Definição pobre de inteligência e má compreensão das capacidades humanas
naturais colaboram para a inadequada educação hoje oferecida.
Em diversos textos e entrevistas passados, tanto quando examinamos pensadores clássicos da educação e a Pedagogia do Amor, como quando analisamos a abordagem da Aprendizagem Socioemocional, de Daniel Goleman e Peter Senge,
tratamos da importância de se desenvolver as múltiplas capacidades
inatas do ser, que podem ser compreendidas como autônomas, mas estão
ligadas entre si, ou seja, há uma interdependência relativa entre elas.
Uma proposta de educação de qualidade deve considerar os
múltiplos aspectos da inteligência, os múltiplos talentos, as múltiplas
capacidades, mas tendo em mente que os seres nascem, quase sempre, com
aptidão maior para uma ou algumas delas.
Um indivíduo com dificuldade em outras capacidades, mas com
grande aptidão musical, como o brilhante David Helfgott, cuja vida foi
retratada no filme Shine, pode ser feliz, pleno, se conseguir desenvolver seu talento e apresentá-lo.
A maior parte das pessoas não consegue, contudo, desenvolver
seus talentos, nem apresentá-los aos demais por lhes ser imposto um
modelo de educação aprisionador, presunçoso de já ter as respostas que
todos precisam e focado em pouquíssimas dimensões da inteligência
humana.
Com o modelo atual de educação, ou o indivíduo tem as
inteligências linguística e lógico-matemática desenvolvidas, ou ele terá
diversos dissabores e provavelmente se sentirá incapaz, desinteressado
pelos estudos, apesar de ser um imenso talento, por exemplo, em termos
musicais, espaciais ou mesmo corporais-cinestésicos.
David Helfgott, pianista australiano que sofre de transtorno
esquizoafetivo. Sua trajetória, retratada no filme "Shine", é uma
exceção
O premiadíssimo psicólogo cognitivo e educacional Howard
Gardner, professor da Universidade de Harvard, publicou em 1983 o livro Estruturas da Mente,
no qual procura desconstruir a ideia de educação baseada numa limitada
perspectiva acadêmica, tão somente focada nas capacidades linguística e
lógica do indivíduo, exatamente o caso do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), praticamente o único “norte” existente hoje em termos de medição da qualidade da educação no Brasil.
Pelas suas contribuições para avanços na educação, Gardner
já recebeu diversos prêmios, como das respeitadas Fundação MacArthur e
da Fundação John S. Guggenheim; foi homenageado por mais de 30
universidades em países como Canadá, Chile, Irlanda, Israel e Coréia do
Sul; foi apontado duas vezes como um dos 100 intelectuais mais
influentes do mundo pelas renomadas revistas Foreign Policy e Prospect; dentre outras honrarias.
De certa forma, o que Gardner fez foi resgatar implicitamente algumas ideias de Comenius, Rousseau, Pestalozzi e Rivail,
empregando uma visão da sua área, a psicologia cognitiva e educacional,
dando cientificidade à noção de que todos os seres nascem com
diferentes capacidades naturais, ou inteligências, ou talentos, que
precisam ser desenvolvidos. Numa reapresentação do seu próprio livro
citado, ele explica o seguinte:
“Estruturas foi visto como um proveitoso estudo dos
talentos humanos, mas não como um exame válido da inteligência. Conforme
afirmo no próprio livro, não atribuo qualquer valorização particular à
palavra inteligência, mas, de fato, atribuo grande importância à
equivalência de diversas faculdades humanas. Se os críticos desejassem
rotular a linguagem e o pensamento lógico como talentos também, e
retirá-los do pedestal que presentemente ocupam, então eu ficaria feliz
em falar sobre talentos múltiplos. Mas resisto fortemente a qualquer
tentativa de usar um contraste entre inteligência e talento como uma
tentativa velada de ignorar ou minimizar a gama de capacidades críticas
humanas” (p. xi).
Gardner estabelece uma definição abrangente de inteligência,
que se torna mais útil para apreender as diferentes capacidade humanas
que já nascem com o ser humano, mas que podem e devem ser desenvolvidas.
Segundo ele, “uma inteligência é a capacidade de resolver problemas ou
de criar produtos que sejam valorizados dentro de um ou mais cenários
culturais” (p. xi).
No momento em que a inteligência passa a ser compreendida
como um conjunto de habilidades para gerar valor em sentido amplo,
internamente ao indivíduo ou em relação com outros, dentro da sociedade,
ela se torna muito mais englobante das capacidades inatas do ser
humano, permitindo que se olhe para todas elas e que não se deixe de
lado aspectos fundamentais do seu desenvolvimento.
Um teste de medição da qualidade da educação baseado nas
habilidades em Português e Matemática, como o Ideb, revelará um
resultado radicalmente distinto de um teste, ou um grupo de testes, que
procure medir, conjuntamente, a inteligência interpretativa, o
raciocínio lógico simples (causa e efeito com terceiros excluídos), o
raciocínio complexo (com terceiros incluídos e efeitos emergentes), a
inteligência emocional, a inteligência moral, a sensibilidade artística e
outras importantes capacidades humanas.
Gardner não procura esgotar todos os tipos de inteligência
numa lista taxativa, mas faz uma relação daquelas que entende ser, na
sua visão, de acordo com as suas pesquisas, as principais para que o ser
humano possa se desenvolver adequadamente, sem prejuízo de vir a
reconhecer outras no futuro: a) linguística (uso das palavras); b)
interpessoal (percepção do outro); c) intrapessoal (autoconhecimento);
d) lógico-matemática (uso dos números e do raciocínio lógico-formal); e)
musical (percepção e expressão da música); f) espacial (percepção e
transformação dos espaços); g) corporal-cinestésica (uso do corpo).
Já na década de 90, ele acrescentou à lista a inteligência
naturalista, aquela necessária para lidar com o meio ambiente, com a
natureza, atuando, por exemplo, na agricultura.
Se há múltiplos aspectos importantes da inteligência, não se
deve avaliar apenas alguns deles e, mesmo assim, de forma bastante
limitada. Sobre os testes de avaliação, Gardner diz o seguinte:
“Quase todos os testes em voga são projetados para avaliar
essencialmente o desembaraço linguístico e lógico (bem como alguma
velocidade, flexibilidade e talvez, também, superficialidade). (...)
Antes de permitir que a cauda da testagem abane o cachorro da avaliação,
peço pelo desenvolvimento de meios de avaliação que sejam inteiramente
adequados à gama de habilidades humanas que merecem ser investigadas”
(p. xi-xii).
Voltando ao exemplo do músico acima trazido, é claro que,
para ele ter mais sucesso na vida, como qualquer outro artista, é
importante ter diferentes inteligências bem desenvolvidas, e isso requer
não somente uma visão mais abrangente e complexa das inteligências,
como também do que o próprio “sucesso” significa.
A chegada ao pobre Ideb, tido por alguns como um suposto
grande método de avaliação e de direcionamento da educação, é facilmente
explicável. Parte-se, em regra, não somente no Brasil, do pressuposto
de que “sucesso” é ingressar num bom curso de uma boa universidade para
se tornar um bom profissional, tornar-se famoso, poderoso e rico.
Essa é a visão de uma sociedade cada vez mais doente e a
caminho do precipício. O sonho da grande maioria dos brasileiros é se
tornar médico por uma universidade pública de renome e depois caminhar
para uma suposta glória em status e dinheiro ou se tornar bacharel em
Direito, passar em um concurso público e viver, em regra, trabalhando
pouco, financeiramente estável e, de preferência, num cargo que dê
status e poder.
Causa estranheza, porém, o fato de muitos médicos e de
muitos concursados serem tão ou mais debilitados emocionalmente do que
os demais. É hoje alarmante o número de dependente químicos, depressivos
e suicidas, o que comprova serem bastante deficientes as atuais
políticas educacionais e de saúde.
A educação e seus testes de avaliação precisam ser muito
mais holísticos, completos, complexos, abrangendo os múltiplos aspectos
da inteligência importantes para uma vida mais plena.
Como vimos nos textos anteriores, o sucesso na vida
acadêmica pode estar até relacionado com o sucesso em testes como o
Ideb, pois parte-se de uma visão limitadíssima para criar um teste
pautado nela, apesar de que, de qualquer forma, o Ideb não mede
conhecimentos em várias outras disciplinas e a educação tem sido
distorcida para que atinja a qualquer custo uma boa nota no Ideb,
prejudicando a aprendizagem em geral.
Não bastasse isso, o fato é que o “sucesso” na vida não
depende apenas de êxito nas disciplinas e no Enem. Há uma gama de outras
inteligências necessárias a uma vida com bons relacionamentos, com
proatividade, capacidade de inovar, empatia, resiliência, empreendedorismo, habilidade de mudar completamente de cenário nas adversidades ou em desafios autoimpostos etc.
Nesse sentido, continuaremos no próximo texto analisando
como desenvolver as múltiplas inteligências, a importância disso e as
melhorias que podem ser feitas nos testes de avaliação da educação.
Marcos de Aguiar Villas-Bôas, doutor pela PUC-SP, mestre pela
UFBA, é consultor, ex-secretário do Trabalho e Desenvolvimento Econômico
de Sobral (CE), ex-conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais (Carf) do Ministério da Fazenda, ex-assessor da Secretaria de
Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE/PR) e pesquisador
pós-doutoral independente em diversas universidades estrangeiras.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/vanguardas-do-conhecimento/educacao-boa-desenvolve-as-multiplas-inteligencias
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