Ao
analisar a forma como a Igreja aborda temas como a diversidade
sexual, o padre jesuíta Luís Corrêa Lima disse, na entrevista que
concedeu por e-mail à IHU On-Line, que “nós só podemos saber o
que a Palavra de Deus significa para nós hoje, e que implicações
ela tem, com um suficiente conhecimento da realidade atual, que
inclui a visibilização da população LGBT”. Ele relembra uma
carta do Vaticano aos bispos, do ano de 1986, mencionando que “nenhum
ser humano é mero homossexual ou heterossexual. Ele é, acima de
tudo, criatura de Deus e destinatário de Sua graça, que o torna
filho Seu e herdeiro da vida eterna”.
O
pesquisador destaca, ainda, uma declaração do Papa Bento XVI,
dizendo que “o cristianismo não é um conjunto de proibições,
mas uma opção positiva”. Segundo ele, o Papa acrescentou “que é
muito importante evidenciarmos isso novamente, porque essa
consciência hoje quase desapareceu completamente. É muito bom que
um Papa tenha reconhecido isto. Há no cristianismo uma tradição
multissecular de insistência na proibição, no pecado, na culpa, na
condenação e no medo”.
Corrêa
Lima frisa que não cabe “encaminhar os gays a terapias de reversão
ou a ‘orações de cura’, que frequentemente são formas
escamoteadas de exorcismo. No diálogo ecumênico e inter-religioso
da Igreja, recomenda-se conhecer o outro como ele quer ser conhecido,
e estimá-lo como ele quer ser estimado. O conhecimento e a estima
recíprocos são também o melhor caminho para o diálogo entre a
Igreja e o mundo gay”.
E
completa: “O grande desafio da diversidade sexual é fazer-se
compreender pela sociedade, não como uma ameaça, mas como uma
pluralidade existente na condição humana que enriquece o mundo. No
fundo, as pessoas querem ser elas mesmas, reconhecidas e aceitas
pelos outros”.
Formado
em Administração, Filosofia e Teologia, Luís Corrêa Lima também
é mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio, onde é
professor desde 2004, e doutor em História pela Universidade de
Brasília – UnB. É autor de Teologia de Mercado – uma visão da
economia mundial no tempo em que os economistas eram teólogos
(Bauru: EDUSC, 2001).
Confira
a entrevista.
IHU
On-Line – Qual é a importância de a Igreja abordar temas como a
diversidade sexual, nos dias de hoje?
Luís
Corrêa Lima – A diversidade sexual é um dado da realidade. No
passado, gays, lésbicas e bissexuais viviam no anonimato ou à
margem da sociedade. Escondiam-se em uniões heterossexuais e, quando
muito, formavam guetos. Hoje, tornam-se visíveis, fazem imensas
paradas, junto com travestis e transexuais, exigem respeito e
reconhecimento, e reivindicam direitos.
Para
a Igreja, a lei de toda a evangelização é pregar a Palavra de Deus
de maneira adaptada à realidade dos povos, como lembra o Concílio
Vaticano II (Gaudium et Spes, nº 44). Deve haver um intercâmbio
vivo e permanente entre a Igreja e as diversas culturas dos
diferentes povos. Para viabilizar este intercâmbio – sobretudo
hoje, em que tudo muda tão rapidamente, e os modos de pensar variam
tanto – ela necessita da ajuda dos que conhecem bem a realidade
atual, sejam eles crentes ou não. O laicato, a hierarquia e os
teólogos, prossegue o Concílio, precisam saber ouvir e interpretar
as várias linguagens ou sinais do nosso tempo, para avaliá-las
adequadamente à luz da Palavra de Deus, de modo que a Revelação
divina seja melhor compreendida e apresentada de um modo conveniente.
A
correta evangelização, portanto, é uma estrada de duas mãos, do
intercâmbio entre a Igreja e as culturas contemporâneas. Nós só
podemos saber o que a Palavra de Deus significa para nós hoje, e que
implicações ela tem, com um suficiente conhecimento da realidade
atual, que inclui a visibilização da população LGBT.
IHU
On-Line – Que elementos de discussão a diversidade sexual propõe
para setores da sociedade como a família, a igreja e a escola? Quais
são os desafios no que se refere à cidadania?
Luís
Corrêa Lima – Por muitos séculos, o homoerotismo foi visto no
Ocidente como um pecado nefando (que não deve nem ser nomeado) e
como um crime gravíssimo que atrai o castigo divino para a
sociedade. Igreja e Estado estiveram unidos. Tribunais eclesiásticos
julgavam os acusados de “sodomia”, e os culpados eram entregues
ao poder civil para serem punidos. Em casos extremos, a punição
chegava à pena de morte.
O
homoerotismo foi descriminalizado, e a condição homossexual foi
despatologizada. Desde o final do século XX, esta condição não é
mais considerada doença. Atualmente o Conselho Federal de Psicologia
proíbe as terapias de reversão. Ou seja, algumas pessoas são
homossexuais e o serão por toda vida. Elas estão em toda parte.
Quem não é gay, tem parentes próximos ou distantes que são, bem
como vizinhos ou colegas de trabalho que também são, manifesta ou
veladamente. Eles compõem a sociedade, visibilizam-se cada vez mais
e não aceitam mais serem tratados como doentes ou criaturas
abomináveis. Querem ser cidadãos plenos, com os mesmos direitos e
deveres dos demais.
IHU
On-Line – O que a fé cristã, na sua opinião, tem a dizer sobre a
diversidade sexual?
Luís
Corrêa Lima – O mais importante é algo que foi dito numa carta do
Vaticano aos bispos, em 1986: nenhum ser humano é mero homossexual
ou heterossexual. Ele é, acima de tudo, criatura de Deus e
destinatário de Sua graça, que o torna filho Seu e herdeiro da vida
eterna. E acrescenta que toda violência física ou verbal contra é
deplorável, merecendo a condenação dos pastores da Igreja onde
quer que se verifiquem. A oposição doutrinária que possa haver às
práticas homoeróticas não elimina esta dignidade fundamental do
ser humano. Deus criou a todos. O Cristo veio para todos e oferece o
seu jugo leve e o seu fardo suave. Cabe a nós, com fidelidade
criativa, conhecermos e darmos a conhecer estes dons divinos.
IHU
On-Line – Como a Igreja, a partir da fé e das ciências, pode
dialogar com a diversidade sexual?
Luís
Corrêa Lima – Certa vez o Papa Bento XVI afirmou que o
cristianismo não é um conjunto de proibições, mas uma opção
positiva. E acrescentou que é muito importante evidenciarmos isso
novamente, porque essa consciência hoje quase desapareceu
completamente. É muito bom que um Papa tenha reconhecido isto. Há
no cristianismo uma tradição multissecular de insistência na
proibição, no pecado, na culpa, na condenação e no medo. O
historiador Jean Delumeau fala de uma “pastoral do medo”, que com
veemência culpabiliza e a ameaça de condenação para obter a
conversão. Isto não se deu somente no passado distante. Também no
presente, alguns interpretam a doutrina da maneira mais restritiva e
condenatória possíveis, com obsessão pelo pecado, sobretudo ligado
a sexo.
Sem
a obsessão pelo pecado, o caminho do diálogo se abre. É preciso
também respeitar a autonomia das ciências e da sociedade, como
determina o Concílio. Não cabe hoje encaminhar os gays a terapias
de reversão ou a “orações de cura”, que frequentemente são
formas escamoteadas de exorcismo. No diálogo ecumênico e
inter-religioso da Igreja, recomenda-se conhecer o outro como ele
quer ser conhecido, e estimá-lo como ele quer ser estimado. O
conhecimento e a estima recíprocos são também o melhor caminho
para o diálogo entre a Igreja e o mundo gay.
IHU
On-Line – A Igreja, no Brasil, tem, por meio de publicações,
cursos, seminários, proposto o diálogo sobre a diversidade sexual.
O que isso significa? Há aí um interesse legítimo dos diversos
membros da Igreja, ou esta é uma necessidade da Igreja de se inserir
em um novo contexto contemporâneo, em que gays e lésbicas ganham
mais espaço? Como interpreta a posição da Igreja nesse contexto?
Luís
Corrêa Lima – Constata-se que há no Brasil várias publicações,
e de qualidade, sobre diversidade sexual feitas por religiosos ou por
editoras católicas. Também há cursos e mesas redondas. Pode-se
notar que o interesse é crescente, afinal o contexto da sociedade é
inevitável. Em vários ambientes católicos, sejam paróquias,
escolas ou centros de pastoral, pode-se tratar do assunto com
liberdade. De um modo geral, as eventuais resistências não são
barreiras intransponíveis.
IHU
On-Line – Os homossexuais já conquistaram o direito de manterem
uma união estável no Brasil. Como avalia a luta pela cidadania
religiosa no Brasil?
Luís
Corrêa Lima – Na verdade, há decisões judiciais que favorecem os
conviventes homoafetivos, bem como normas de instituições públicas
e privadas no mesmo sentido. Casais homossexuais podem obter em
cartório um documento declaratório de convivência homoafetiva.
Recentemente o Imposto de Renda e os planos de saúde contemplam
estes casais com os mesmos direitos dos casais heterossexuais em
união estável. Sobre a cidadania religiosa, nos ambientes
religiosos católicos, de um modo geral, muitos gays estão presentes
mas não manifestam a sua condição para evitar discriminação. É
algo semelhante à escola e ao mundo do trabalho.
IHU
On-Line – O que podemos entender por diversidade sexual? Quais os
principais desafios da diversidade sexual?
Luís
Corrêa Lima – A visibilização dos homossexuais, e a sua
organização como movimento social, já usou diversas siglas: Gay
(termo anterior a homossexual, que evoca alegria e autoestima), MHB
(Movimento Homossexual Brasileiro), HSH (Homens que fazem sexo com
homens – sigla ainda utilizada em saúde pública), GLS (Gays,
Lésbicas e Simpatizantes – sigla adotada pelo mercado) e LGBT
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), a mais
recente. Há tendências de se acrescentar o ‘I’, de intersexual,
para os hermafroditas. O termo diversidade sexual é uma maneira de
englobar esta crescente pluralidade, embora com imprecisão.
O
grande desafio da diversidade sexual é fazer-se compreender pela
sociedade, não como uma ameaça, mas como uma pluralidade existente
na condição humana que enriquece o mundo. No fundo, as pessoas
querem ser elas mesmas, reconhecidas e aceitas pelos outros.
IHU
On-Line – Como o senhor avalia o posicionamento da Igreja em
relação à diversidade sexual na sociedade contemporânea?
Luís
Corrêa Lima – A Igreja, antes de tudo, está alicerçada na
milenar tradição judaico-cristã, ao mesmo tempo em que está
presente em diversas partes do mundo, interagindo com a cultura
ocidental moderna e com culturas não ocidentais. No judaísmo
antigo, acreditava-se que o homem e a mulher foram criados um para o
outro, para se unirem e procriarem. O homoerotismo era considerado
uma abominação. Israel devia se distinguir das outras nações de
várias maneiras, inclusive pela proibição do homoerotismo. A
Igreja herdou esta visão antropológica com sua interdição.
Alguns
conteúdos doutrinais mudam ao longo dos séculos, como é o caso da
legitimidade da escravidão e da proibição do empréstimo a juros.
Isto mostra que eles não comprometem o núcleo da fé. Outros
conteúdos também podem mudar, mas não há como prever. De qualquer
maneira, a consciência individual tem um peso decisivo em questões
complexas como esta. Este papel não deve ser omitido ou subestimado.
O Concílio reconheceu o direito de a pessoa agir segundo a norma
reta da sua consciência, e o dever de não agir contra ela. Nela
está o “sacrário da pessoa”, onde Deus está presente e se
manifesta. A fidelidade à consciência une os cristãos e os outros
homens no dever de buscar a verdade, e de nela resolver os problemas
morais que surgem na vida individual e social (Gaudium et Spes, nº
16). Nenhuma palavra externa substitui o juízo e a reflexão da
própria consciência.
IHU
On-Line – Entre os evangélicos também há discordância em
relação à homossexualidade. Entretanto, qual sua opinião sobre a
Igreja Cristã Contemporânea, coordenada pelo casal de pastores
homossexuais Fábio Inácio de Souza e Marcos Gladstone?
Luís
Corrêa Lima – Entre os evangélicos, a oposição à
homossexualidade em geral é mais intensa, com práticas frequentes
de exorcismo para expulsar o demônio que supostamente toma conta da
pessoa. Os que continuam a cometer atos homossexuais são muitas
vezes expulsos de suas igrejas, ou sofrem um assédio moral
devastador que os faz sair. Como o mundo protestante é fragmentado
em diversas denominações, gays evangélicos fundaram igrejas
inclusivas para acolherem crentes repelidos por suas igrejas de
origem.
As
igrejas inclusivas nasceram nos Estados Unidos, na ampla constelação
do movimento gay. A Igreja Cristã Contemporânea é um rebento
brasileiro com notável difusão no Rio de Janeiro. Os pastores Fábio
e Marcos protagonizaram o primeiro casamento público entre dois
pastores gays, com grande repercussão na mídia, muita simpatia da
militância LGBT e forte execração dos evangélicos tradicionais.
IHU
On-Line – Quais são, no seu entendimento, as razões que
dificultam o consentimento das religiões aos homossexuais?
Luís
Corrêa Lima – As grandes religiões monoteístas – judaísmo,
cristianismo e islamismo – enraízam-se em tradições milenares
consignadas em textos sagrados antigos, situados em horizontes
socioculturais bem diferentes do nosso. Estas religiões se
vincularam a uma suposta heterossexualidade universal, expressa no
imperativo “crescei-vos e multiplicai-vos’” do livro de
Gênesis. Por outro lado, há religiões de matrizes africanas que
aceitam os gays. Na verdade, a heterossexualidade não é universal,
nem na espécie humana, nem entre os animais. No mundo animal, já se
conhecem atualmente mais de 450 espécies com indivíduos
homossexuais.
Certa
vez um rabino disse que a tradição não é um bastão de uma
corrida de revezamento. O bastão é sempre mesmo, passando de mão
em mão. A imagem correta da tradição é uma casa em que vivem
sucessivas gerações. Cada uma delas pode dar o seu toque peculiar e
até fazer reformas internas. Mas a casa é sempre reconhecível por
quem passa na rua. Assim é a tradição: um legado vivo,
constantemente enriquecido para ser fiel a si mesmo. O teólogo Yvez
Congar afirmou que a única maneira de se dizer a mesma em um
contexto que mudou, é dizê-la de modo diferente. A mensagem cristã
precisa se reinventar sempre se quiser ser Boa Nova.
IHU
On-Line – As uniões homoafetivas representam uma ameaça à
tradição?
Luís
Corrêa Lima – Não, pelo contrário. A união entre o homem e a
mulher conserva seu valor e função social, e permanece como sinal
bíblico do amor entre o Senhor e o seu povo eleito, e do amor entre
Cristo e a Igreja. As uniões homoafetivas não ameaçam as uniões
heterossexuais, pois estes não são gays enrustidos prestes a
debandarem diante da possibilidade de união homossexual. E nem os
gays têm obrigação de se “curarem” e de se casarem com pessoas
de outro sexo. Até porque, para o direito eclesiástico, este
casamento é nulo. Uniões gays e uniões heterossexuais são de
naturezas distintas e não concorrem entre si.
Um
documento do Vaticano de 2003, sobre o reconhecimento civil da união
entre pessoas do mesmo sexo, fez severa oposição à equiparação
ou equivalência desta forma de união àquela entre homem e mulher.
No entanto, ele afirma que, mesmo assim, podem-se reconhecer direitos
decorrentes da convivência homossexual. Este é um passo muito
importante. Se não houver nenhum reconhecimento social ou proteção
legal às uniões gays, o preconceito homofóbico difuso na sociedade
vai pressionar os gays a contraírem uniões heterossexuais. O que já
acontece há séculos continuará acontecendo. É lastimável, pois
isto traz enorme sofrimento a muitas pessoas.
IHU
On-Line – O que deve fazer parte de uma reflexão moral sobre o
amor homossexual?
Luís
Corrêa Lima – Antes de tudo, a vocação fundamental do ser humano
é amar e ser amado. O amor é a plenitude da lei e da vida em
Cristo. E o próprio Cristo ensina que a lei foi feita para o homem,
e não o homem para a lei. Para a reflexão moral, convém escutar a
Palavra de Deus e buscar uma teologia que supere a leitura ao pé da
letra; e que leve em conta a Tradição, o ensinamento da Igreja, os
sinais dos tempos e os saberes seculares.
A
moral não deve se limitar ao ideal, mas deve estar atenta ao
possível, à situação em que cada um se encontra e aos passos que
pode dar. O papa tratou recentemente do uso da camisinha, e afirmou
que em algumas circunstâncias ele representa o primeiro passo para
uma humanização da sexualidade. É preciso buscar sempre os
caminhos de humanização.
IHU
On-Line – Deseja acrescentar algo?
Luís
Corrêa Lima – Sim. Jesus afirmou que há eunucos de nascença,
eunucos feitos pelos homens e eunucos que assim se fizeram pelo Reino
dos Céus (Mt 19,12). Esta frase, um tanto estranha, tem um sentido
literal e um sentido não literal. No caso de eunucos feitos pelos
homens, trata-se de castração. No caso de eunucos pelo Reino dos
Céus, trata-se do próprio Jesus e dos que renunciaram ao casamento
para se dedicarem inteiramente à obra de Deus. Não há propriamente
castração. E quem são os “eunucos de nascença”? Para os
primeiros leitores do Evangelho, talvez fossem pessoas com um defeito
físico que impossibilita o casamento. Mas para nós, hoje, é
indispensável considerar aqueles que por natureza, em razão de sua
libido, não se destinam ao casamento tradicional. São os gays. Eles
têm seu lugar no plano divino. E também devem tê-lo na sociedade e
na Igreja.
Fonte:
Unisinos
Disponível em: http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=17321&cod_opiniao=23538&cod_canal=41&cod_erro=2
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