Em 2017 foram registrados 70 homicídios em conflitos territoriais segundo a Comissão Pastoral da Terra: nove a mais que em 2016 e mais que o dobro do registrado em 2013. Mais pobres e minorias étnicas são as principais vítimas.
A reportagem é de Tom C. Avendaño, publicada por El País.
Fátima Barros, de 42 anos, é antes de tudo quilombola. É a primeira coisa que diz, com uma voz que normalmente é aguda, mas que hoje, depois de horas expondo injustiças em uma reunião de comunidades tradicionais do Cerrado, em Balsas (Maranhão), está rouca: “Eu construí minha identidade em torno da causa quilombola”. Essa mulher negra,
de feições arredondadas e olhar duro, poderia ter construído sua
identidade em torno de, por exemplo, o fato de ser a primeira mulher de
sua família, descendente de escravos do Tocantins, a ir à universidade. Mas, em 2010, um fazendeiro queimou o quilombo de São Vicente, que tinha sido o lar de sua família desde que seu tataravô foi libertado da escravidão
em 1888, e depois entendeu que sua vida seria uma luta onde quer que
estivesse. “Eu não podia escolher não lutar porque sou mulher, negra e quilombola: sou o que o Brasil não quer ver”, disse.
Assim, Fátima Barros é uma líder quilombola. Assim como também era seu companheiro Gabriel Pacifico dos Santos, de um quilombo da Bahia.
Até que, no dia 19 de setembro, alguns homens desceram de um carro
branco e lhe deram 10 tiros enquanto ia a um enterro. Assim como também
eram os outros 12 líderes assassinados no Brasil em 2017, um número até agora inédito, mas que sugere ser a nova norma no campo brasileiro. “No Congresso,
as bancadas mais fortes são as ligadas ao agronegócio e aos
latifundiários. Esse fato favorece a criação de projetos de leis que
fortalecem os que têm interesse em explorar as nossas terras”, explica Fátima.
“O uso da força outrora executado pelos pistoleiros agora também está
sendo reforçado pelas milícias do campo que, em algumas regiões, servem
como seguranças armadas particulares para os fazendeiros e
empreendedores.” No dia 15 de abril, Nazildo dos Santos Brito, líder dos quilombos do Alto Acará, foi encontrado com três tiros na cabeça.
As zonas rurais brasileiras sempre foram lugares violentos, onde os
problemas, sobretudo territoriais, são resolvidos com pistolas,
incêndios e sangue, e não com uma sentença judicial. Mas fazia tempo que
não corria tanto sangue quanto agora. De acordo com o relatório recém-publicado pelo observatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2017 foram registrados 70 homicídios em conflitos territoriais:
nove a mais que em 2016 e mais que o dobro do registrado em 2013.
Embora os números gerais de violência tenham aumentado no maior país da América Latina,
em poucos lugares ela cresceu como no campo. Devemos recuar a 2003 para
encontrar um número tão alto. As piores matanças aconteceram nos
estados do Pará, Rondônia e Bahia.
As vítimas são geralmente pobres e de alguma minoria étnica. A CPT
calcula que os mortos que inflam os números são, ao menos desde 2015,
pessoas sem terra que trabalhavam para outros temporariamente, indígenas, quilombolas, ocupantes de terras abandonadas e pescadores. Alguns enfrentamentos são autênticas batalhas, como a chacina contra os índios Gamela que aconteceu em Viana (Maranhão)
em abril do ano passado: 13 índios ficaram feridos – cinco por balas – e
dois tiveram a mão decepada. Mas a maioria das vítimas se deve a
enfrentamentos menos dramáticos e que, portanto, têm menos repercussão.
Como o que teve a comunidade de Aliene Barbosa, uma jovem das margens do rio Arrojado (Bahia).
Um dia, em 2015, descobriram que sua terra havia sido ocupada por
pistoleiros, que tinham até montado barracas durante a noite para ficar
de guarda.
“Éramos 80 pessoas para enfrentá-los”, lembra Aliene
agora. “Eles ameaçaram atirar e quebraram o braço de um companheiro,
mas não fomos embora. Ficamos e batemos neles”, diz, encolhendo os
ombros na lógica cristalina entre uma ação e outra. “Quase todos
fugiram, menos um. Nós o capturamos e o amarramos em um poste. Cortamos
as cercas que tinham colocado, queimamos seus carros e derrubamos as
casas. E então, com tudo em ordem, já respondemos à justiça”.
Muitos dos entrevistados concordam que a violência é consequência do apoio do Governo de Michel Temer à bancada do agronegócio.
E a verdade é que há vítimas em ambos os lados. Mas é também verdade
que, quanto mais branco alguém for e quanto mais dinheiro tiver, menos
possibilidades tem de ser uma vítima. “Gente como eu não é bem atendida
em hospitais, também não ensinam para nós nas escolas”, explica Cristina, uma das poucas indígenas que restam da tribo Itay, a etnia Guarani-Kaiowá de Douradina (Mato Grosso do Sul).
Eles retomaram suas terras quatro vezes desde 2011 e ainda têm que
lidar com os pistoleiros de vez em quando. Vivem em um ciclo de
violência e ameaças do qual suspeitam que não sairão. Mas pior seria não
lutar. Fátima Barros tem isso bem claro. Ela foi
ameaçada de morte, como todos de sua família. Mas, sentada em sua mesa
de pedra, com a voz rouca depois de ter falado a 700 pessoas de comunidades tradicionais do Cerrado em Balsas,
ela sabe por que está ali: “Essa luta não é tanto pela terra, mas pelo
respeito pelo passado. A vida que meus ancestrais levaram. O quilombo de São Vicente foi dado ao meu tataravô por seu dono, Vicente Bernardinho,
por ser seu escravo preferido. Eles o tiraram de nós sem razão alguma.
Em 2010, provamos diante dos tribunais que era nosso legalmente, mas se
não tivéssemos conseguido teríamos perdido tudo. Isso está errado. Nossa
história é importante. O povo negro é bom contando histórias, as mulheres as contam enquanto quebram babaçu. Temos que conseguir que as escutem”.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/578215-incendios-pistolas-e-sangue-violencia-no-campo-brasileiro-cresce-e-ameaca-comunidades-tradicionais
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