Por Nanni Rios*
Neste Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, muito me alegra a
oportunidade de ocupar esse espaço de – justamente – visibilidade. Não
que a mulher lésbica não seja enxergada socialmente. Nós somos vistas,
sim. Mas o contexto não costuma ser de protagonismo ou de diversidade.
Temos exceções, é claro (e eu chego nelas no final deste texto), mas, em
geral, as nossas vivências são enquadradas socialmente em dois
extremos: o fetiche ou o ódio.
Mulheres lésbicas que se encaixam, fisicamente, num padrão “feminino”
têm a sua relação fetichizada. Duas mulheres na cama são fantasia comum
para os homens. A indústria pornô tratou de desenhar “bem” este
estereótipo, com filmes em que duas (ou mais) mulheres apresentam um
sexo automatizado e sem criatividade, sem graça e sem vigor, como boa
parte dos homens imagina que seja o sexo entre mulheres. Algo morno,
quase inválido e, em geral, com o uso de brinquedos e artifícios fálicos
para tentar suprir a “falta” do homem na cena.
No outro extremo, estão as mulheres lésbicas com aparência e
trejeitos mais “masculinos” que despertam certa repulsa e são,
frequentemente, vítimas de violência verbal ou física, por simplesmente
serem quem são. Juntas ou sozinhas, na cama ou indo à padaria, as
mulheres lésbicas que não se enquadram no padrão estético que agrade ao
desejo masculino são xingadas, ameaçadas e agredidas nas ruas todos os
dias. “Quer agir como homem? Então vai apanhar como homem” é o que já
ouvi de muitas amigas sobre como começam agressões na rua e até mesmo
dentro de casa, fruto de uma total confusão entre sexualidade e papéis
de gênero – um assunto que, por si só, renderia um novo texto.
Fato é que a sexualidade feminina sempre foi uma questão
invisibilizada. O clitóris, por exemplo, órgão da anatomia feminina cuja
única e exclusiva função é o prazer da mulher, foi descoberto no século
16, mas a comunidade científica (formada, basicamente, por homens)
ignorou a sua existência pelos séculos seguintes. Já viramos a primeira
década do novo milênio e existem artigos científicos bem atuais que
contestam a existência (!) do clitóris, tamanha a negação de que as
mulheres podem, sim, ter prazer sexual, seja com o parceiro, seja
sozinhas ou – tcharãããm – juntas.
Num primeiro momento, vivemos o total silenciamento da expressão
sexual feminina com base em mentiras científicas e sociais, levando à
ideia de que o prazer feminino não existe – e muitas mulheres conviveram
com esta “verdade” por toda uma vida. Em seguida, se admite que a
mulher sente prazer, sim, mas ele deve servir ao entretenimento
masculino – e se não servir, essa mulher não merece existir. A liberdade
ofende: se ser mulher já é difícil, ser lésbica nunca foi fácil.
Na contramão, à margem
São séculos de privilégio masculino ditando como as coisas devem ser.
A norma homem-mulher pautava, até então, todas as representações do
amor e do sexo no cinema, na mídia, na literatura e, consequentemente,
na vida até então. Logo, me parecia inviável, enquanto lésbica, me
imaginar como ser possível, saudável e livre neste contexto.
Mas foi graças a representações alternativas àquelas de fetiche ou de
ódio, em especial na literatura, que tudo começou a fazer sentido. Na
contramão (ou à margem) do que a história tenta validar, eu aproveito
esse Dia da Visibilidade Lésbica para destacar o trabalho de duas
mulheres escritoras que contam as nossas histórias (as minhas, as delas e
as de milhares de mulheres) dizendo ao mundo que, sim, nós existimos da
forma mais diversa e natural que se pode imaginar. E, com isso, mudaram
a minha vida.
Quando ganhei da minha amiga Alice Castiel o livro Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas, o céu se abriu. Algo parecido aconteceu quando li o Amora, da Natália Borges Polesso. Destaco estes dois não só pelo que a leitura deles me causou, mas também pelo lugar que ocupam na literatura nacional: o Amora ganhou o prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas no ano passado e o Útero… acaba de ganhar uma reedição pela maior editora do país, a Cia das Letras. Certamente, o reconhecimento fez com que estas obras chegassem às mãos de muitas mulheres que jamais tinham se visto representadas de uma forma tão genuína na literatura.
Quando ganhei da minha amiga Alice Castiel o livro Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas, o céu se abriu. Algo parecido aconteceu quando li o Amora, da Natália Borges Polesso. Destaco estes dois não só pelo que a leitura deles me causou, mas também pelo lugar que ocupam na literatura nacional: o Amora ganhou o prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas no ano passado e o Útero… acaba de ganhar uma reedição pela maior editora do país, a Cia das Letras. Certamente, o reconhecimento fez com que estas obras chegassem às mãos de muitas mulheres que jamais tinham se visto representadas de uma forma tão genuína na literatura.
Acho que eu nunca agradeci de forma explícita à Angélica e à Natalia
pelo que elas fizeram por mim. E também nunca disse que elas são,
também, um pouco responsáveis pela “construção” dessa mulher que, hoje,
no Dia da Visibilidade Lésbica, vem a público dizer que tem orgulho de
ser quem é.
*Nanni Rios é uma das personalidades
mais atuantes em defesa da causa feminista e da comunidade LGBT em Porto
Alegre, destacando-se por sua atuação e influência junto, sobretudo, ao
público jovem. Formada em Jornalismo, a catarinense comanda o Aldeia,
espaço no bairro Santana que sedia cursos e eventos que promovam a
cultura, a literatura e as artes.
Disponível em: http://revistadonna.clicrbs.com.br/comportamento-2/dia-nacional-da-visibilidade-lesbica-representatividade-alem-dos-cliches-e-do-preconceito/
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