Jovens participam de uma romaria durante o I Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora
Dener Ricardo tem apenas 25 anos. Escreveu-me uma carta em tom
pessoal, um relato pungente de sua trajetória na Igreja, da Renovação
Carismática Católica e a rotina de adorações até a adesão à tradição da
trajetória da Igreja latino-americana, à Teologia da Libertação –e à
liderança do Papa Francisco.
No final do texto, uma convocação, um questionamento: “Vamos aspirar a
uma Igreja simples, profética, que denuncia as injustiças contra os
pobres e não se alia aos poderosos desta terra.”
Um jovem que torna verdade a profecia de Isaías no Segundo Canto do
Servo Sofredor: “De minha boca fez uma espada cortante, abrigou-me na
sombra da sua mão; fez de mim uma seta afiada, escondeu-me na sua
aljava.” (Is 49, 2)
Uma carta-provocação, às vésperas do II Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora, que acontecerá entre 7 e 10 de setembro em Poá (SP).
Os ouvidos da Igreja estão se abrindo para a voz dos jovens que
desejam o retorno à originalidade das primeiras comunidades cristãs? Os
olhos da Igreja estão se abrindo para a luz que carregam os jovens? Já
passa da hora.
Mauro Lopes
A íntegra da carta de Dener:
“Sou de São José do Rio Preto (SP), tenho 25 anos. Minha família
sempre foi católica, mas, antes dos meus 14 anos, eu não praticava muito
a religião: ia à Missa, fazia algumas poucas orações e só. Muito pouco
me importava a dimensão comunitária da fé. Aos 15 anos me apresentaram a
Renovação Carismática Católica (RCC). Adotei este tipo de
espiritualidade com muito entusiasmo: participava ativamente dos grupos
de orações e eventos da RCC. Tinha um apreço muito grande pela Canção
Nova e outras emissoras de TV deste segmento. Durante três anos, a minha
espiritualidade foi moldada neste contexto…até que algo começou a
mudar.
Já na faculdade, passei a questionar o porquê de muitos irmãos (ãs)
nada possuírem para comer ou viver com um patamar mínimo de dignidade,
ao passo que uma minoria acumula rios de dinheiro. Comecei a me
questionar, dentro da fé católica, se isso poderia ser justo. Mas nos
grupos da RCC não encontrei nenhum tipo de resposta: pouco ou nada se
falava sobre os pobres e seus mais diversos sofrimentos, quase nunca se
incentivavam ações concretas para pelo menos aliviar as tribulações
daqueles mais necessitados.
Em três anos de Renovação Carismática, NUNCA, repito, NUNCA houve um pregador sequer que tivesse pautado sua pregação em Mateus 25, 31-46
ou nos documentos sociais da Igreja, que eu sequer sabia que existiam.
Muitas e muitas pregações, a massacrante maioria, era pautada num
discurso extremamente moralizante, bem do tipo pode ou não pode, um discurso bélico e apologético. O resultado em minha espiritualidade você já pode imaginar: o meu cristianismo tinha pouco de Evangelho. Gostava de cruzadas
religiosas, tinha aversão ao ecumenismo, a ponto de até recusar uma
oração comum, com dois irmãos protestantes que faziam um trabalho de
visita a um hospital onde eu estava internado. Discutia áspera e
frequentemente com pessoas dos Testemunhas de Jeová que vinham à minha
porta. Era moralista e algumas vezes gostava de julgar quem não pensava
como eu. Graças a esse moralismo exacerbado deixei de viver muita coisa
boa e saudável próprias do tempo de juventude.
Em um dado momento desta trajetória minha consciência começou cutucar
se estas minhas atitudes eram mesmo alinhadas ao Evangelho de Nosso
Senhor. Isso se somou aos questionamentos que eu fazia sobre a
disparidade entre ricos e pobres. Um dia, fui apresentado à Teologia da
Libertação e à Doutrina Social da Igreja. Comecei a ler os textos do
padre Gustavo Gutierrez, frei Leonardo Boff, padre Jon Sobrino, Dom
Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, as ideias de São Vicente de
Paulo e Beato Antonio Frederico Ozanam, entre outros. Por meio destes
cheguei aos documentos que compõem o Compêndio da Doutrina Social da
Igreja, bem como aos ensinamentos do Concílio Vaticano II e do CELAM.
O ponto culminante veio com o pontificado do Papa Francisco. Entrei
de cabeça. Uma Igreja pobre para os pobres, uma Igreja misericordiosa,
solidária, fraterna, de portas abertas e que denuncia profeticamente a
injustiça social decorrente de um sistema que coloca o dinheiro no
centro de tudo. Esse encontro me fez muito bem. Comecei a entender que
Cristo se identifica nos pobres e sofredores do mundo e, dentro dos meus
limites, comecei a dar início a pequenas ações concretas: visitar
asilos, levar alimentos a instituições que atendem os pobres,
inteirar-me da politica brasileira para ver o que eu podia fazer para
cobrar dos governantes uma atenção privilegiada aos mais necessitados.
Neste caminho identifiquei-me com a Pastoral do Povo da Rua, onde
hoje atuo com grande alegria. Confesso: Não há dinheiro no mundo que
pague o trabalho junto e a favor dos pobres; ver o sorriso no rosto de
um morador de rua quando encontra sorriso e amizade é algo excepcional.
Passei aos poucos de uma espiritualidade pesada, intimista,
preconceituosa e truncada para uma espiritualidade de partilha,
comunhão, solidariedade e acolhimento. Hoje sou muito mais feliz com
minha espiritualidade.
Ah, não poderia esquecer: comecei ganhar alguns rótulos de pessoas da
ala conservadora da Igreja: herege, comunista, falso católico, entre
outros. Confesso que fiquei um pouco chateado. Mas, se viver uma Igreja
acolhedora, misericordiosa e que assume a opção preferencial pelos
pobres é sinônimo de heresia, então sou um “herege”.
O caminho que se abriu permitiu-me participar melhor da Santa Missa,
fazer minhas orações cotidianas e viver os sacramentos, entender que na
vida nem tudo é preto no branco, por isso se faz importante o
discernimento que é um dom do Espirito Santo… Minha relação com a Igreja
ganhou em qualidade. Comecei a descobrir no Evangelho que Jesus sempre
se colocava ao lado dos que sofriam e eram excluídos da sociedade
daquela época. Provavelmente, foram estas escolhas que o levaram à cruz.
JESUS ERA UM REVOLUCIONÁRIO e digo isso sem medo. De conservador ele
não tinha absolutamente nada. Comecei a ver que o verdadeiro profetismo é
denunciar os esquemas injustos e o acúmulo de riquezas, como fizeram os
profetas do Antigo Testamento.
Contudo, não me engano: reconheço que tenho muito a melhorar como ser
humano, tenho muito a converter dentro de mim, tenho muito o que
aprender, para assim melhor me doar ao próximo. Peço que você reze por
mim!
Por fim, se você publicar mesmo esta carta, gostaria de fazer um
apelo a todos os leigos (as) e presbíteros que venham a ler esse
depoimento: com palavras e atitudes vamos fazendo uma Igreja pobre, com
os pobres e dos pobres. Vamos aspirar a uma Igreja simples, profética,
que denuncia as injustiças contra os pobres e não se alia aos poderosos
desta terra. Assim era no inicio do cristianismo e é assim que
verdadeiramente iremos seguir os passos do Deus que se fez pobre, para
nos enriquecer com sua pobreza.
Viva o Papa Francisco e que Deus o conceda longa vida, com muita
saúde, conduzindo a Igreja pelas veredas da simplicidade do Evangelho!
Servo de Deus, Dom Helder Câmara e Bem Aventurado Dom Oscar Romero,
roguem por nós e especialmente pelos marginalizados, a quem devotaram as
vossas vidas!
Dener Ricardo”
Disponível em: http://outraspalavras.net/maurolopes/2017/08/17/carta-de-um-jovem-catolico-da-renovacao-carismatica-a-descoberta-da-teologia-da-libertacao/
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