O falecimento de Guido Rossi [no dia 21 de agosto
passado], intelectual, jurista, administrador, escritor, é uma grave
perda para quem quer entender e mudar as ferozes dinâmicas de um
capitalismo sem regras. Por isso, repropomos uma reflexão dele de 2009,
entre os inúmeros artigos escritos para o jornal Il Manifesto.
O artigo foi publicado pelo mesmo jornal, 23-08-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Nos últimos 20 anos, a globalização mudou radicalmente a vida
econômica, política e social dos povos e dos indivíduos, sem que o
direito tenha seguido e disciplinado a sua evolução.
Jacques Derrida, os seus seminários sobre La Bestia e il Sovrano
(Jaca Book, 2009, p. 61) deu um exemplo esclarecedor, perguntando-se
qual teria sido a reação à evisceração das torres gêmeas do World Trade Center no dia 11 de setembro de 2001
se a imagem não tivesse sido registrada, filmada, indefinidamente
reproduzível e compulsivamente transmitida em todos os países do mundo. O
retorno a Hobbes, onde o Estado, o Leviatã, nada mais é do que uma máquina para dar medo,
e o medo é a única coisa que motiva a obediência à lei, leva a concluir
que “uma vez que não há lei sem soberania (...) esta chama, pressupõe,
provoca o medo”.
O perigoso filósofo do direito alemão Carl Schmitt, amado hoje tanto à direita quanto à esquerda, especificava que “Protego ergo obligo é o cogito ergo sum do Estado”. E este princípio tinha sido um dos fundamentos do estado nazista.
Mas o Estado atual, na sua dimensão político-midiática, tem
instrumentos para a criação do medo e, portanto, de exigências de
proteção ou até de homologação com a Gewalt, isto é, a violência, muito maiores do que se possa imaginar.
A crônica cotidiana, infelizmente, me exime de qualquer exemplificação. Basta citar o Patriot Act e Guantánamo, porque, talvez, estejam entre os exemplos mais flagrantes da derrota do direito diante do medo. Tanto é que o presidente Obama recentemente teve que se contradizer, desmentindo a promessa de fechar Guantánamo.
A verdade é muitas vezes manipulada em nome da segurança. É assim que a construção da categoria dos enemy combatants retirou deles, depois do 11 de setembro, todos os direitos a um justo processo, a uma investigação normal, à assistência de um advogado, a um debate regular.
Infelizmente, nem mesmo a Suprema Corte, outras vezes bem mais atenta, no caso Hamdi versus Rumsfeld (124, S.Ct. 2633), conseguiu garantir esses direitos a quem é definido como enemy combatant, mesmo que se tratasse de um cidadão estadunidense: tudo em nome da segurança.
Sempre idêntica é a conclusão: a violência do Leviatã para te proteger do medo (desta vez, dos terroristas)
sempre atinge aqueles que não são capazes de se defender: dos menores
aos imigrantes, a todos os diferentes que as sociedades atuais tendem a
excluir cada vez mais.
Também não é possível silenciar que o império da violência e,
portanto, o homônimo do medo tornou-se planetário e já transcende a Gestalt do Leviatã.
Guido Rossi, no dia 21 de agosto
passado, intelectual, jurista, administrador, escritor.
A literatura apocalíptica é imensa. Limitar-me-ei aqui a citar
somente três textos recentes que dão um quadro abrangente dela, bastante
preciso, embora talvez não completo.
O primeiro é a última obra de René Girard (Portando Clausewitz all’estremo,
Milão, 2008, 312 páginas), que demonstra como a violência e as guerras
no mundo são levadas ao extremo e como a aceleração da história cria no
gênero humano uma corrida inconsciente e angustiante rumo ao apocalipse.
Girard especifica em conclusão que “o aquecimento
climático do planeta e o aumento da violência são dois fenômenos
absolutamente ligados (...) e essa confusão entre natural e artificial
representa, talvez, a mensagem mais forte contida nos textos
apocalípticos”.
E, obviamente, a globalização tornou o destino dos menores mais precário, porque – repito – a violência sempre é descarregada sobre os mais fracos.
Martin Rees, em seu livro Our Final Century
(Londres, 2003), deixa poucas esperanças de sobrevivência até o fim
deste século, não só por causa do perigo das armas atômicas, ao qual,
felizmente, escapamos no século passado, mas por causa dos igualmente
graves perigos aos quais somos submetidos agora pelas biotecnologias,
mais do que aos erros, cada vez mais frequentes, nas experiências
científicas e nas tecnologias de vários tipos. E isso independentemente
das outras observações de R. Posner (Catastrophe,
Oxford, 2004), sobre os riscos catastróficos das doenças pandêmicas,
mais do que sobre as possíveis colisões astrais e assim por diante.
Com uma população mundial que, de acordo com os cálculos de Levy-Strauss,
em 2050, chegará a mais de nove bilhões de indivíduos, dificilmente
alimentáveis, mas sujeitos a riscos de fome. A última capa do semanal The Economist traz a manchete How to feed the world [Como alimentar o mundo], para chegar às mesmas conclusões.
A subestimação do porte desses riscos certamente não reduz a sua
reprodução constante reproposição na mídia e o consequente aumento
coletivo do estado de medo e de angústia.
A esses riscos apocalípticos, acrescentou-se agora uma grave crise
econômica mundial que, nas suas recaídas sobre a economia real e, em
particular, sobre o desemprego, aumenta em todos os países a sensação de
instabilidade e de ameaça à sobrevivência.
A crise demonstrou os limites de uma ideologia baseada na pesquisa
individualista da riqueza que levou à autodestruição do sistema em uma
recessão econômica mundial que afeta especialmente os países mais
pobres.
Além disso, em um sistema em que vigora a força, quem está destinado a
perder é sempre o mais fraco que está desprovido de força contratual, a
única ao qual uma ostensiva ideologia vulgar continua atribuindo valor,
assim como aos efeitos resolutivos da crise.
A autorregulamentação e o contrato são novos ídolos do mercado global que clamorosamente fracassou.
Sem contar que o próprio desenvolvimento econômico orientado cada vez
mais ao consumismo provocou um fenômeno brilhantemente descrito
recentemente por Robert Reich (Supercapitalismo,
2009). O impulso ao extremo da concorrência entre as empresas, a fim de
reduzir cada vez mais os preços dos produtos, para conquistar os
consumidores, necessariamente levou à redução dos custos, lá onde era
mais fácil, isto é, como sempre, contra os mais fracos, ou seja, os
trabalhadores.
Estes, pouco a pouco, tiveram seus direitos, que tinham sido
conquistados fatigantemente, subtraídos. Em suma, o interesse do
consumidor levou a melhor sobre os direitos do cidadão, e, assim, a
concorrência derrotou a democracia e a segurança.
Aquela segurança que, com o medo e os direitos, tornou-se objeto de
inquietantes antinomias: pisoteiam-se os direitos para garantir a
segurança, mas, com essas violações, criam-se medos, e, assim, em um
círculo vicioso, volta a violência do Leviatã.
Então, a solução está em outro lugar: ou seja, acima do Leviatã,
acima dos Estados, isto é, no respeito pelos direitos humanos e
naqueles princípios que estão acima e fora das normas impostas pelo
Leviatã.
É bem verdade que, como nos ensinaram tanto N. Bobbio quanto M. Ignatieff, os direitos humanos, na sua pretensão de universalidade, são absolutamente históricos e nada absolutos.
Na sua base, no entanto, na diversidade das culturas, existe um minimum sem o qual as sociedades não poderiam sobreviver. É nesse minimum que se derrota o seu suposto relativismo, e é nesse minimum que hoje G. B. Vico reconheceria o senso comum inerente à faculdade do ingenium
própria de todo gênero humano e à sua propensão natural à justiça.
Àquela justiça à qual o filósofo napolitano também remetia a “sabedoria
vulgar” dos povos primitivos.
Um dos maiores expoentes dessa corrente de pensamento é, atualmente, o filósofo estadunidense Ronald Dworkin.
Trata-se, em suma, de máximas gerais, de padrões, embora disformes em
relação às normas positivas, cujo conteúdo se encontra nos princípios
principalmente constitucionais e, depois, também, morais de aceitação
comum, representados por aquele minimum que eu mencionei acima.
E é este o momento do encontro entre direito e ética, para fins de
justiça, e longe das fórmulas equívocas e enganosas de códigos éticos ou
da responsabilidade social ou, pior ainda, moral das empresas.
O conteúdo desses princípios, desses padrões é extremamente variado e
complexo. E, talvez, não seja por acaso que, a tais princípios, os
chamados global legal standards, a Europa também está trabalhando para evitar que haja a réplica da crise que abalou a economia mundial.
Os princípios devem ser aceitos pelos vários países, de acordo com as
modalidades e as estruturas do direito internacional. Eles também
servirão para decidir os hard cases, ou seja, os casos difíceis em que a norma falta ou é lacunar. Basta-me, aqui, citar a extraordinária sentença da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Roper versus Simmons de 1º de março de 2005.
Tratava-se de julgar a pena de morte sentenciada contra Christopher Simmons por um assassinato cometido por ele quando tinha 17 anos. Sabe-se que o artigo 37 da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança
de 1989 estabelece, entre outras coisas, que: “Nem a pena de morte nem a
prisão perpétua sem possibilidade de libertação devem ser decretadas
para crimes cometidos por pessoas com idade inferior a 18 anos”. Mas é
igualmente sabido que os Estados Unidos e a Somália são os únicos dois países do mundo que não assinaram a Convenção.
Pois bem, a Suprema Corte, na sua sentença
magistral, concluiu que: “É correto que consideremos o peso decisivo da
opinião internacional contra a pena de morte em relação aos menores,
consistente, em grande parte, com a instabilidade e a labilidade
emocional dos menores, que, muitas vezes, podem ser fatores do crime”.
E, assim, a pena de morte não foi aplicada, porque, de acordo com o redator, o juiz Anthony Kennedy, teria sido, entre outras coisas, contra os evolving standards of decensy. A decência torna-se critério interpretativo e princípio fundamental do direito!
A referência à opinião internacional na interpretação da Constituição estadunidense, depois, foi objeto de amplas discussões, que, no fim, confirmaram o princípio estabelecido pela Suprema Corte.
Gostaria, como meditação final, concluir que, na presença de
inundações normativas e administrativas descoordenadas e, muitas vezes,
contraditórias por parte dos poderes legislativos e executivos, não só
italianos ou europeus, mas de todo o mundo, o horizonte do direito só
pode ser aberto se os juízes, tanto internos quanto internacionais, de
qualquer categoria, em todos os países democráticos, continuarem
empenhando a sua dignidade e independência, reivindicando com vigor os
princípios das liberdades democráticas e da justiça, seja com avaliações
corretas da realidade, seja com referência, quando necessário, aos
padrões de civilização para impedir a violência e as iniquidades do Leviatã.
Gostaria, então, de terminar com a última frase escrita por Ronald Dworkin em “O Império do Direito”
(Milão, 1989): “A atitude do direito é construtiva: o seu propósito, no
espírito interpretativo, é o de fazer prevalecer o princípio sobre a
práxis, para indicar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo
uma correta fidelidade em relação ao passado. Enfim, ele representa uma
atitude fraterna, uma expressão do modo pelo qual, embora divididas nos
nossos projetos, interesses e convicções, as nossas existências estão
unidas em uma comunidade. É isso que o direito é para nós: para os
indivíduos que queremos ser e para a comunidade em que queremos viver”.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/570982-na-globalizacao-o-medo-nega-o-direito-e-o-consumidor-vence-sobre-o-cidadao
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