O debate sobre a união igualitária na Austrália rifa a dignidade da comunidade LGBT e faz emergir uma onda de homofobia.
Casamento igualitário agora, pede a faixa de manifestantes em Sydney, em 6 de agosto
Em setembro, a Austrália
deve realizar um plebiscito via votação pelos correios no qual a
população será convocada a dizer se aprova ou não a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Será um momento emblemático não só para este país da Oceania, um dos
mais desenvolvidos e igualitários da atualidade, mas também para uma
discussão relevante em todo o mundo: devem os direitos das minorias ser
submetidos aos desejos da maioria?
A ideia do plebiscito é da coalizão parlamentar encabeçada
pelo Partido Liberal, do primeiro-ministro Malcolm Turnbull. Apesar do
nome, a sigla é a principal força conservadora do país, e alguns dos
partidos aliados a ela são abertamente reacionários. Antes de assumir o
governo, Turnbull defendia que o Parlamento australiano mudasse a
legislação, permitindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas uma
vez no poder passou a adotar a linha majoritária de seu grupo político.
Turnbull fez o mesmo no que diz respeito aos direitos dos
imigrantes, trocando as críticas às políticas chauvinistas de seu
antecessor, Tony Abbott, por uma retórica do tipo “Austrália em
primeiro-lugar”, ao estilo de Donald Trump. Contribui para a guinada o
fato de a coalizão liderada por Turnbull ter maioria mínima na Câmara e
no Senado, e portanto estar fragilizada. Assim, o premier é
constantemente alvejado por críticas das alas mais conservadoras do bloco.
Depois dos estudantes estrangeiros, parte dos quais perdeu
em maio o direito de continuar no país após a graduação, a depender da
profissão escolhida, a próxima vítima da conjuntura política australiana
é a comunidade LGBT.
Ao lançar o plebiscito via postal, em 9 de agosto, Turnbull
barrou o avanço de um projeto apresentado por dois senadores de seu
partido, Dean Smith e Trent Zimmerman, que previa a legalização do
casamento igualitário. Disse que se o plebiscito resultar em um “sim” ao
casamento igualitário, a legislação poderá avançar no Parlamento, mas
que se o resultado for “não”, tudo continuará como está.
Essa postura, além do próprio lançamento do plebiscito, faz
com que boa parte da comunidade LGBT da Austrália tenha a impressão de
que o governo está rifando seus direitos civis em troca de ganhos políticos.
À risca da lei, o plebiscito não é obrigatório nem
vinculativo. Isso significa que só votará quem quiser e que o resultado
não determinará uma eventual mudança na legislação. A promessa de
Turnbull, de que o projeto pela legalização só avança se houver um “sim”
da população, deixa o jogo desigual, no entanto. Isso porque o voto
“não” pode ser vinculativo na prática, uma vez que manterá o casamento
entre pessoas do mesmo sexo proibido, enquanto o voto “sim” pode apenas
fazer tramitar um projeto de legalização – que ainda precisaria da
aprovação dos parlamentares.
Mais que isso, a comunidade LGBT da Austrália está
consternada pois o debate a respeito do plebiscito está trazendo à tona
uma significativa quantidade de discursos de ódio, graças à intensa
campanha dos grupos contrários à legalização, feita em tons vitriólicos.
O Lobby Cristão Australiano (ACL), um grupo de pressão
política, prometeu usar toda a gama de recursos disponíveis na campanha e
afirmou que a votação é sobre “liberdade de expressão”, pois “não há
ameaça maior à liberdade de consciência e à liberdade de expressão do
que o casamento de pessoas do mesmo sexo”. Argumento semelhante foi defendido por Alex Hawke, vice-ministro da Imigração.
Tony Abbott, o antecessor de Turnbull, defendeu o voto “não” para acabar com a onda do “politicamente correto”. Outros têm argumentos homofóbicos
mais evidentes. A ex-presidente da Câmara Bronwyn Bishop, por sua vez,
afirmou que a legalização do casamento igualitário poderia abrir o
caminho para legalizar o sexo com animais. O ex-deputado do Partido
Liberal Chris Miles planeja imprimir milhares de panfletos afirmando que
filhos de casais homossexuais “têm mais chance de usar drogas, ficar
desempregados e sofrer depressão” e que os pais heterossexuais
“minimizam os abusos e a negligência” contra as crianças.
O movimento a favor da legalização está, em contrapartida,
dividido. Os parlamentares da coalizão governista favoráveis ao
casamento igualitário se encontram acuados pela pressão reacionária
contra Turnbull. Os partidos de centro-esquerda e os grupos ativistas
são contra o plebiscito, mas estão divididos entre participar da
campanha pelo “sim” ou boicotar a votação.
O ex-ministro da Suprema Corte australiana Micharl Kirby, abertamente gay, está no último grupo. E disse ao jornal Sydney Morning Herald
temer o efeito da campanha pelo “não” na comunidade LGBT. “Esta
[campanha] afetará muito os jovens homossexuais e reforçará sentimentos
de baixa auto-estima e sentimentos que sua comunidade os odeia", disse.
Ditadura da maioria
A análise do cenário político australiano indica que a única
“salvação” dos movimentos contra o casamento igualitário é a chamada
ditadura da maioria. Ou melhor, a esperança é uma mobilização pesada
para demonstrar de maneira artificial um suposto sentimento contrário ao
casamento gay.
Trata-se de uma discussão que remete aos primórdios da
democracia moderna. Pensador do século XIX que examinou a Revolução
Francesa e o nascimento do regime constitucionalista norte-americano, o
francês Alexis de Tocqueville destacou que a “essência” do governo
democrático era a “soberania absoluta da maioria” e alertou contra a
“tirania da maioria”. Diante desta preocupação, salientou a importância
dos chamados pesos e contrapesos em um sistema democrático, do estado de
direito e do papel contramajoritário do Judiciário.
O debate pode parecer antiquado, mas é extremamente atual. O
caso da Suíça é didático. O rico país europeu foi um dos últimos do
continente a autorizar o voto das mulheres em nível nacional, o que
ocorreu apenas em 1971, em um referendo. Antes, a legalização do voto
feminino era sistematicamente rejeitada em consultas populares nas quais
apenas os homens votavam. Em âmbito estadual, continuaram existindo
restrições ao voto feminino até 1990, quando a Suprema Corte forçou
todas as regiões do país a cumprirem a diretriz federal a respeito do
voto das mulheres.
Em 2009, o "majoritarismo" do sistema político suíço
novamente produziu uma violação de direitos humanos. Nas urnas, os
suíços votaram para proibir a construção de minaretes, as torres de
oração das mesquitas. A vitória da proibição ocorreu graças a uma firme
mobilização da direita xenófoba, que instigou o medo na população ao
confundir islã e terrorismo. O "fantasma" foi tão bem criado que os
suíços ignoraram a realidade: quando o referendo foi realizado, havia
apenas quatro mesquitas com minaretes no país todo, e nenhum dele
realizava as convocações para as orações, usuais em países de maioria
muçulmana.
No Brasil e nos Estados Unidos, o Judiciário foi
essencial para garantir os direitos de minorias. Nos EUA, em 2015, a
Suprema Corte derrubou todas as leis estaduais que restringiam o
casamento apenas a uma união entre homem e mulher, afirmando que tais
legislações eram inconstitucionais.
No Brasil, em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável
de pessoas do mesmo sexo. Dois meses depois, uma pesquisa mostrou que a
maioria dos brasileiros (55%) era contra o casamento igualitário. Em
2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) obrigou os cartórios a
converter a união estável em casamento.
Justamente pela tendência tirânica da maioria, raros são os
casos de direitos de minorias que avançaram quando os responsáveis pela
decisão eram da maioria. Em 2007, Portugal descriminalizou o aborto para
gestações com menos de dez semanas. Em maio de 2015, a Irlanda aprovou o
casamento de pessoas do mesmo sexo em referendo.
A Austrália, muito provavelmente, poderia entrar para esta
lista. Além dos políticos conservadores que defendem o casamento
igualitário, assim como a maioria dos progressistas, hoje na oposição, a
população também é majoritariamente favorável a ele. Uma pesquisa da
Universidade de Melbourne mostrou que, em 2015, 59% dos homens e 67% das
mulheres apoiavam o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Assim, num
referendo, com voto obrigatório (na Austrália, como no Brasil, o ato de
votar é compulsório), muito provavelmente a população determinaria a
legalização do casamento igualitário.
Por isso, a aposta dos reacionários australianos é o
plebiscito por correio. A consulta popular, de caráter optativo, não
terá qualquer valor científico para medir o sentimento real da
população. Além disso, seu desfecho será enviesado a favor do “não”, que
terá caráter vinculativo, como anunciou o primeiro-ministro. Para
completar, o simples fato de uma campanha ser realizada permitirá a
mobilização do campo contrário ao casamento igualitário.
Não cabe menosprezar a força desses setores. Em 2012,
enquanto o parlamento francês discutia o casamento igualitário, 100 mil
pessoas foram às ruas de Paris protestar contra a legalização, que
acabou aprovada. Se o "não" vencer, será um fato fato político e tanto,
de repercussão internacional, com reflexos relevantes para a discussão
sobre o respeito e a dignidade na sociedade australiana e no mundo como
um todo.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/diversidade/o-casamento-gay-e-a-tirania-da-maioria
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