Talvez seja possível afirmar que o debate sobre corrupção no Brasil jamais tenha ganho tanta repercussão como agora. A Operação Lava Jato parece ter feito emergir um latente sentimento punitivista em parte da sociedade brasileira, o qual se conecta, de forma inexorável, à noção de que a corrupção se apresenta como um problema de índole comportamental ou postural, a ser corrigido a partir de sanções rígidas, capazes de reprimirem a prática desse crime a partir do “exemplo”. Não é por acaso que, na página das chamadas “Dez Medidas Contra a Corrupção”, encampada por agentes do Ministério Público que compõem a Força Tarefa dessa operação, diagnostica-se que é a “impunidade” a causa fundamental desse mal.
Quando observamos
outras manifestações recentes sobre como lidar com a corrupção, vemos
que essa interpretação punitivista tem força e histórico: se olharmos
para o chamado “pacote anticorrupção” lançado pela então Presidenta
Dilma Rousseff quando ainda parecia ter alguma margem de manobra,
observaremos a predominância de medidas voltadas a tipificar novos
crimes relacionados à corrupção ou a ampliar a punição para práticas
ilícitas já tipificadas.
Segmentos
da sociedade civil organizada parecem corroborar esse entendimento: se
formos analisar as propostas vencedoras no âmbito da primeira
Conferência Nacional sobre Controle Social (a CONSOCIAL, realizada em
2012), notaremos a presença de várias diretivas voltadas a tornar mais
duros os crimes relacionados a corrupção. Há ideias no sentido de se
transformá-los em crimes hediondos, ou mesmo de aumentar a pena máxima
possível para o limite de 50 anos (acima, portanto, dos limites máximos
previstos em lei para quaisquer crimes). A força da rejeição social à
corrupção também aparece em pesquisas de opinião recentes, que apontam
para essa questão como o principal problema do Brasil. Como entender
esse aparente paradoxo entre a ojeriza à corrupção e a sua persistência
como questão e como prático? Esse é um dos debates clássicos sobre a
condição brasileira. Pretendo apresentar algumas proposições para apoiar
o debate, a partir de uma leitura que se quer progressista.
A hipótese básica que apresento é a de que a República é um projeto nacional bastante incompleto, na melhor das hipóteses
Seu
melhor momento também foi aquele em que sua fraqueza constitutiva se
tornou mais explícita: a Constituição de 1988, hoje sob risco de
implosão. No mesmo documento em que se inserem algumas das mais ousadas
tentativas de instituição de um Estado de Bem-Estar Social no Brasil
estão manifestações e pontos de partida para a consolidação de
corporativismos decisivos para explicar o nosso tempo – e a resiliência
da corrupção.
Um componente
intrínseco a uma República é a ideia da igualdade entre os sujeitos. Em
uma cultura política republicana, não só a igualdade existe, mas ela é desejada
pelos atores sociais. Nesse sentido, os espaços públicos –
institucionais ou não – são aí marcados por uma pretensão de eticidade
na qual os cidadãos avaliam suas pretensões com relação ao público a
partir de apreensões individualizadas sobre o universal: o certo e o
errado, o justo e o injusto, o tolerado e o não-tolerado. A ação
política (em sentido amplo) é balizada nessa experiência (por vezes
conflituosa) de como realizar o público a partir das sensibilidades
particulares sobre esse público.
Entendo
que esse tipo de encaminhamento sobre o público no Brasil se constitui
como algo extremamente limitado. No lugar de uma eticidade produzida a
partir das tensões concretas que encerram o processo de construção de
uma sociedade igualitária (que depende de condições materiais e
simbólicas de reconhecimento da alteridade para tanto), aqui vige outra
lógica: a moralidade é um substituto pobre da ética,
com suas máximas e seus juízos particulares. Por meio dela (ancorada em
dogmatismos religiosos, mas também em sintagmas laicos, mas imateriais,
como adágios e aforismos), o indivíduo julga os outros a partir de
elementos absolutos e metafísicos. Como o “público” é pobre – mera
negatividade do “meu” particular – eu não me insiro nesse juízo.
Nesse
mecanismo, que separa a potência do ato, eu cindo a minha prática
ilegal do meu próprio juízo, mas não faço a mesma operação com outras
pessoas. Abre-se espaço para a incoerência, para a indignação seletiva –
ou, se quiserem, para a hipocrisia. Não é difícil perceber como o
punitivismo encontra guarida no interior desse raciocínio: é impossível a
partir dele tratar o problema de forma sistêmica – o desvio é
individual, comportamental, postural, de natureza humana, e precisa ser
reprimido como tal.
No
bojo desse processo está o que mais importa nesta hipótese: a aceitação
popular da injustiça. Se no espaço público ético a justiça se
consubstancia no desejo (e na busca pela produção de) igualdade, no
espaço moral não há um universal concreto contra o qual a minha ação
particular possa ser cotejada, a não ser o meu próprio juízo metafísico.
Se cada um faz o mesmo, então temos infinitos juízos particulares os
quais, ao fim, realizam um público sem métrica de equidade (ainda que
haja leis). A desigualdade se torna modus operandi de realização do
público. E a justiça possível nesse cenário é o justiçamento, que nada
mais significa do que a introjeção ao juízo público dos valores morais
de ocasião como critérios de deliberação.
Fundamentalmente, a desigualdade (em sentido amplo) é causa basilar da corrupção
E
esse é, provavelmente, o fator mais negligenciado no debate sobre a
questão, seja normativamente, seja como prática de política pública.
Esse lapso é surpreendente se levarmos em conta que a desigualdade é,
provavelmente, a preocupação normativa mais relevante em qualquer
questão pública abordada por um prisma progressista. Lamentavelmente, em
face de toda a crise política nacional montada a partir da publicização
de escândalos de propina envolvendo a Petrobrás – fundamentais para
derrubar Dilma Rousseff, ainda que formalmente sua queda tenha ocorrido a
partir do sofrível argumento das “pedaladas” – há pensadores
importantes que ainda concebem que a corrupção seja mero “discurso da
direita” para enfraquecer a esquerda, sendo a desigualdade um fator
muito mais relevante a ser considerado no debate público. Aqui, no
entanto, consideramos que a conexão entre ambos é intrínseca – e é
fundamental que a esquerda seja capaz de apresentar uma interpretação
própria sobre a corrupção, sob pena de emular soluções conservadoras se
estiver no governo, ou de não ser levada a sério por se abster de
debater criticamente a questão.
Como
causa explicativa, a desigualdade naturalizada (não apenas de classe,
mas étnica, de gênero, religiosa, de poder, entre tantas outras
clivagens) cria o caldo para a aceitação da injustiça e, portanto, para a
estruturação de práticas sociais que adotem a ilegalidade ou para
compensar a desigualdade, ou para reforçá-la – daí a ambiguidade, por
exemplo, do chamado “jeitinho”, por tantas vezes compreendido como a
razão da corrupção (e aqui admitido como possível sintoma dele). Se as
instituições reproduzem essa falta de tratamento equânime, então não há
porque acreditar na equidade como um caminho, e no público como um
espaço desejável. Pelo contrário, o privado é aí o porto seguro das
virtudes – repete-se aí o mesmo mecanismo de julgamento moral comentado
antes: o público não é também “meu” ou de todos, mas simplesmente de
“ninguém”. Na literatura internacional, são reiterados os estudos que
apontam para o quanto a desigualdade impacta severamente a descrença
social no governo e, mais amplamente, nas instituições, e o quanto ela
estimula a racionalização da corrupção como uma prática legítima. O
ímpeto que a desigualdade causa para a corrupção extravasa classes
sociais: como cita Gunnar Stetler, ex-diretor da agência anticorrupção
sueca em entrevista para a jornalista Claudia Wallin, “chega um momento em que o cidadão não se contenta com um Volvo e deseja um Porsche”.
Uma
hipótese a ser testada é a de que a desigualdade no Brasil adquiriu
força considerável o bastante para se constituir como uma espécie de
valor ou direito, algo a ser desejado. Em sendo o caso, estaríamos no
exato caminho contrário daquele a ser perseguido para a constituição de
uma República, como mencionado no início deste ensaio. A pesquisa
“Perigos da Percepção”, feita pela Ipsos Mori (2015) com cidadãos de 33
países traz dados que podem jogar luz sobre a questão, conotando a ela a
devida complexidade: os brasileiros, integrantes da quarta nação mais
desigual do grupo, foram um dos seis conjuntos de cidadãos que
subestimaram o nível de desigualdade existente no país. Ao mesmo tempo,
nossos nacionais foram aqueles que defenderam que o 1% mais rico deveria
concentrar o maior percentual da riqueza nacional dentre todos os
segmentos consultados: 33%. Por curiosidade, em países como Israel,
Noruega e Holanda, esse range variou entre 14 e 16%. E mesmo em países
mais desiguais do que o Brasil, como Índia, Turquia e Rússia, as
opiniões sobre o quanto deveria ser essa fatia oscilaram entre 21 e 30%.
Se a desigualdade é questão profunda na narrativa brasileira, o privilégio é a representação mais eloquente de sua articulação com a corrupção. Como ponto de partida para repensarmos como lidar com esse problema, por sinal, precisaríamos efetivamente redefinir a noção de corrupção, para fazer com que ela comporte em si o privilégio.
Hoje,
boa parte dos privilégios são assegurados legalmente, inclusive por
alguns dos atores que são responsáveis por dizer o Direito, garantir a
justiça e proteger o patrimônio público. Em meio a uma sociedade que
ainda luta para lidar com a miséria, a presença de salários astronômicos
(muito acima do teto constitucional, já extremamente elevado), a
percepção de dezenas de penduricalhos (auxílio-moradia, auxílio-creche,
adicional por tempo de serviço, adicional de comarca, auxílio-educação e
tantos outros) e o acesso a mordomias (no Judiciário, 60 dias de
recesso, motoristas particulares, automóveis públicos luxuosos, imóveis
funcionais de primeira linha, pensões para filhas solteiras, etc)
constituiriam nada menos do que um insulto à dignidade. São vistos por
vários de seus beneficiários e por parte da sociedade, contudo, como
expressões do mérito e como medidas necessárias “para se evitar a
corrupção”.
No mundo privado,
por óbvio, a situação não é diferente. Ela pode ser particularmente
percebida a partir do sistema tributário: lucros e dividendos, que
compõem a maioria da renda dos mais ricos, são pouco ou nada taxados;
iates, helicópteros e aviões não sofrem incidência do IPVA; o percentual
do PIB recolhido a partir de tributações ao patrimônio é cerca de dez
vezes inferior ao observado em países desenvolvidos; o imposto sobre
grandes fortunas ainda é uma ficção, e aquele cobrado sobre heranças
possui uma das menores tarifas do mundo. Na mesma linha, vale citar o
financiamento altamente subsidiado feito pelo BNDES ao empresariado –
estratégia problemática não em si mesma, mas sim diante da escolha dos
beneficiários em aplicar o dinheiro no mercado financeiro em vez de
torná-lo produtivo. Não seria essa prática uma forma de corrupção?
O
grande ponto é que as gestões consideradas progressistas no Brasil
atuaram, na melhor das hipóteses, de modo extremamente tímido no
enfrentamento da desigualdade. Parece claro hoje que Dilma – e,
principalmente, Lula – encararam como desafio nacional a eliminação da
pobreza, jamais a mitigação da olímpica desigualdade. Se dados mais
recentes (como as pesquisas de Marcelo Medeiros)
apontam que a disparidade de renda no Brasil tem sido consideravelmente
subestimada (e em patamar “estável”, e não em queda), há estudos (como
os de Gubetti e Orair) que mostram como o Estado brasileiro tem
contribuído para o aumento da desigualdade, dada a manutenção da
distinção entre a previdência pública e a privada e, principalmente, a
política de salários desenvolvida nos últimos anos a médios e altos
funcionários do governo (não apenas os percebidos pela Magistratura e
pela própria classe política, mas também para a assim chamada elite
burocrática do Poder Executivo).
Para
se ter uma ideia, enquanto a inflação acumulada entre 2002 e 2016 foi
da ordem de 162%, a remuneração de carreiras como a de Especialista em
Políticas Públicas e Auditor de Finanças e Controle subiu 393% (inicial
de R$ 17 mil); a de Delegado da Polícia Federal, 187% (inicial de R$
21,7 mil); a de Auditor da Receita Federal, de 547% (inicial de R$ 19,2
mil mais “bônus de produtividade” estimado em R$ 5 mil mensais, aprovado
em Dezembro/2016). Há diversos outros exemplos. Os dados levantados
pelos autores supracitados mostram que essa política salarial acaba por
mais do que compensar o redistributivismo contido nas políticas
assistenciais (Programa Bolsa Família, Benefício de Prestação
Continuada, etc). Em outras palavras, o Estado tem acentuado a já
rampante desigualdade, e isso a partir de uma consciente política de
valorização salarial de segmentos do funcionalismo – justamente em um
dos únicos momentos da história política brasileira em que fomos
governados por forças progressistas.
Se
houve algum caminho preventivo à corrupção que foi adotado como solução
de política pública pelos governos progressistas no Brasil, pode-se
defini-lo como o da promoção da transparência e do controle social
Há
que se dizer que essas medidas corresponderam ao estado da arte
internacional no enfrentamento a esse problema – em boa medida Lula e
Dilma implementaram parte substancial das convenções internacionais de
combate à corrupção. Não há dúvida de que tais aspectos contribuem para
que contornemos um pesado histórico autoritário por meio de medidas que
aproximem Estado e Sociedade e, com isso, potencializem a geração de um
“público”. Mas como tornar esse processo efetivamente sistêmico – capaz,
portanto, de gerar mudança cultural – em vista da precariedade
monumental de serviços públicos e de infraestrutura (inclusive Internet)
que nos assola, apesar dos avanços institucionais das últimas décadas?
Como também comenta Gunnar Stetler, “Se uma pessoa tem que lutar
diariamente por sua sobrevivência para ter acesso à alimentação, à
escola e a hospitais, a questão do combate à corrupção na sociedade
certamente não estará entre seus principais interesses. Mas quando uma
pessoa se sente parte da sociedade à qual pertence, passa a não aceitar
os abusos do poder”. Por evidente, não se defende aqui que os
hackatons, a Lei de Acesso a Informação ou os Conselhos de Políticas
Públicas sejam “perfumarias”, apenas que são suportes – e não razões de
ser – para uma política efetivamente sistêmica de combate à corrupção.
Há, no entanto, alguns cânones os quais, por intocados, obstaculizam o avanço do debate, particularmente a partir de uma perspectiva progressista. Um deles é o de que um caminho fundamental para o combate à corrupção no Brasil passa pela autonomização dos órgãos e agentes que praticam a justiça e defendem o patrimônio público. Qualquer questionamento que ataque esse lugar comum é naturalmente visto como uma defesa do patrimonialismo, do clientelismo ou de outras gramáticas políticas as quais, historicamente, foram empregadas para interpretar o país.
A questão
é que esse caminho da meritocracia, da profissionalização do burocrata e
da sua defesa como ator neutro no processo político (um dever ser ao
longo do tempo convertido em análise factual) nem sempre foi o único
concebível. Por um bom tempo, particularmente nos Estados Unidos, a
chamada burocracia representativa vigeu como método para a ocupação dos
cargos públicos do governo. Por trás desse paradigma se encontravam
pressupostos como a ideia de que os postos deveriam ser preenchidos por
cidadãos comuns, e que a composição da máquina pública com base nos
diferentes interesses sociais que representavam a agenda do governante
eleito exprimiria uma tecnologia gerencial ao mesmo tempo justa e
coerente. Essa prática não era sinônima do “toma lá, dá cá”,
simplesmente porque não se tratavam de negociatas ou de interesses
divergentes a serem pactuados a partir de um cargo: o político e o
funcionário não eram partes contrárias, mas agentes vetorizados à
realização de um mesmo fim público. Por evidente, esse princípio
operativo não afastava a corrupção, mas não era visto como sinônimo
dela. Na verdade, esse sistema de espólio se inseria como o mecanismo de
convergência possível entre burocracia e democracia à época, em meados
do século XIX.
Foi
principalmente com Woodrow Wilson que esses entendimentos foram
transformados em nome da ideia de que política e burocracia precisam ser
separados – questão que ensejou uma importante reforma administrativa
nos EUA do século XIX e em praticamente todo o mundo desde então. Em vez
de representação, o que informava esse novo modelo burocrático era a
superioridade técnica, a meritocracia. Em paralelo, na medida em que não
representavam interesses populares – pois não eram cidadãos comuns, mas
sim experts – esses novos burocratas seriam neutros. Ao longo
do tempo, essa neutralidade foi sendo associada ao republicanismo, sem
se questionar a viabilidade em si de uma ação axiologicamente neutra,
nem a real identidade entre um comportamento apolítico e uma práxis
republicana. Por sinal, como comenta Cecília Olivieri em artigo sobre os
controles políticos sobre a burocracia, no Brasil a relação entre
política e burocracia sempre foi abordada pela literatura como sendo
conflitante – nesse sentido, a autonomia dos burocratas aparece como um
devir, uma estratégia a ser perseguida para se evitar a captura do
Estado por interesses econômicos (ou políticos).
Foi
justamente esse o encaminhamento dado pelas gestões Lula e Dilma aos
setores burocráticos críticos do Estado brasileiro, notadamente aqueles
voltados a combater a corrupção: prestígio e autonomização. Vimos
anteriormente a extensão da política de valorização salarial adotada nos
últimos anos; vale mencionar a realização de diversos concursos
públicos – em oposição ao período FHC.
Outras
marcas de valorização, como a nomeação de técnicos para postos-chave de
Direção e Assessoramento Superior (até mesmo com a instituição de cotas
mínimas de cargos a serem ocupados por servidores efetivos), a
aprovação de denominações específicas como símbolos de distinção
(“autoridade tributária” para Auditores Fiscais, “excelências” para
Delegados da Polícia Federal, etc), também foram sancionadas nesse
período. A autonomização, demanda constante dessas carreiras de Estado,
também veio a cabo: listas tríplices para a seleção de
Procuradores-Gerais do Ministério Público, de Diretores Gerais da
Polícia Federal, entre outros cargos importantes; a desvinculação
institucional da Defensoria Pública da estrutura do Poder Executivo
Federal; a alocação prioritária de recursos para o desempenho de
Operações Especiais, etc.
Por
outro lado, essas medidas jamais foram acompanhadas por um eventual
incremento do controle social sobre a burocracia. Ainda que nos governos
do Partido dos Trabalhadores tenham sido desenvolvidas mais de uma
centena de conferências e tenham sido criados dezenas de conselhos de
políticas públicas, há que se observar que os esforços jamais estiveram
direcionados para realizar accountability sobre os agentes públicos,
especificamente. A alta burocracia permaneceu francamente autônoma e
crescentemente empoderada. Por sinal, a disfunção entre as expectativas
da literatura nacional e a realidade material atingiu seu auge quando o
próprio Ministério Público, por meio de seus agentes, passou a liderar
uma campanha nacional pela aprovação das supracitadas “10 medidas contra
a corrupção”. O lobby pela aprovação de uma agenda que restringia
direitos individuais em nome do aumento da capacidade discricionária dos
próprios burocratas (uma forma de autonomização) converteu-se em
“advocacy” legítimo aos olhos da mídia e de parte da sociedade.
De
forma mais concreta, vimos na Operação Lava Jato o Judiciário, o
Ministério Público e agentes da Polícia Federal, dentre outros, atuarem à
margem da lei e em rechaço à Constituição – a qual os alçou, em sua
origem, como alguns dos segmentos mais importantes a defendê-la (o que
percebemos agora como um ímpeto corporativista, em face das
prerrogativas e exclusividades a eles conferidas). Como razão para esses
arbítrios, o “bem maior” do combate à corrupção. Sem respostas
proativas, a esquerda apenas reforçou sua defesa da autonomia dos órgãos
de defesa do Estado, do “apure-se o que tiver de ser apurado”, da
integridade pessoal e moral da Presidenta da República (até hoje
incontestável, frise-se). Ou seja, apenas seguiu adiante no caminho que
acabou por levá-la à derrocada diante de uma direita muito mais
articulada em evocar na esfera pública a moralidade particular como
juízo.
Hoje, o Presidente da
República, citado nominalmente em delações de executivos da Odebrecht,
nomeia seu próprio Ministro como Ministro do STF – a julgar casos em que
o próprio Chefe de Governo constará como réu –, e simplesmente não há
freios e contrapesos institucionais ou “morais” para barrar essa agenda.
Talvez essa seja uma das marcas da fragilidade do legado das administrações petistas no combate à corrupção, justamente em virtude das crenças e das escolhas feitas: não reformar nevralgicamente as institucionalidades e as formas de produção dos espaços públicos, mas sim levar “ao limite” a agenda wilsoniana de profissionalização de certa burocracia.
Até
encontrar, dada a inação na frente das reformas eleitorais e na frente
da governabilidade, o paroxismo essencial: desenvolver e insular uma
burocracia não-responsabilizável e corporativista para fiscalizar
agentes políticos tão fundamentais à sustentação da base de apoio quanto
versados na operacionalização da máquina “à moda antiga”. Não há legado
possível aí porque nem a burocracia é neutra, nem qualquer
administração mais “realista” virá a conceder o mesmo nível de
independência funcional.
Quando
se leva em conta a hipótese da fragilidade do republicanismo e da força
constitutiva da desigualdade na formação da nossa sociedade,
compreende-se quão perniciosa para o combate à corrupção é a ideia de se
fortalecer e insular agentes e instituições. Se dar autonomia e
salários astronômicos constituem formas de privilégio social, se os
privilégios expressam o casamento entre desigualdade e corrupção, se a
desigualdade brasileira é fator crucial para explicar a fragilidade dos
espaços públicos, e se essa fragilidade cria obstáculos fundamentais
para a produção de um desejo mínimo de equidade entre cidadãos, então
transformar certos segmentos em “castas meritocráticas” parece ser a
solução mais inadequada possível.
Pensar
o combate à corrupção a partir de um ataque transversal à desigualdade e
à injustiça tem o potencial de se constituir como um programa de
governo e uma agenda de Estado possíveis para que os progressistas
disputem a política institucional no contexto mais conservador das
últimas décadas. Para tanto, a esquerda precisa de fato disputar o
significado da corrupção, da ética e da justiça na realidade brasileira.
Ela tem muito a dizer e a propor, mas precisa revisar seus conceitos e
sua abordagem.
No fundo, o PT dos anos 80 e o PSOL de hoje, dentre outras forças relevantes, contiveram em seu ideário alguns elementos que dialogam com o proposto aqui. A declamação ética de agentes políticos desses partidos, contudo, é pontual, sem constituir uma agenda sistêmica: tratam de posturas individuais, de mandamentos, de comportamentos idealizados. Estão presas, na verdade, às moralidades mencionadas no início desse ensaio, ainda que eventualmente virtuosas.
É
preciso ir além, propondo sistêmica e institucionalmente formas de
transformação dos espaços públicos, nos domínios mais localizados
(vizinhanças, parques, praças, igrejas, ônibus/metrôs, etc) e mais
amplos (a grande política, as decisões judiciais, as políticas públicas,
a produção da cidadania ativa etc). Trata-se de reverter com força o
processo de abandono do público promovido pelo Estado ao longo dos
últimos 30 anos – que deu vazão, como comentou Christian Dunker em
entrevista recente para a BBC, a vazios ocupados pelo privatismo –
favelas, condomínios fechados, prisões – ou meras zonas de passagem,
marcadas por experiências vazias de sentido. É preciso, para isso,
acreditar que a gestão pública um campo privilegiado para a produção,
viabilização e potencialização de experiências de dignidade, de
realização das capacidades humanas, de civismo. Algo que,
lamentavelmente, boa parte da esquerda também se furtou de elaborar,
preservando as velhas crenças positivistas sobre a neutralidade da
técnica.
Não há como não
desempenhar tais tarefas históricas sem disputar profundamente o
significado da corrupção no Brasil, sem deixar de afirmar e comprovar
que a corrupção é uma manifestação da desigualdade, e que a desigualdade
é, sim, uma manifestação da corrupção – e isso não é uma tautologia,
mas sim um círculo vicioso, que nos aponta para a profundidade do nó
górdio em questão. Acreditar nessa conexão é permitir ao campo
progressista ir além na crítica à meritocracia como um fim em si mesmo –
ninguém pode ser bom o bastante para ser socialmente tão mais
prestigiado do que os demais – e na compreensão de que o compromisso com
a equidade e com a isonomia devem ser inegociáveis – meia-justiça,
afinal de contas, nunca significou menos do que uma injustiça em dobro.
Sérgio Roberto Guedes Reis
é mestre em Políticas públicas pela FGV e bacharel em Relações
Internacionais pela USP. Atua no serviço público federal brasileiro
desde 2012 como Auditor de Finanças e Controle
Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/06/01/corrupcao-se-combate-com-reducao-da-desigualdade-e-nao-com-moralismo/
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