Se na nossa sociedade “a felicidade consiste na acumulação de bens”,
Deus se torna inútil. Vivemos um materialismo que nos leva a um ateísmo
prático.
Para onde estamos indo? Aonde isto nos levará? Como isso repercute na vida do jovem?
Para onde estamos indo? Aonde isto nos levará? Como isso repercute na vida do jovem?
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Aqueles que se dizem ateus são poucos, mas existe um ambiente de indiferença em relação a um deus?
Eu acho que tem que situar esta questão no contexto da
cultura contemporânea. Por um lado, a nossa tradição religiosa faz com
que certas pessoas não se sintam bem em se declarar ateias, porque se
sentem como pessoas estranhas à nossa sociedade, que ainda é
majoritariamente cristã, católica e evangélica das diversas confissões.
Por outro lado, toda a nossa cultura contemporânea leva, no fundo, a um
ateísmo prático. Não é um ateísmo elaborado a partir de justificações
teóricas, mas é um ateísmo prático: a vida se reduz a acumular bens. É
fundamental o conhecimento científico, para o qual a hipótese de Deus
não tem significado. Então, as pessoas são formadas, por um lado, num
ofício que, por razão, elimina a questão de Deus, que não está dentro do
seu âmbito. E, por outro lado, uma sociedade para a qual Deus se tornou
inútil, porque as preocupações de sentido da vida humana já estão
estabelecidas.
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E qual é esse sentido da vida, hoje?
O sentido da vida humana, a felicidade humana, a realização
humana é a acumulação de bens. Então essas grandes questões, as
questões últimas de sentido, como vida, morte etc. são de certa maneira
recalcadas para um fim que ninguém sabe quando. E as pessoas vão
vivendo. Nesse sentido há um ateísmo generalizado. Não é expresso, mas
vivido. Deus se tornou algo inútil. E isso a gente vê que marca
fortemente os jovens.
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Então estamos diante de uma idolatria do consumo?
A idolatria do consumo é exatamente o ateísmo: você
idolatra, substitui Deus por um falso deus. Se você quiser outro Deus,
não há lugar para ele. E se a felicidade humana consiste na acumulação
de bens, isso pode implicar inclusive na exploração dos outros. O
sentido da justiça desaparece; são só meus interesses, minhas
aspirações, meus desejos que valem. Os outros que se virem. E esse
consumismo está intimamente ligado ao individualismo. Nessa perspectiva,
qualquer instância que esteja além dos interesses do indivíduo já é uma
frustração para ele. O indivíduo consome para satisfazer as suas
aspirações e torna-se totalmente indiferente à dor humana. E aí a
justiça desaparece. Esse mundo individualista tira qualquer interesse
pelo sofrimento do outro e as grandes questões da justiça passam para
segundo plano. O próprio relacionamento humano, a sexualidade humana,
tudo fica atrapalhado, deixa de ser uma interrelação de conhecimento, de
afeto, de amor: vira "lorota", não existe.
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Desse jeito, para onde nós vamos? Há alguma esperança?
Estamos vendo que, seguindo nesse projeto, estamos diante
de duas grandes tragédias: o apocalipse ecológico e o apocalipse social.
Está sendo construída uma sociedade que caminha para a destruição de si
mesma, enquanto relação humana. Porque apenas uma parte pequena da
sociedade participa dos benefícios. Bilhões de pessoas no mundo vivem
com menos de dois dólares por dia, o que é um fracasso gigantesco nesta
civilização. E mais a tragédia da possibilidade da autodestruição
coletiva da humanidade e da vida toda no planeta. Eu acho que ameaças
como essa põem em questão os grandes valores dessa civilização, e dão
chance de as pessoas refletirem.
Para os jovens, que têm condições de perceber o novo desafio, é uma
questão de vida e morte serem confrontados com isso, porque são coisas
muito reais. É preciso fazer com que os jovens se confrontem com as
realidades degradantes para que se choquem. Porque o choque faz as
pessoas se darem conta, não dos grandes feitos da civilização moderna,
mas de ver o outro lado da medalha. A custo de que possuímos este mundo?
Como chegamos aí? Que grandeza é essa do ser humano, que foi capaz de
construir um mundo fantástico, jogando fora grande parte da população?
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Neste contexto é possível falar em valores, em ética?
Claro que sim. É absolutamente possível. Isso não quer
dizer que, em última instância, a referência a um absoluto não esteja
embutida em qualquer ética. Mas a ética, em primeiro lugar, é uma
elaboração da razão humana, tanto que os problemas éticos se põem
indiferentemente da religião. Por exemplo, a discussão no Brasil sobre o
que fazer com os embriões humanos. Se eu creio ou se eu não creio, a
questão se põe de qualquer jeito. Tratase da possibilidade da existência
de um ser humano, e como é que devo tratar o ser humano. Evidentemente,
para quem crê, essas questões são radicalizadas, porque aí a relação
com o absoluto se faz explícita.
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Se quisermos enfrentar o ateísmo prático devemos ter argumentos ou mostrar o contrário na prática?
As duas coisas. Nós vivemos num mundo que é cada vez mais
marcado pela ciência. Isso significa que valoriza a argumentação. Onde
as pessoas vão crescendo no mundo da argumentação, certamente é preciso
saber argumentar, dar razões à sua fé. Por outro lado, é claro que é
preciso que se veja que a fé é capaz de transformar os seres humanos.
Portanto uma ação, seja individual ou coletiva, como fermento no mundo,
que traga sentido ao mundo e à vida das pessoas. E isso se vê em
primeiro lugar pela coerência de vida. Quando a fé é de tal maneira
forte que é capaz de transformar a maneira de pensar, agir, estabelecer
as relações com os outros e com a natureza, aí as pessoas vão dizer:
?por trás disso tem alguma coisa séria?.
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Em que espaços as pessoas podem despertar o espírito de religiosidade?
A primeira responsabilidade é daquelas pessoas que estão
mais envolvidas com a formação, que são os pais e professores. Mas acho
que, hoje, na interação entre jovens, a descoberta da fé num movimento
comum tem mais importância, talvez por causa da diferença muito forte de
cultura em relação às gerações passadas. O processo cultural humano se
acelerou muito. Na ciência, quem se forma hoje, cinco anos depois está
atrasado. No passado as coisas caminhavam muito mais devagar. O que a
Europa fez em 200 anos, nós fizemos em dez, quinze anos. Isso é uma
revolução cultural. Então os jovens têm uma tendência de olhar as
gerações passadas como resquícios de um mundo que não é mais o deles.
Por isso a vivência da fé entre os jovens é muito importante.
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Mas existem muitas crianças que crescem sem nenhuma referência religiosa.
Isso, em parte, é um problema dos países que cresceram no
sentido do desenvolvimento científico, tecnológico, que é a grande
referência do mundo de hoje. Nós somos uma sociedade urbana industrial.
Aqui no Brasil, tanto a igreja católica quanto as igrejas evangélicas
pescaram dos Estados Unidos certas tendências religiosas de experiências
carismáticas, pentecostais, como eram chamadas no princípio. Isso, de
certa maneira, inclusive numa perspectiva muito rígida, consegue colocar
muitas pessoas em contato com o absoluto. Especialmente pessoas que não
tinham outra forma de experiência religiosa.
Estas experiências estão conseguindo dar uma certa orientação à vida de
adultos e à vida de jovens, inclusive. De certa maneira se conseguiu
fazer uma barreira ao mundo moderno. Mas aí é que está o problema: são
tendências que separam os crentes do mundo moderno. Há uma reação meio
psicodélica, porque de um lado eles se utilizam de toda a parafernalha
tecnológica para divulgar suas igrejas, são as igrejas midiáticas, que
empregam os meios mais modernos possíveis de comunicação, porém, numa
visão de mundo, têm uma teologia que rejeita fundamentalmente este mundo
moderno. Até onde vão poder viver nesta tensão? É uma forma de esses
grupos religiosos se "salvarem" do materialismo difuso que marca a
sociedade contemporânea.
Afinal, que sentido tem tudo isso?
O que os jovens veem nos pais e em outras pessoas é que a religião
aparece como uma espécie de castração, e não como uma instância de
apuração de sentido para a vida. Eu vejo isso na Europa com muita força.
As igrejas não têm nada de novo a dizer aos jovens. Aquilo que é dito
nas igrejas não toca o jovem. As pregações e as orientações não dão uma
luz para a existência dele no dia a dia.
Neste sentido, a importância fundamental da espiritualidade é articular uma chave de compreensão da própria vida. Muitas pessoas desvinculam Deus, a espiritualidade da vida como um todo. Na realidade isso não tem o menor sentido. As próprias palavras de Jesus dizem: “Eu sou a luz do mundo, quem me segue não anda nas trevas”. Isso significa dizer que aqui se articula um sentido global para a vida, que é absolutamente importante. Ainda mais numa sociedade fragmentada como a nossa, que separou os diversos segmentos da vida. E as pessoas estão por aí perdidas se perguntando: “Afinal, de onde eu vim, para onde eu vou? O que fazer na vida? Que sentido tem tudo isso?” As religiões têm esta tarefa, só que parece que elas não estão sabendo fazer isso. Preocupam-se mais em transmitir certas formas de ritos, que foram importantes no passado, mas que não falam mais para as pessoas de hoje. E não sabem mais como falar para os jovens, até porque eles vivem noutro mundo, onde não se tem religião.
Neste sentido, a importância fundamental da espiritualidade é articular uma chave de compreensão da própria vida. Muitas pessoas desvinculam Deus, a espiritualidade da vida como um todo. Na realidade isso não tem o menor sentido. As próprias palavras de Jesus dizem: “Eu sou a luz do mundo, quem me segue não anda nas trevas”. Isso significa dizer que aqui se articula um sentido global para a vida, que é absolutamente importante. Ainda mais numa sociedade fragmentada como a nossa, que separou os diversos segmentos da vida. E as pessoas estão por aí perdidas se perguntando: “Afinal, de onde eu vim, para onde eu vou? O que fazer na vida? Que sentido tem tudo isso?” As religiões têm esta tarefa, só que parece que elas não estão sabendo fazer isso. Preocupam-se mais em transmitir certas formas de ritos, que foram importantes no passado, mas que não falam mais para as pessoas de hoje. E não sabem mais como falar para os jovens, até porque eles vivem noutro mundo, onde não se tem religião.
O ateísmo ou a religiosidade das pessoas também sofrem influências
dentro dos sistemas sociais. Os atuais países que saíram da cortina de
ferro, do socialismo real, têm uma grande parte da sua população sem
qualquer referência religiosa, porque não existe nenhuma formação neste
sentido. Se olharmos a Alemanha Oriental, entre os que foram de natureza
socialista real não existe qualquer formação religiosa, por parte das
massas. No Ocidente, houve primeiro uma crítica radical à religião por
parte das ciências, por parte da Filosofia, e houve um materialismo
radical da vida, ou seja, a vida aí se rege por princípios
materialistas, e não é só em relação à religião, mas é em relação a
qualquer coisa. Uma sociedade que se concentrou na materialidade, como
dizia João Paulo II, deixou um enorme vazio na vida humana, não
respondido. Afinal de contas, que sentido tem tudo isso? Minha vida,
minha relação com a natureza e com os outros seres humanos, a história
humana, os progressos da ciência, o não progresso, as grandes questões?
Tudo isso conduz a quê? Esse é o grande vazio da sociedade moderna.
O que fez com que as pessoas dissessem que as religiões não têm sentido
é que as religiões não foram capazes de falar nesse vazio, ou seja,
dizer que aqui está o sentido procurado, que Deus é este sentido. E as
religiões se tornam uma espécie de resquício de um mundo que passou, um
museu. Lembro que no tempo do socialismo real, num país totalmente
organizado culturalmente, depois do regime do ateísmo, como era a
Rússia, muitos russos gostavam de ir às igrejas ortodoxas não por causa
da fé, mas para lembrar o passado russo. A religião era uma espécie de
memória de um mundo que já passou!
Manfredo Araújo de Oliveira
Professor de Filosofia na Universidade do Ceará.
Disponível em: http://www.mundojovem.com.br/datas-comemorativas/dia-de-acao-de-gracas/edicao-409-entrevista-ainda-ha-espaco-para-crer-em-deus?dt=1
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