A roupa branca no varal era o único indício da religião da filha de
santo, que, até 2010, morava no Morro do Amor, no Complexo do Lins.
Iniciada no candomblé em 2005, ela logo soube que deveria esconder sua
fé: os traficantes da favela, frequentadores de igrejas evangélicas, não
toleravam a “macumba”. Terreiros, roupas brancas e adereços que
denunciassem a crença já haviam sido proibidos, há pelo menos cinco
anos, em todo o morro. Por isso, ela saía da favela rumo a seu terreiro,
na Zona Oeste, sempre com roupas comuns. O vestido branco ia na bolsa.
Um dia, por descuido, deixou a “roupa de santo” no varal. Na semana
seguinte, saía da favela, expulsa pelos bandidos, para não mais voltar.
—
Não dava mais para suportar as ameaças. Lá, ser do candomblé é
proibido. Não existem mais terreiros e quem pratica a religião, o faz de
modo clandestino — conta a filha de santo, que se mudou para a Zona
Oeste.
A situação da mulher não é um ponto fora da curva: já há
registros na Associação de Proteção dos Amigos e Adeptos do Culto Afro
Brasileiro e Espírita de pelo menos 40 pais e mães de santo expulsos de
favelas da Zona Norte pelo tráfico. Em alguns locais, como no Lins e na
Serrinha, em Madureira, além do fechamento dos terreiros também foi
determinada a proibição do uso de colares afro e roupas brancas. De
acordo com quatro pais de santo ouvidos pelo EXTRA, que passaram pela
situação, o motivo das expulsões é o mesmo: a conversão dos chefes do
tráfico a denominações evangélicas.
Atabaques proibidos na Pavuna
A
intolerância religiosa não é exclusividade de uma facção criminosa.
Distante 13km do Lins e ocupada por um grupo rival, o Parque Colúmbia,
na Pavuna, convive com a mesma realidade: a expulsão dos terreiros,
acompanhados de perto pelo crescimento de igrejas evangélicas.
Desinformada sobre as “regras locais”, uma mãe de santo tentou fundar,
ali, seu terreiro. Logo, recebeu a visita do presidente da associação de
moradores que a alertou: atabaques e despachos eram proibidos ali.
—Tive que sair fugida, porque tentei permanecer, só com consultas. Eles não gostaram — afirma.
A
situação já é do conhecimento de pelo menos um órgão do governo: o
Conselho Estadual de Direitos do Negro (Cedine), empossado pelo próprio
governador. O presidente do órgão, Roberto dos Santos, admite que já
foram encaminhadas denúncias ao Cedine:
— Já temos informações
desse tipo. Mas a intolerância armada só pode ser vencida com a chegada
do estado a esses locais, com as UPPs.
O deputado estadual Átila
Nunes (PSL) fez um pedido formal, na última sexta-feira, para que a
Secretaria de Segurança investigue os casos.
— Não se trata de
disputa religiosa mas, sim, econômica. Líderes evangélicos não querem
perder parte de seus rebanhos para outras religiões, e fazem a cabeça
dos bandidos — afirma.
Nas favelas, os ‘guerreiros de Deus’
Fernando
Gomes de Freitas, o Fernandinho Guarabu, chefe do tráfico no Morro do
Dendê, ostenta, no antebraço direito, a tatuagem com o nome de Jesus
Cristo. Pela casa, Bíblias por todos os lados. Já em seus domínios,
reina o preconceito: enquanto os muros da favela foram preenchidos por
dizeres bíblicos, os dez terreiros que funcionavam no local deixaram de
existir.
Guarabu passou a frequentar a Assembleia de Deus
Ministério Monte Sinai em 2006 e se converteu. A partir daí, quem
andasse de branco pela favela era “convidado a sair”. Os pais de santo
que ainda vivem no local não praticam mais a religião.
A situação
se repete na Serrinha, ocupada pela mesma facção. No último dia 22,
bandidos passaram a madrugada cobrindo imagens de santos nos muros da
favela. Sobre a tinta fresca, agora lê-se: “Só Jesus salva”.
O
babalaô Ivanir dos Santos, representante da Comissão de Combate à
Intolerância Religiosa (CCIR), criada justamente após casos de
intolerância contra religiões afro-brasileiras em 2006, afirma que os
casos serão discutido pelo grupo, que vai pressionar o governo e o
Ministério Público para que a segurança do locais seja garantida e os
responsáveis pelo ato sejam punidos. “Essas pessoas são criminosas e
devem ser punidas. Cercear a fé é crime”, diz o pai de santo.
Lei mais severa
Desde
novembro de 2008, a Polícia Civil considera como crimes inafiançáveis
invasões a templos e agressões a religiosos de qualquer credo a Lei Caó.
A partir de então, passou a vigorar no sistema das delegacias do estado
a Lei 7.716/89, que determina que crimes de intolerância religiosa
passem a ser respondidos em Varas Criminais e não mais nos Juizados
Especiais. Atualmente, o crime não prescreve e a pena vai de um a três
anos de detenção.
Filha de santo, que foi expulsa do Lins: ‘Não suportava mais fingir ser o que não era’.
—
Me iniciei no candomblé em 2005. A partir de minha iniciação, comecei a
ter problemas com os traficantes do Complexo do Lins. Quando cheguei à
favela de cabeça raspada, por conta da iniciação, eles viravam o rosto
quando eu passava. Com o tempo, as demostrações de intolerância
aumentaram. Quando saía da favela vestida de branco, para ir ao terreiro
que frequento, eles reclamavam. Um dia, um deles veio até a minha casa e
disse que eu estava proibida de circular pela favela com aquelas
“roupas do demônio”. As ameaças chegaram ao ponto de proibirem que eu
pendurasse as roupas brancas no varal. Se eu desrespeitasse, seria
expulsa de lá. No fim de 2010, dei um basta nisso. Não suportava mais
fingir ser o que eu não era e saí de lá.
Mãe de santo há 30 anos, expulsa da Pavuna: ‘Disseram que quem mandava ali era o ‘Exército de Jesus”.
—
Comprei, em 2009, um terreno no Parque Colúmbia, na Pavuna. No local,.
não havia nada. Mas eu queria fundar um terreiro ali e comecei a
construir. No início, só fazia consulta, jogava búzios e recebia
pessoas. Não fazia festas nem sessões. Não andava de branco pelas ruas
nem tocava atabaque, para não chamar a atenção. Um dia, o presidente da
associação de moradores foi até o local e disse que o tráfico havia
ordenado que eu parasse com a “macumba”. Ali, quem mandava na época era a
facção de Acari. Já era mais de santo há 30 anos e não acreditei
naquilo. Fui até a boca de fumo tentar argumentar. Dei de cara com
vários bandidos com fuzis, que disseram que ali quem mandava era o
“Exército de Jesus”. Disse que tinha acabado de comprar o terreno e que
não iria incomodar ninguém. Dias depois, cheguei ao terreiro e vi uma
placa escrito “Vende-se” na porta — eles tomaram o terreno e o puseram a
venda. Não podia fazer nada. Vendi o terreno o mais rapidamente
possível por R$ 2 mil e fui arrumar outro lugar.
Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/crime-preconceito-maes-filhos-de-santo-sao-expulsos-de-favelas-por-traficantes-evangelicos-9868841
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