Duas recentes manifestações do Ministério Público Federal defendem que os transexuais tenham o direito de mudar de gênero nos registros civis sem que precisem se submeter à cirurgia de mudança de sexo. O tema está em discussão no Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 670.422, que teve a repercussão geral reconhecida, como adiantou o JOTA.
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, deu parecer favorável à ação no dia 31 de julho deste ano. “Condicionar a realização de tal procedimento médico (cirurgia de mudança de sexo) à alteração do registro civil, ainda que de modo indireto, vai de encontro ao direito à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana, valores constitucionais de primeira envergadura”, afirmou Janot. “Não se pode, data vênia, exigir do indivíduo uma mutilação física para assegurar direito constitucional básico assegurado: certamente não será ela – a transgenitalização – pressuposto para o exercício de um dos direito da personalidade”, acrescentou.
O caso que tramita no Supremo envolve S.T.C., que nasceu com órgãos sexuais femininos, mas que, antes de completar cinco anos de idade, “já possuía aparência de menino, tendo enfrentado inúmeros constrangimentos em virtude da inadequação de sua identidade biológica com a sua condição psicológica”. S.T.C. recorreu ao Judiciário pedindo a alteração de nome e gênero no registro civil.
No primeiro grau, o juiz deferiu a troca do nome, mas não admitiu a troca do gênero. Em grau de recurso, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por maioria, indeferiu a alteração de gênero sem mudança cirúrgica dos órgãos genitais e assentiu que, no registro de nascimento de S.T.C., constasse a anotação do termo “transexual”.
A ressalva do TJ-RS tornou-se alvo de críticas no parecer de Janot. “A inscrição do termo transexual no assento de nascimento do recorrente, antes de revelar-se solução razoável para o problema, também arrosta direito básico da personalidade, perpetuando situação vexatória e constrangedora, que desatende ao objetivo constitucional da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor e outras formas de discriminação”, escreveu.
“A inclusão do termo transexual no registro do recorrente não retrata a verdade sexual psicológica, além de embaraçar o exercício da liberdade e a aquisição da identidade plena, mantendo o recorrente em inaceitável situação de angústia e incerteza, situação violadora da dignidade da pessoa humana assegurada pela Constituição Federal”, acrescentou o procurador-geral. Além dessas violações, ele ressaltou que a legislação somente reconhece dois sexos: o feminino e o masculino. “O termo transexual sequer aparece em fichas cadastrais como opção!”
S.T.C. decidiu não se submeter à cirurgia de mudança de sexo, como explicou ao JOTA sua advogada, Maria Berenice Dias. “A cirurgia de redesignação da identidade de gênero (no caso do feminino para o masculino) é experimental, não tem resultado comprovado. E a pessoa pode simplesmente não querer fazer esse tipo de cirurgia”, disse. Janot foi além, argumentando que a cirurgia é “extremamente traumática, com pouquíssimas chances de êxito e riscos de deixar graves sequelas, inclusive a perda completa da estrutura genital”.
Maria Berenice afirmou que seu cliente é homem, apesar de ter órgãos sexuais femininos. Ela defende, portanto, que o gênero não é determinado pela anatomia. O procurador-geral da República concordou com o argumento. “A distinção dos sexos sempre foi feita com base na aparência da genitália, mas com os avanços científico e tecnológico, esse critério não é único, havendo diversos outros elementos identificadores: psicológicos, biológicos, culturais e familiares. No caso, tem-se um homem que nasceu em corpo feminino”, afirmou o procurador.
Além desse reconhecimento, ele lembrou que o Departamento Médico Judiciário do TJ-RS, em avaliação psicológica, concluiu: “não há a necessidade da cirurgia, uma vez que sua masculinidade está evidente, independente da anatomia de seus órgãos genitais”. S.T.C., como informam os autos do processo, submeteu-se a tratamentos com hormônio, o que lhe causou infertilidade, e submeteu-se a mastectomia. “Para os amigos, para os pacientes, para a família, para todos que o conhecem, S. é a pessoa que sempre foi: o homem, o fisioterapeuta, o amigo, o marido de J.”, sua companheira há mais de uma década”.
O parecer do procurador-geral da República se soma a um pedido de providências encaminhado ao Conselho Nacional de Justiça. O processo partiu de membros do grupo de Combate à Violência Doméstica e Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos do Conselho Nacional do Ministério Público. Pela solicitação feita ao CNJ, seria regulamentada a alteração do registro civil de tansexuais e travestis sem a necessidade de realização de cirurgia de mudança de sexo.
Eventual decisão favorável do CNJ passaria pelas mãos da atual corregedora-nacional de Justiça, ministra Nancy Andrighi. Ela, em caso semelhante julgado no Superior Tribunal de Justiça, praticamente adiantou sua linha de pensamento. “A afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade humana, encerra a realização da dignidade, no que tange à possibilidade de expressar todos os atributos e características do gênero imanente a cada pessoa. Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade”, disse a ministra ao julgar, em 2009, o Recurso Especial 1.008.398, de São Paulo.
O relator do caso no Supremo é o ministro Dias Toffoli. E não há previsão de quando o processo será levado a julgamento pelo plenário.
Disponível em: http://jota.uol.com.br/materias17-janot-nao-se-pode-exigir-mutilacao-fisica-para-assegurar-direito-constitucional
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