ética construída a ferro e fogo pelos
subalternos, que impôs o reconhecimento dos direitos do cidadão, a
partir do princípio que estabelece que o nascimento de um cidadão
implica, por parte da sociedade, o reconhecimento de uma dívida. Dívida
com sua subsistência, com sua dignidade, com sua educação, com suas condições de trabalho e com sua velhice.
A imposição de limites cada vez mais
restritos às despesas com serviços essenciais, enquanto juros podem
exorbitar livremente, sinaliza simultaneamente credibilidade ao rentismo
e temor à população de moratória ao contrato social.
Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/revista/918/pec-241-a-moratoria-do-contrato-social
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