Na última quarta-feira (07) o Ministro Roberto Barroso compareceu à cerimônia de aposição do retrato do ex-presidente do STF, Joaquim Barbosa, e, ao saudá-lo afirmou que ele é um “negro de primeira linha”,
com doutorado em Paris, a quem tinha tido a honra de receber na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Segundo os presentes o
ministro Joaquim Barbosa deixou transparecer no semblante a irritação e o
caso foi parar na imprensa provocando uma retratação no dia seguinte.
Na
abertura da sessão plenária do STF de 08 de junho Luis Roberto Barroso
desculpou-se pelo ocorrido, afirmou que a expressão “primeira linha”
referia-se à palavra intelectual, e não à palavra negro, e disse que se
retratava àqueles que eventualmente tenham se sentido ofendidos. O caso
pareceu resolvido.
Contudo,
penso que continua sendo oportuno pensar, mesmo depois das desculpas
apresentadas, sobre o que significa a frase do ministro Barroso e
refletir sobre como sua afirmação é elucidativa de como funciona o
racismo à brasileira.
Temos aprendido dia a dia no Brasil que não basta interditar trajetórias negras e inviabilizar sua presença na cena pública.
O
repertório do racismo nacional também especializou-se em marcar com
categorias raciais para sublinhar o aspecto desconforme destes corpos
negros no mundo branco. Ainda que por meio de elogios, aparentemente
marcados de boa intenção, multiplicam-se frases sobre a menina que é
negra, mas é bonita; moreno, mas muito inteligente; escuro, porém,
extremamente honesto
Quando
não há como evitar que negros circulem, ainda que minoritariamente, em
espaços de poder, riqueza e prestígio são acionados processos para
relembrar que negros são a subclasse do mundo e que, em função disso, só
podem acessar aos lugares periféricos da história. Quando se reconhece o
talento negro isso sempre vem acompanhado de uma conjunção adversativa,
pronta a enunciar que aquele talento é surpreendente, ou seja, não
esperado de “pessoas de cor”.
Ao ressaltar que o ministro Joaquim é um negro de primeira linha o ministro Barroso está lembrando que os negros em geral são negros de linha alguma, subclasse de gente de quem se questiona a humanidade.
É
em face do seu acesso ao mundo dos brancos (doutorado na França,
erudição europeia, conhecimento dos idiomas dos países centrais) que
Barbosa pode ser digno de registro no repertório controverso das
relações raciais no Brasil, mas nunca será efetivamente um igual no
mundo dos ministros do STF. Será sempre um “outro” que, apesar da raça,
chegou conjunturalmente aquele lugar.
Certamente
a fala do ministro Barroso será defendida a partir do discurso de que
ele é um estudioso das ações afirmativas; colaborou com pautas da
comunidade negra e até que ele tem amigos negros, que frequentam sua
casa e gozam de sua confiança. Mas, o racismo se retroalimenta
justamente desta contradição: convive-se com negros sem que isso rompa
com os pactos e privilégios típicos de uma sociedade construída a partir
de modelos de desigualdade e violência.
Certamente
Barroso pretendeu ser gentil e elogioso com o seu ex colega de
tribunal. Mas a hierarquia do racismo reside justamente na possibilidade
de – consciente e inconscientemente – reforçar estigmas e estereótipos;
alimentar-se deles para criar desigualdades, e, quando a injustiça
racial é denunciada, rapidamente poder afirmar que foi brincadeira, que
foi um mal-entendido, que foram os negros que entenderam errado e que
não era o objetivo ofender. É o velho dá o tapa e esconde a mão.
O
elogio desastrado de Barroso a Joaquim releva mais do que aquilo que
enxergamos num primeiro momento. Mais do que uma gafe – como registrou a
imprensa – ou mais do que uma palavra infeliz – como anotou o próprio
Ministro – a segmentação dos negros entre os de primeira e os de segunda
é uma velha narrativa pela qual o Brasil expressa seu incontornável
desconforto com negros e negras que aparecem e brilham demais.
Felipe da Silva Freitas doutorando
em direito pela Universidade de Brasília e membro de Grupo de Pesquisa
em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana.
Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/06/08/o-racismo-que-escapole-no-discurso-politicamente-correto-do-ministro-barroso/
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