Ana Terra/BBC Brasil
Lugar de encontro e devoção de praticantes do candomblé há 17 anos, o
terreiro de Conceição d'Lissá tem recebido, nos últimos meses,
visitantes inusitados. O templo, localizado em Duque de Caxias, na
Baixada Fluminense, está sendo reconstruído com a ajuda de evangélicos.
Em meio a diversos casos de intolerância e violência contra religiões de
matriz africana, um grupo arrecadou mais de R$ 12 mil para as obras
depois que o espaço foi parcialmente destruído em um incêndio.
Em
uma manhã de sábado de fevereiro, a pastora Lusmarina Campos, da Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, foi ao local acompanhada de
três voluntários para, pessoalmente, ajudar na remoção de entulhos -
tijolos e pedaços de madeira que faziam parte do segundo andar do
terreiro, área atingida pelo fogo em junho de 2014. Na época presidente
do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do estado (Conic-Rio), Lusmarina
organizou a campanha de arrecadação, concluída no fim do ano passado,
para a reconstrução do templo.
"Logo que a gente ouviu sobre a destruição do
terreiro, eu pensei: 'Se em nome de Cristo eles destroem, em nome de
Cristo nós vamos reconstruir'. É extremamente importante dar um
testemunho positivo da nossa fé, porque o Cristo que está sendo
utilizado para destruir um terreiro está sendo completamente mal
interpretado", explica Lusmarina.
Aquele foi o oitavo ataque ao
local de culto da mãe de santo. Antes, tiros haviam sido disparados
contra o templo e a casa de Conceição. Três carros que pertenciam a
candomblecistas de seu grupo foram queimados. A polícia ainda não
identificou os responsáveis pelos crimes. Para tentar se proteger,
Conceição instalou grades e reforçou muros e cadeados do templo. Sem
apontar suspeitos, ela afirma que os ataques têm cunho religioso: "Não
há roubo de televisão, rádio, uma porção de coisas que poderiam usar
para fazer dinheiro. Não levam nada, só destroem."
No ano passado,
71,5% dos casos de intolerância religiosa registrados no Rio de Janeiro
foram contra grupos de matriz africana, segundo a Secretaria de Estado
de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos. Crimes de ódio
contra os adeptos de religiões como o candomblé e a umbanda também
ocorrem em outras partes do país, que possui cerca de 600 mil devotos de
crenças de origem africana, segundo o Censo de 2010.
"É um
fenômeno nacional, agora com essa face cruel, que já se expressou em
2008 e vem desde a década de 90, que são os traficantes
instrumentalizados por grupos neopentecostais que atacam os templos
religiosos nas periferias e favelas", comenta o babalaô Ivanir dos
Santos, interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa.
"O arcabouço do que está acontecendo no Rio de
Janeiro, em termos de violência religiosa tem como fundo uma lógica de
guerra", complementa a pastora Lusmarina. "Faz parte de um projeto de
poder a descaracterização de outros grupos religiosos, ou seja, uma
linguagem de desrespeito e condenação. Porque, nesse tipo de concepção, a
diversidade não é permitida. É um enfrentamento que precisamos fazer
porque é muito mais amplo do que a questão estritamente religiosa. A
questão é política. Por isso, a gente precisa se unir."
O babalaô
acompanhou desde o início a ação de apoio ao terreiro em Duque de Caxias
organizada por Lusmarina. "Esse ato é um divisor de águas na luta
contra a intolerância religiosa no país", comenta ele. A entrega do
dinheiro, com o maior aporte vindo de fiéis da Igreja Cristã de Ipanema,
que é evangélica, foi celebrada no fim do ano passado com uma cerimônia
inter-religiosa no terreiro de Conceição. Alguns dos que participaram
tiveram de enfrentar críticas e ameaças, principalmente na internet e
nas redes sociais. Lusmarina conta que um youtuber evangélico gravou um
vídeo em que incentiva outras pessoas a agredirem. "Ele diz: 'Pastora
vadia, vagabunda...Tem que tomar tapa na cara', de maneira muito
agressiva e violenta."
A discriminação, no entanto, não é
exclusiva de grupos extremistas. Os próprios voluntários que
acompanharam Lusmarina na preparação do terreiro para as obras admitiram
que, em determinado momento da vida, chegaram a ter uma visão negativa
em relação a religiões de matriz africana, por acreditarem que eram
ligadas ao mal.
"O candomblé sofre preconceito desde que era a
religião professada pelos nossos antepassados, que vieram para o país
escravizados", comenta Conceição. "As pessoas hoje endemonizam o
candomblé como se tivéssemos uma relação estreita com essa figura
chamada diabo, sem saber que o diabo não faz parte do nosso panteão de
divinizados. É uma visão eurocristã que não tem nada a ver conosco."
A exemplo da iniciativa tomada no Rio de Janeiro, a
direção nacional do Conic decidiu criar o Fundo de Solidariedade para o
Enfrentamento de Violências Religiosas. A entidade já começou a receber
doações e pretende criar um comitê inter-religioso que fique responsável
por gerir o fundo e selecionar pessoas e espaços que precisem ser
atendidos - em especial, os de religiões de matriz africana.
"Essa
repercussão já significou um racha na base de um grande bloco de
igrejas que parecia mais ou menos uniforme", diz Lusmarina. "Embora uma
parte das igrejas e de pessoas dentro de igrejas não tenha apoiado a
nossa ação, a grande maioria das pessoas apoiou e a grande maioria das
igrejas prefere o respeito à violência, prefere o amor, a
aproximação...que é de fato a mensagem central do evangelho. Esses são
valores fundamentais dos quais não podemos abrir mão."
As obras
no terreiro da mãe de santo Conceição começaram pela cozinha, que estava
funcionando no quintal desde que a estrutura interna da casa foi
danificada pelo incêndio. O local é considerado "o coração do barracão",
uma vez em que lá são produzidas as oferendas - parte importante da
tradição candomblecista.
"Quando eles vêm dar essa ajuda pra
gente, é justamente [uma forma de] reconhecer que, primeiro, a gente
sofre o ataque. Depois, é reconhecer que a gente tem o direito de
existir e professar o nosso sagrado", comenta Conceição. "Eles não
vieram aqui pra me mudar, evangelizar ou dizer que o que eu faço está
feio ou é do diabo. Vieram para dizer: 'Faça aquilo que você crê. Eu vou
te ajudar'."
Reportagem e vídeo de Ana Terra Athayde, do Rio de Janeiro para a BBC Brasil
Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43879422?ocid=socialflow_facebook
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