segunda-feira, 10 de outubro de 2016

AINDA HÁ ESPAÇO PARA CRER EM DEUS?

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Se na nossa sociedade “a felicidade consiste na acumulação de bens”, Deus se torna inútil. Vivemos um materialismo que nos leva a um ateísmo prático.
Para onde estamos indo? Aonde isto nos levará? Como isso repercute na vida do jovem?
  • Aqueles que se dizem ateus são poucos, mas existe um ambiente de indiferença em relação a um deus? Eu acho que tem que situar esta questão no contexto da cultura contemporânea. Por um lado, a nossa tradição religiosa faz com que certas pessoas não se sintam bem em se declarar ateias, porque se sentem como pessoas estranhas à nossa sociedade, que ainda é majoritariamente cristã, católica e evangélica das diversas confissões. Por outro lado, toda a nossa cultura contemporânea leva, no fundo, a um ateísmo prático. Não é um ateísmo elaborado a partir de justificações teóricas, mas é um ateísmo prático: a vida se reduz a acumular bens. É fundamental o conhecimento científico, para o qual a hipótese de Deus não tem significado. Então, as pessoas são formadas, por um lado, num ofício que, por razão, elimina a questão de Deus, que não está dentro do seu âmbito. E, por outro lado, uma sociedade para a qual Deus se tornou inútil, porque as preocupações de sentido da vida humana já estão estabelecidas.
  • E qual é esse sentido da vida, hoje? O sentido da vida humana, a felicidade humana, a realização humana é a acumulação de bens. Então essas grandes questões, as questões últimas de sentido, como vida, morte etc. são de certa maneira recalcadas para um fim que ninguém sabe quando. E as pessoas vão vivendo. Nesse sentido há um ateísmo generalizado. Não é expresso, mas vivido. Deus se tornou algo inútil. E isso a gente vê que marca fortemente os jovens.
  • Então estamos diante de uma idolatria do consumo? A idolatria do consumo é exatamente o ateísmo: você idolatra, substitui Deus por um falso deus. Se você quiser outro Deus, não há lugar para ele. E se a felicidade humana consiste na acumulação de bens, isso pode implicar inclusive na exploração dos outros. O sentido da justiça desaparece; são só meus interesses, minhas aspirações, meus desejos que valem. Os outros que se virem. E esse consumismo está intimamente ligado ao individualismo. Nessa perspectiva, qualquer instância que esteja além dos interesses do indivíduo já é uma frustração para ele. O indivíduo consome para satisfazer as suas aspirações e torna-se totalmente indiferente à dor humana. E aí a justiça desaparece. Esse mundo individualista tira qualquer interesse pelo sofrimento do outro e as grandes questões da justiça passam para segundo plano. O próprio relacionamento humano, a sexualidade humana, tudo fica atrapalhado, deixa de ser uma interrelação de conhecimento, de afeto, de amor: vira "lorota", não existe.
  • Desse jeito, para onde nós vamos? Há alguma esperança? Estamos vendo que, seguindo nesse projeto, estamos diante de duas grandes tragédias: o apocalipse ecológico e o apocalipse social. Está sendo construída uma sociedade que caminha para a destruição de si mesma, enquanto relação humana. Porque apenas uma parte pequena da sociedade participa dos benefícios. Bilhões de pessoas no mundo vivem com menos de dois dólares por dia, o que é um fracasso gigantesco nesta civilização. E mais a tragédia da possibilidade da autodestruição coletiva da humanidade e da vida toda no planeta. Eu acho que ameaças como essa põem em questão os grandes valores dessa civilização, e dão chance de as pessoas refletirem. Para os jovens, que têm condições de perceber o novo desafio, é uma questão de vida e morte serem confrontados com isso, porque são coisas muito reais. É preciso fazer com que os jovens se confrontem com as realidades degradantes para que se choquem. Porque o choque faz as pessoas se darem conta, não dos grandes feitos da civilização moderna, mas de ver o outro lado da medalha. A custo de que possuímos este mundo? Como chegamos aí? Que grandeza é essa do ser humano, que foi capaz de construir um mundo fantástico, jogando fora grande parte da população?
  • Neste contexto é possível falar em valores, em ética? Claro que sim. É absolutamente possível. Isso não quer dizer que, em última instância, a referência a um absoluto não esteja embutida em qualquer ética. Mas a ética, em primeiro lugar, é uma elaboração da razão humana, tanto que os problemas éticos se põem indiferentemente da religião. Por exemplo, a discussão no Brasil sobre o que fazer com os embriões humanos. Se eu creio ou se eu não creio, a questão se põe de qualquer jeito. Tratase da possibilidade da existência de um ser humano, e como é que devo tratar o ser humano. Evidentemente, para quem crê, essas questões são radicalizadas, porque aí a relação com o absoluto se faz explícita.
  • Se quisermos enfrentar o ateísmo prático devemos ter argumentos ou mostrar o contrário na prática? As duas coisas. Nós vivemos num mundo que é cada vez mais marcado pela ciência. Isso significa que valoriza a argumentação. Onde as pessoas vão crescendo no mundo da argumentação, certamente é preciso saber argumentar, dar razões à sua fé. Por outro lado, é claro que é preciso que se veja que a fé é capaz de transformar os seres humanos. Portanto uma ação, seja individual ou coletiva, como fermento no mundo, que traga sentido ao mundo e à vida das pessoas. E isso se vê em primeiro lugar pela coerência de vida. Quando a fé é de tal maneira forte que é capaz de transformar a maneira de pensar, agir, estabelecer as relações com os outros e com a natureza, aí as pessoas vão dizer: ?por trás disso tem alguma coisa séria?.
  • Em que espaços as pessoas podem despertar o espírito de religiosidade? A primeira responsabilidade é daquelas pessoas que estão mais envolvidas com a formação, que são os pais e professores. Mas acho que, hoje, na interação entre jovens, a descoberta da fé num movimento comum tem mais importância, talvez por causa da diferença muito forte de cultura em relação às gerações passadas. O processo cultural humano se acelerou muito. Na ciência, quem se forma hoje, cinco anos depois está atrasado. No passado as coisas caminhavam muito mais devagar. O que a Europa fez em 200 anos, nós fizemos em dez, quinze anos. Isso é uma revolução cultural. Então os jovens têm uma tendência de olhar as gerações passadas como resquícios de um mundo que não é mais o deles. Por isso a vivência da fé entre os jovens é muito importante.
  • Mas existem muitas crianças que crescem sem nenhuma referência religiosa. Isso, em parte, é um problema dos países que cresceram no sentido do desenvolvimento científico, tecnológico, que é a grande referência do mundo de hoje. Nós somos uma sociedade urbana industrial. Aqui no Brasil, tanto a igreja católica quanto as igrejas evangélicas pescaram dos Estados Unidos certas tendências religiosas de experiências carismáticas, pentecostais, como eram chamadas no princípio. Isso, de certa maneira, inclusive numa perspectiva muito rígida, consegue colocar muitas pessoas em contato com o absoluto. Especialmente pessoas que não tinham outra forma de experiência religiosa. Estas experiências estão conseguindo dar uma certa orientação à vida de adultos e à vida de jovens, inclusive. De certa maneira se conseguiu fazer uma barreira ao mundo moderno. Mas aí é que está o problema: são tendências que separam os crentes do mundo moderno. Há uma reação meio psicodélica, porque de um lado eles se utilizam de toda a parafernalha tecnológica para divulgar suas igrejas, são as igrejas midiáticas, que empregam os meios mais modernos possíveis de comunicação, porém, numa visão de mundo, têm uma teologia que rejeita fundamentalmente este mundo moderno. Até onde vão poder viver nesta tensão? É uma forma de esses grupos religiosos se "salvarem" do materialismo difuso que marca a sociedade contemporânea.

Afinal, que sentido tem tudo isso?

O que os jovens veem nos pais e em outras pessoas é que a religião aparece como uma espécie de castração, e não como uma instância de apuração de sentido para a vida. Eu vejo isso na Europa com muita força. As igrejas não têm nada de novo a dizer aos jovens. Aquilo que é dito nas igrejas não toca o jovem. As pregações e as orientações não dão uma luz para a existência dele no dia a dia.
Neste sentido, a importância fundamental da espiritualidade é articular uma chave de compreensão da própria vida. Muitas pessoas desvinculam Deus, a espiritualidade da vida como um todo. Na realidade isso não tem o menor sentido. As próprias palavras de Jesus dizem: “Eu sou a luz do mundo, quem me segue não anda nas trevas”. Isso significa dizer que aqui se articula um sentido global para a vida, que é absolutamente importante. Ainda mais numa sociedade fragmentada como a nossa, que separou os diversos segmentos da vida. E as pessoas estão por aí perdidas se perguntando: “Afinal, de onde eu vim, para onde eu vou? O que fazer na vida? Que sentido tem tudo isso?” As religiões têm esta tarefa, só que parece que elas não estão sabendo fazer isso. Preocupam-se mais em transmitir certas formas de ritos, que foram importantes no passado, mas que não falam mais para as pessoas de hoje. E não sabem mais como falar para os jovens, até porque eles vivem noutro mundo, onde não se tem religião.
O ateísmo ou a religiosidade das pessoas também sofrem influências dentro dos sistemas sociais. Os atuais países que saíram da cortina de ferro, do socialismo real, têm uma grande parte da sua população sem qualquer referência religiosa, porque não existe nenhuma formação neste sentido. Se olharmos a Alemanha Oriental, entre os que foram de natureza socialista real não existe qualquer formação religiosa, por parte das massas. No Ocidente, houve primeiro uma crítica radical à religião por parte das ciências, por parte da Filosofia, e houve um materialismo radical da vida, ou seja, a vida aí se rege por princípios materialistas, e não é só em relação à religião, mas é em relação a qualquer coisa. Uma sociedade que se concentrou na materialidade, como dizia João Paulo II, deixou um enorme vazio na vida humana, não respondido. Afinal de contas, que sentido tem tudo isso? Minha vida, minha relação com a natureza e com os outros seres humanos, a história humana, os progressos da ciência, o não progresso, as grandes questões? Tudo isso conduz a quê? Esse é o grande vazio da sociedade moderna.
O que fez com que as pessoas dissessem que as religiões não têm sentido é que as religiões não foram capazes de falar nesse vazio, ou seja, dizer que aqui está o sentido procurado, que Deus é este sentido. E as religiões se tornam uma espécie de resquício de um mundo que passou, um museu. Lembro que no tempo do socialismo real, num país totalmente organizado culturalmente, depois do regime do ateísmo, como era a Rússia, muitos russos gostavam de ir às igrejas ortodoxas não por causa da fé, mas para lembrar o passado russo. A religião era uma espécie de memória de um mundo que já passou!


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Manfredo Araújo de Oliveira  
Professor de Filosofia na Universidade do Ceará.  





 
Disponível  em:  http://www.mundojovem.com.br/datas-comemorativas/dia-de-acao-de-gracas/edicao-409-entrevista-ainda-ha-espaco-para-crer-em-deus?dt=1

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