"Qual a coerência ética e moral de justificar o voto em Jair Bolsonaro,
em razão de sua suposta defesa de valores evangélicos como 'a vida', se
tal defesa restringe-se apenas a defesa da vida do nascituro ante a
questão da descriminalização do aborto, mas desconsidera uma gama de
outras formas de atentado à vida, como as inúmeras apresentadas neste
texto? A defesa da vida é uma postura integral. Ou defendemos todas as
vidas de todas as pessoas, em todos os seus estágios e independentemente
de suas condições socioeconômicas, ou não defendemos a vida, mas
barganhamos seu direito, o direito de viver e viver com abundância".
O comentário é de Danillo Silva, mestre e doutorando
em Letras/Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Sergipe,
professor de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia de Alagoas (IFAL) e de Linguística e Linguística Aplicada
do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Sergipe
(UFS). Católico leigo, tem se dedicado ao serviço pastoral de formação e
ensino na Arquidiocese de Aracaju, Sergipe, desde 2007, atuando
sobretudo em temas relacionados à doutrina e à espiritualidade católicas
em diálogo com os desafios sociais e políticos do tempo presente.
Eis o artigo.
A ninguém é permitido invocar exclusivamente em favor da própria
opinião a autoridade da Igreja. Mas proporem sempre esclarecer-se
mutuamente, num diálogo sincero, salvaguardando a caridade recíproca e
atentos, antes de tudo, ao bem comum (GS 43).
Com a proximidade do pleito eleitoral de 2018 e, com ele, o início da corrida presidencial, os católicos do Brasil
se veem às voltas na hora de escolherem seus representantes. Velhos
modelos elitistas, corrupção legitimada, apatia e nanismo político,
propostas utópicas, protofascismo.
Enfim, o cenário é desolador e, longe de encher os olhos, traz ainda
outros desafios cruciais relativos ao complexo discernimento de
candidatos ou candidatas que estejam afinados com as premissas da fé católica, especialmente naqueles pontos mais delicados, para a opinião pública, acerca de sua doutrina moral, a exemplo da despenalização do aborto e do avanço de direitos sociais de minorias sexuais e de gênero.
Embora tenha começado por aí, não trago nenhuma fórmula pronta ou cartilha de como fazer um “voto católico”, uma vez que quando adentramos o terreno da consciência e suas escolhas éticas e morais
estamos sempre diante de um chamado particular à liberdade e à
responsabilidade. Em quem votar? Qual candidato tem propostas mais
alinhadas à fé católica e suas premissas? O que me choca, como pessoa humana, como católico e educador implicado na defesa de direitos humanos, é que para muitos dos meus irmãos e irmãs na fé, a resposta a essas perguntas tem o nome de Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL).
Vejam que me detenho não na escolha de seu nome para a presidência
simplesmente, o que já seria naturalmente contraditório, mas que isto
seja feito sob argumentos religiosos.
Afora toda a sua fracassada trajetória parlamentar, marcada pela
ausência de projetos para a população que tenham nascido da escuta do
povo e de suas demandas, o que era de se esperar de alguém que há 27
anos recebe dinheiro público para isso; e sem falar na ausência de um projeto de governo concreto e detalhado para o Brasil, enquanto candidato, o que fica claro pelo amontoado de frases feitas e expressões vagas que compõem seu projeto de governo1, chamam a atenção do mundo inteiro uma carreira política e trajetória de campanha calcadas no discurso de ódio,
na fala vexatória, nas piadas criminosas, nos inúmeros gestos de
apologia à violência e na insolente esquizofrenia em relação a páginas
hediondas e nefastas da história do Brasil, as quais ainda nem bem superamos, a exemplo da ditadura militar.
Em cada nova declaração, entrevista, debate, ainda quando não fala – a
exemplo da cena viral em que ensina uma criança a fazer menção a uma
arma com as mãos – sua bestialidade choca e aterroriza os pensamentos
dos que vislumbram o que, infelizmente, pode nos atingir no dia da
apuração. E sim, tanta violência encontra eco e voto numa parcela
considerável de eleitores brasileiros, fenômeno
complexo e multifatorial que basicamente se alimenta das insatisfações
econômicas de determinados grupos sociais histórica e injustamente
privilegiadas, da sensação generalizada de insegurança e impunidade, da
decepção com a cena política tradicional, dentre tantos outros.
Que haja quem vote em Bolsonaro me parece tristemente compreensível, afinal, estamos no Brasil, país massiva e estruturalmente racista, machista e elitista.
Seus apoiadores encontraram, enfim, quem “tenha coragem de dizer a
verdade” na qual eles creem e, por isso, por essa “sinceridade” torna o candidato do PSL “o mito” de seus eleitores, em geral, adultos jovens e bem escolarizados. Agora, que haja cristãos católicos
fazendo sua escolha pelo referido presidenciável e, pior, supostamente
baseando-se em imperativos categóricos de consciência apoiados na fé
católica ou no dorso de sua doutrina para justificar sua decisão é, sem
sombra de dúvidas, uma desonestidade intelectual sintomática. Tal fato
aponta para onde têm rumado as perspectivas de muitos católicos cujas
consciências, enamoradas de certo farisaísmo rigorista e sectário,
deixam-se contaminar com filosofias ultrarradicais que beiram o fascismo. Não é de se espantar que sejam esses mesmos grupos, em alguns casos, a rejeitar as transformações eclesiais instauradas pelo Concílio Vaticano II, a criticar a cruzada de Francisco contra o clericalismo e outras formas de conservadorismo estéril,
a pôr em dúvida as posições e a autoridade pastoral e magisterial das
comissões episcopais das igrejas particulares, a exemplo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB.
É intensa a pressão que tais grupos exercem no meio religioso a fim
de coagirem as consciência de seus pares, esquecendo-se porém que a
Igreja reconhece que, diante de suas escolhas, inclusive políticas
“(...) todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos
indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de
tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja obrigado a agir contra a
própria consciência, nem impedido, dentro dos devidos limites, de
proceder segundo a mesma, em particular e em público, só ou associado
com outros” (DH 2).
Enquanto tal pressão, muitas vezes dotada de tom apocalíptico e
condenatório, busca na autoridade da Igreja, ou de alguns de seus
setores, justificação ante ao acovardamento que lhes impõe não
assumirem, sem subterfúgios, os valores que lhes movem a consciência e o
voto, acabam por instrumentalizar a Igreja, a qual
“não quer, de maneira nenhuma, imiscuir-se no governo da cidade terrena.
E não reclama para si nenhuma outra autoridade se não a de, com a ajuda
de Deus, estar a serviço dos homens pela caridade e pelo serviço fiel”
(DH 12). Embora isso não lhe tire o múnus de oferecer luz sobre fatos de
quaisquer ordens, o que, de certo, é coisa muito diversa.
Escolher um candidato que recentemente defendeu, em rede nacional, a omissão do Poder Executivo ante a exploração gerada pela disparidade de salários entre homens e mulheres nas mesmas funções no mercado de trabalho2 e se dizer em fidelidade ao Magistério da Igreja,
é ignorar que esta está sensível e solidária aos excluídos nas
dinâmicas sociais onde “os povos oprimidos pela fome interpelam os povos
mais ricos. As mulheres, onde ainda não a alcançaram, a paridade de
direito e de fato com os homens. Os operários e os camponeses querem não
apenas ganhar o necessário para viver, mas desenvolver, graças ao
trabalho, as próprias qualidades; mais ainda, querem participar na
organização da vida social e política” (GS 9).
Ainda nessa direção, o apoio irrestrito à reforma trabalhista recentemente aprovada pelo Legislativo brasileiro3, a qual trouxe grandes prejuízos e retrocessos para os trabalhadores e trabalhadoras de todo país, bem como suas colocações sobre o tema apontam a identificação de Bolsonaro com os detentores do poder nas relações de trabalho,
sua indiferença ante a precarização das condições de vida dessas
pessoas “criadas a imagem e semelhança de Deus” (Gn 1: 4) Tal postura anti-evangélica e nem de longe católica, é um exemplo cabal do que constata o Papa Emérito Bento XVI, na sua Carta Encíclica Caritas in Veritate: “infelizmente a corrupção e a ilegalidade
estão presentes no comportamento dos sujeitos sociais e políticos dos
países ricos, antigos e novos, como nos próprios países pobres. No
número de quantos não respeitem os direitos humanos dos trabalhadores,
contam-se, às vezes, grandes empresas transnacionais e também grupos de
produção local” (CV 22).
Nessa mesma prática de instrumentalização dos ensinamentos da Igreja
em favor de suas convicções pessoais, os católicos que apoiam tal
candidatura em nome de sua fé, ignoram de forma irresponsável que um
governo de inspiração teocrática, como proposto pelo candidato social liberal e inscrito no slogan de sua coalisão “Brasil acima de tudo! Deus acima de todos!”,
traz consequências perversas próprias do atrelamento entre o poder
temporal e o poder religioso, como testemunha a história do mundo. Além
disso, tal pressuposto rompe com a longa trajetória da doutrina católica pela defesa de um estado laico, da liberdade religiosa, do diálogo inter-religioso e da cooperação solidária e caritativa
entre os que creem e os que não creem. Assim, solapam o ensinamento de
que “a Igreja proclama sinceramente que todos os homens, crentes e
não-crentes, devem contribuir para a reta construção do mundo em que
vivem em comum (...), deplora, por isso, a discriminação que certos
governantes introduzem entre crentes e não-crentes, com o
desconhecimento dos direitos fundamentais da pessoa” (GS 21).
Como se não bastassem as distorções até aqui apresentadas, incorrem
em erro grave ao indicarem como opção mais adequada de voto, em suposta
exigência de valores cristãos, um candidato que não apenas declara-se
publicamente favorável à liberação do porte de arma por civis e à
revogação do Estatuto do Desarmamento4
aprovado em 2015, assunto vencido no país em referendo realizado em
2005, o qual aprovou com 63% o desarmamento, amplamente apoiado pela Igreja Católica, como também faz apologia ao uso da truculência e da violência por parte da força policial do Estado como forma de combate aos índices de criminalidade. Tais posições divergem frontalmente do ensinamento da Igreja ao sustentar que “a produção e o comércio de armas
afetam o bem comum das nações e da comunidade internacional. Por isso,
as autoridades públicas têm o direito e o dever de regulamentá-los. A
busca de interesses privados ou coletivos a curto prazo não pode
legitimar empreendimentos que fomentem a violência e os conflitos entre as nações e que comprometam a ordem jurídica internacional.” (CIC 2316).
Como afirma o Catecismo da Igreja Católica, “as
injustiças, as desigualdades excessivas e ordem econômica ou social, a
inveja, a desconfiança e o orgulho que grassam entre os homens e as
nações ameaçam sem cessar a paz e causam as guerras. Tudo o que for
feito para vencer essas desordens contribui para edificar a paz e evitar
a guerra” (CIC 2317). Certamente, a conduta, os discursos e o modo de
encarar a violência urbana expressa abertamente pelo candidato do PSL à presidência5,
num sem-número de ocasiões e declarações, distam léguas da perspectiva
complexa e sociologicamente abalizada que subsidia a visão da Igreja
sobre tais realidades.
Infelizmente, ao encobrirem suas convicções políticas nefastas de
suposta religiosidade e respeito à sã doutrina, esses irmãos esquecem-se
de que “a atuação cristã dos leigos no social e no político não deve
ser considerada ministério, mas serviço cristão ao mundo na perspectiva
do Reino” (Doc. n° 105 CNBB) que é sempre um lugar de
justiça, caridade e amor. Desse modo, ignoram que “a participação
consciente e decisiva dos cristãos em movimentos sociais, entidades de classe (sindicatos), partidos políticos, conselhos de políticas públicas e outros, sempre à luz da Doutrina Social da Igreja, constitui-se num inestimável serviço à humanidade e é parte integrante da missão de todo o povo de Deus” (Doc. n° 105 CNBB).
No bojo dos discursos proto-facistas de Bolsonaro está também a ridicularização das prerrogativas éticas e legais dos direitos humanos6,
desprezando a trajetória de luta popular para sua efetivação,
especialmente em países tão marcados por desigualdades sociais e fragilidade democrática como o Brasil,
bem como a identificação equivocada e fraudulenta dessa conquista
social com o que expressam jargões populares como “direitos de bandido”
ou o trocadilho “direitos humanos para humanos direitos”. Exemplo disso
são, além da minimização criminosa das inúmeras violações de direitos
humanos das quais o Estado Brasileiro foi algoz ou cúmplice, depois do Golpe de 647, a apologia à tortura8, ao estupro9, a defesa da pena de morte10 e da prisão perpétua11, da castração química12, de políticas de exclusão para refugiados13 e a consideração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)14, ganho imensurável para a democracia brasileira, um entrave ao cumprimento da lei e da ordem.
A revelia dessas reflexões, eleitores de Bolsonaro
que supostamente se fiam em sua fé católica, estrategicamente, ou por
ignorância doutrinária, preferem considerar nulas constatações
magisteriais como as do texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, as quais refletem que “em algumas assembleias ou assembleias legislativas aprovam leis injustas contra os direitos humanos
e a vontade popular, precisamente por não estarem perto de seus
representados, nem saberem dialogar e escutar seus cidadãos. Em alguns
países tem aumentado a repressão, a violação a direitos humanos,
inclusive o direito à liberdade religiosa, à liberdade de expressão e à
liberdade de ensino, assim como o desprezo à objeção de consciência”
(DA 79 e 80).
Nesse mesmo documento, a Igreja, ao analisar o contexto social e eclesial dos países da América Latina e do Caribe,
dados seus controversos processos de formação histórica afirma: “como
discípulos e missionários a serviço da vida, acompanhamos os povos
indígenas e originários no fortalecimento de suas identidades e
organizações próprias, na defesa do território, na educação bilíngue e
na defesa de seus direitos” (DA 531). Tal empenho missionário da Igreja
certamente encontraria como entrave a ignorância e a crueldade das
posições políticas de um possível governo de Jair Bolsonaro,
para quem as questões de demarcação de terras de povos originários,
dentre outras demandas, não passa de uma besteira inventada e utilizada
como massa de manobra pela “esquerda” para desperdiçar dinheiro com a Fundação Nacional do Índio, a Funai15.
Movido por um ímpeto missionário pleno de compromisso social e
respeito à dignidade da pessoa, o ensinamento Magistério afirma que “a Igreja denuncia a prática da discriminação e do racismo
em suas diferentes expressões, pois ofende no mais profundo a dignidade
das pessoas humanas ‘criada a imagem e semelhança de Deus’” (DA 533).
Indo além, sustenta que se vê preocupada com o fato de que “poucos
afro-americanos cheguem à educação superior, sem a qual se torna mais
difícil seu acesso as esferas de decisão na sociedade. (...) a Igreja
se faz solidária aos afro-americanos nas reivindicações pelas defesas
de seus territórios, na afirmação de seus direitos, de sua cidadania,
nos projetos próprios de desenvolvimento e consciência de negritude” (DA
533). Diante dessas asserções, parece ridículo que alguém, em nome da doutrina católica, apoie um candidato que em suas declarações minimiza a presença estrutural do racismo no Brasil e de suas consequências e que ainda seja capaz de, em tom jocoso, ridicularizar pessoas quilombolas durante eventos públicos16.
Diante de tais fatos, não fica complicado entender que, como parte de seu múnus na terra, a “Igreja
defende os autênticos valores culturais de todos os povos,
especialmente os oprimidos, indefesos e marginalizados, diante da força
avassaladora das estruturas de pecado na sociedade moderna (SD 243)”,
estruturas essas facilmente nomeadas como racismo, sexismo, misoginia, homofobia, transfobia, intolerância religiosa, trabalho escravo contemporâneo, corrupção, dentre tantos outros.
A essa altura de nossas reflexões, pergunto-lhes: qual a coerência ética e moral de justificar o voto em Jair Bolsonaro,
em razão de sua suposta defesa de valores evangélicos como “a vida”, se
tal defesa restringe-se apenas a defesa da vida do nascituro ante a
questão da descriminalização do aborto (para a qual não há nenhuma
menção ou posicionamento em seu projeto de governo), mas desconsidera
uma gama de outras formas de atentado à vida, como as inúmeras
apresentadas neste texto? A defesa da vida é uma
postura integral. Ou defendemos todas as vidas de todas as pessoas, em
todos os seus estágios e independentemente de suas condições
socioeconômicas, ou não defendemos a vida, mas barganhamos seu direito, o
direito de viver e viver com abundância, como nos prometeu Jesus (Cf.
Jo 10: 10), outorgando-lhe apenas aos que passam no crivo de nossa
moral, por tantas vezes corporativista e farisaica, sobretudo em relação
a alguns temas, em especial os da moral sexual, como
fazem alguns sites que se arvoram subsídio para o tal “voto católico”,
ao estabelecerem critérios unilaterais e fechados para essa complexa
escolha pessoal que carece de iluminação e não de dogmatismo
obscurantista.
Há ainda os que recorrem às polarizações políticas há muito questionáveis, a exemplo dos binômios “esquerda” x “direita”, “progressistas” x “conservadores”
para, num gesto maniqueísta, identificarem de um lado toda a fonte do
mal terreno, ou uma estrutura propriamente satânica; e do outro, valores
de inspiração cristã, moralmente aceitáveis em cujo o ideário estaria a
presença da verdade do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo,
respectivamente. Ledo engano! Não é de hoje que o Magistério, em
especial a Doutrina Social, que não é um pacote ideológico fechado, afasta tentativas de partidarização da Igreja ou de eleição de uma orientação política específica e exclusiva que seja representante de seu pensamento. O que a Igreja
espera de nós, cristãos leigos e leigas, em especial, é o acurado
discernimento dos sinais dos tempos para nossas escolhas pessoais na
vida política, assumindo a globalidade e a integridade da mensagem
salvífica, sem exclusivismos que escondem, na verdade, nossas
identificações pessoais e ideológicas, sob véu de uma fidelidade de
conveniência.
Mas, em quem votar? É a pergunta que dispara a angústia de tantos
católicos e católicas que, infelizmente, não aprenderam o caminho da
reflexão madura, o exame de consciência e a capacidade de discernimento
em suas comunidades pastorais, mas esperam uma indicação, um “cabresto
santo” que as guie para a “escolha certa”. Independentemente de qual
rosto apareça na urna quando o botão verde for pressionado pelos
católicos de todo Brasil, estou convicto de que é falaciosa e fraudulenta uma escolha por Jair Bolsonaro que se queira justificada pela fé ou doutrina católicas.
Para muitos, é no princípio da teologia moral do “mal menor”,
transposto para a esfera política, o qual posicionaria um mal menor na
categoria do bem ante a escolha obrigatória entre males diferentes, que
esses irmãos e irmãs católicos vão buscar descanso para suas
consciências ante esta contraditória escolha política. Ora, nessas
circunstâncias não há como se esquecer das palavras da filósofa judia Hannah Arendt acerca do julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann:
“sua consciência ficou efetivamente tranquila quanto ele viu o zelo e o
empenho com que a ‘boa sociedade’ de todas as partes reagia ao que ele
fazia. Ele não precisava ‘cerrar os ouvidos para a voz da consciência’,
como diz o preceito, não porque ele não tivesse nenhuma consciência, mas
porque sua consciência falava com a ‘voz respeitável’, com a voz da
sociedade respeitável à sua volta (Arendt, 1999, p. 143)”.
Assim, considerar a escolha do candidato do PSL como
válida sob esse princípio, em obediência à fé católica, ou seja,
considerar essa escolha um “mal menor” é atestar a nossa incapacidade,
como povo católico, de discernimento e indignação, sensibilidades
profundamente cristãs, ante a banalidade do mal, da qual nos alertou Hannah Aredent,
que hoje se nos apresenta “repleta de sentenças prontas, baseadas em
uma lógica autoexplicativa, desencadeada em raciocínios dedutivos, mas
que, todavia, andavam [andam] em descompasso com o percurso da própria
realidade” (Assy, 2001, p. 139, alteração minha).
Apesar de todo esse contexto, faço aqui minha profissão de fé na Divina Providência
que guia misteriosamente os passos do Povo de Deus através da História,
na qual já testemunhamos tantos desertos, covas de leões, gólgotas, mas
em todas essas situações venceu o Senhor da Vida e da Igreja. Crendo
nele, rezo e creio com Hannah Arendt: “(...) mesmo no
tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que
tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da
luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e
mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as
circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na terra”
(Arendt, 1987, p. 7).
Abreviaturas
DH Dignitatis humanae. Declaração sobre liberdade religiosa. Documentos do Concílio Vaticano II.
GS Gaudium et spes. Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje. Documentos do Concílio Vaticano II.
CV Caritas in veritate. Carta Encíclica do Sumo Pontífice Bento XVI
sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade.
CIC Catcismo da Igreja Católica.
Documento nº 105 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil sobre Cristãos Leigas e Leigos na Igreja e na Sociedade.
DA Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe.
SD Documento de Santo Domingo. Texto conclusivo da IV Conferência do Episcopado Latino-Americano.
Notas
[1] Plano de governo do candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro (PSL). Acesso em: 10 set. 2018.
[2] Entrevista concedida por Jair Bolsonaro ao Jornal Nacional na Rede Globo. Acessado em: 10 de set. 2018.
[3] Disponível em: Saiba como votou cada deputado no texto-base da reforma trabalhista. Acesso em: 10 de set. 2018.
[4] Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1326319.pdf>. Acesso em: 10 de set. 2018.
[5] Disponível em: A estratégia de Bolsonaro para diminuir a violência é dobrar o número de mortes por policiais. Acesso em: 10 set. 2018.
[6] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1TkZPqHJhlE>. Acesso em: 10 set. 2018.
[7] Exemplo do reconhecimento das atrocidades e crimes cometidos
durante a ditadura militar no Brasil é a condenação do Estado Brasileiro
na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em sentença proferida em 15 de março de 2018. Acesso em: 10 set. 2018.
[8] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=G5TiUmiF6ls>. Acesso em: 10 set. 2018.
[9] Disponível em: "Não estupro porque você não merece", diz Bolsonaro a Maria do Rosário. Acesso em: 10 set. 2018.
[10] Posição
em rota de colisão com a recente alteração aprovada pelo Papa Francisco
no Catecismo da Igreja Católica que passa a considerar a pena de morte
inadmissível em quaisquer casos. Acesso em: 11 set. 2018.
[11] Disponível em: Bolsonaro fala sobre pena de Morte e prisão perpétua. Acesso em: 10 set. 2018.
[12] Disponível em: Bolsonaro fala sobre castração química. Acesso em: 10 set. 2018.
[13] Enquanto o candidato tem a pecha de considerar tais pessoas em
situação extrema de vulnerabilidade emocional, social e política como “escória do mundo”.
Acesso em 10 de set. 2018. A Igreja Católica, no pleno exercício do
mandato missionário de Jesus e em fidelidade a sua Doutrina Social
propõe e confirma inciativas como a Pastoral dos Refugiados, além de promover subsídios de formação pastoral para a acolhida desses irmãos. Acesso em 10 set. 2018.
[14] Disponível em <Jair Bolsonaro fala sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente> Acesso em: 10 set. 2018.
[15] Disponível em: <Políticas Indígenas - Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Deputado Jair Bolsonaro (PP - RJ)>. Acesso em 10 set. 2018.
[16] Disponível em: <Afrodescendentes de quilombos 'não servem nem para procriar', diz Bolsonaro no clube Hebraica do Rio>. Acesso em: 10 set. 2018.
Referências
Arendt, Hannah. Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ASSY, bethânia. Eichmann, banalidade do mal e pensamento em Hannah
Arendt. In:
MORAES, Eduardo J.; BIGNOTTO, Newton (Orgs.). Hannah Arendt:
diálogos, reflexões, memórias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001a. p.
136-165
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/582683-o-voto-catolico-em-jair-bolsonaro-e-a-instrumentalizacao-da-fe
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