Foto: Agência Brasil
Na quarta-feira dia 24 de Maio, enquanto os olhares da grande imprensa e do país estavam voltados para o Ocupa Brasília,
convocado pelas centrais sindicais, contra as reformas trabalhista,
previdenciária e o governo Temer, na fazenda Santa Lúcia, no município
de Pau D’arco no Pará, 10 camponeses foram mortos numa ação das polícias
civis e militares. E segundo os policiais, os camponeses reagiram ao
cumprimento de mandatos de prisão, e numa suposta troca de tiros nada
menos do que 10 pessoas foram mortas.
A
polícia apresentou a apreensão de nove armas que teriam sido utilizadas
no tiroteio, e nenhum policial foi ferido, dos dez mortos, sete eram da
mesma família. A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social
afastou os 21 policiais militares e 8 civis.
A
Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público
Federal, Deborah Duprat, que acompanha as investigações disse que não
foi encontrado sangue no local e nem cheiro, além de adulteração da cena, com o recolhimento dos corpos, quando deveria terem isolado o local até a chegada da perícia.
E para o presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, Darci Frigo a versão do confronto caiu por terra, após
ouvirem testemunhas que contestam o argumento de confronto apresentado
pelos policiais, e que o objetivo era então descobrir quais os motivos
da chacina.
E dois sobreviventes da chacina relataram ao Ministério Público Federal,
que ouviram barulho de carro e ao perceberem que era da polícia
correram para o mato, logo após foram achados pelos policiais que
chegaram gritando, “não corre se não morre”.
E
depois que começaram a correr, os policiais passaram a atirar, a
testemunha falou que enquanto rastejava, ouviu os policiais dizendo a
uma das vítimas, “olha o que a gente faz com bandido”. Ele
também afirmou que as vítimas estavam chorando e dizendo que não iriam
correr, mas mesmo assim os policiais atiraram, e ainda afirmou que as
armas não foram usadas, que ouviu os policiais rindo e batendo nas
pessoas baleadas.
E não
apenas o Estado através da polícia assassinou esses 10 camponeses, como
as famílias receberam os corpos dos seus parentes em estágio avançado de putrefação para enterrarem, o que revoltou os parentes, configurando como uma segunda morte.
A
chacina em Pau D’arco se insere em mais um caso de violência no campo
brasileiro contra camponeses em torno da disputa por terra. A Comissão
Pastoral da Terra diz que foram registrados no ano de 2016, 61 mortes em
conflitos agrários, com a chacina de Pau D’arco, o número chegou a 36
nesse ano de 2017. E não podemos esquecer que o Pará é o estado do massacre de Eldorado dos Carajás, quando 19 sem terras foram assassinados em 1996.
E
um fato que chama a atenção nesse caso, é como mais uma vez vemos os
autos de resistência sendo questionados, onde os policiais alegam que
mataram pessoas em legítima defesa. E nós sabemos que existe uma prática
policial, praticamente rotineira e sistemática, de fraude processual em
torno dos autos de resistência, um instrumento que foi criado pela Ditadura Militar em 1969, para justificar os assassinatos de opositores, que a policia dizia ter matado numa situação de resistência armada à prisão.
Autos de resistência, fraude processual e a construção da legítima defesa
O
artigo 284 do Código do Processo Penal descreve que não é permitido o
emprego da força policial, a mesma só se torna indispensável quando
ocorre uma resistência ou tentativa de fuga do preso.
Ao
efetuar uma prisão fruto de uma ordem judicial ou em flagrante, o
policial só deve usar a força em último caso e se usa-lá, tem como dever
fazer dentro da proporcionalidade para realizar a prisão. E caso o
policial utilize a força na dosagem certa, não excedendo o limite do
indispensável, estará praticando o fato no estrito cumprimento do dever
legal, o que irá configurar a exclusão da ilicitude prevista no inciso
III do art 23 do Código Penal.
O
sujeito pode resistir a prisão passivamente, não acatando a ordem, e
ativamente através da violência ou grave ameaça. O emprego da força deve
ser estritamente o necessário para subjugar o capturando, para
dominá-lo e refreá-lo.
O
artigo 345 do Código Penal diz que se uma autoridade que utilizar a
violência contra uma violência já cessada estará fazendo justiça com as
próprias mãos e abusando do poder.
Do
ponto de vista jurídico, o uso da força policial é um instrumento que
deve ser utilizado para alcançar determinados fins, e um deles é de
defender o policial em uma dada situação limite. Mas o que estamos vendo
na realidade é a utilização dos autos de resistência como uma forma de
encobrir ações de execuções feitas por policiais civis e militares.
O Coronel Anselmo Brandão, comandante geral da Polícia Militar da Bahia, defendeu em uma entrevista que o auto de resistência é um instrumento de defesa dos policiais,
mesmo após ao acontecimento da chacina do Cabula, onde 12 jovens negros
foram mortos com fortes indícios de execução, em que as vítimas foram
alvejadas com tiros de cima para baixo, de curta distância e nos
antebraços e palmas das mãos, indicando posição de defesa, e apenas um
único policial foi ferido de raspão.
Na pesquisa Letalidade policial e indiferença legal: A apuração judiciária dos autos de resistência no Rio de Janeiro (2001 – 2011)
que analisou por 10 anos os autos de resistência produzidos pela
polícia carioca, os autores demonstram como o homicídio proveniente de
um auto de resistência se diferencia em alguns aspectos dos homicídios
dolosos. Primeiro porque a sua autoria já é esclarecida no momento do
registro, pois são os próprios policiais os autores, e que são os
responsáveis por comunicarem a ocorrência, dessa forma a versão policial
acaba prevalecendo na maioria dos casos.
Ao
registrar um auto de resistência é necessário lavrar um auto subscrito,
com a presença de duas testemunhas, que geralmente são policiais. A
narrativa que geralmente é utilizada, é que após as vítimas serem
baleadas, foram levadas para o hospital ainda com vida, argumento que
visa dar legalidade a conduta policial, pois teria sido prestado socorro
à vítima, cuja morte não é narrada como acontecida no local do disparo.
Portanto, se a vítima ainda está viva, não haverá motivos para
preservar a cena do homicídio para realizar a perícia.
Para
legitimar e dar legalidade a ação policial, é construída na maioria dos
casos uma narrativa padrão, cujo objetivo é sempre afirmar que as
vítimas atiraram antes dos policiais, para assim poder enquadrar os
homicídios em uma situação legal, em que a atitude policial seja
fundamentada no revide à injusta agressão, combinando com a exclusão de
ilicitude. O grande objetivo do registro da ocorrência é elaborar um
pressuposto que culpe as vítimas pelas suas mortes.
Em 2009 foi publicado um relatório da Human Rights Watch, Força letal: Violência policial e segurança pública no Rio de Janeiro e São Paulo, em
que foi analisado parte dos 11 mil autos de resistência registrados
pelas polícias do Rio de Janeiro e São Paulo entre os anos de 2003 e
2009.
No relatório foi
explicitado que parte considerável desses autos de resistência foram
execuções, a Human Rights dialogou com algumas autoridades do sistema de
justiça criminal de São Paulo e do Rio de Janeiro. E segundo o
ouvidor-adjunto da Polícia de São Paulo, estimava-se que 80% dos
boletins de ocorrência policial sobre autos de resistência tinham fortes
indícios de abuso policial.
Um
Promotor que atuava nos bairros com maiores índices de autos de
resistência no Rio de Janeiro, acreditava que quase todos registros
policiais que ele acompanhava eram uma farsa.
E para ilustrar casos de fraudes processuais em autos de resistência, em 2012 no Rio de Janeiro, em uma operação da Polícia Civil numa favela da Zona Oeste da cidade,
um vídeo gravado pelos próprios policiais, em uma câmera do helicóptero
e outra na cabeça dos policiais mostram como é forjado um auto de
resistência.
Uma aeronave da
Polícia Civil abriu fogo por 6 minutos em um bar onde era realizada
venda de drogas e tinham dois homens portando um fuzil, e logo após os
policiais desembarcarem do helicóptero, os policiais correm até o bar
atirando, onde são encontrados três corpos, em seguida mais uma pessoa
ferida é encontrada, então é perguntada se ela estava armada, e outro
policial responde que não. E com isso os policiais removem o corpo em um
lençol vermelho para o mesmo bar onde tinha venda de drogas.
Em
Setembro de 2015, Policiais Militares foram flagrados forjando um auto
de resistência após assassinarem Eduardo Felipe dos Santos, um jovem de
17 anos no morro da Providência. No vídeo gravado por uma moradora é
possível ver que o jovem está caído no chão em meio a uma poça de
sangue, e um policial com o uniforme da UPP coloca uma arma na sua mão e realiza dois disparos, com a intenção de simular um tiroteio colocando pólvoras nas mãos e deixando as digitais da vítima na arma.
E agora no final no mês de Maio a Justiça do Rio de Janeiro suspendeu por dois anos o processo do policial militar acusado de colocar a arma na mão de Eduardo Felipe.
Em Setembro de 2015, cinco Policiais Militares foram presos após serem flagrados por uma câmera de segurança, executando um suspeito de roubo.
Nas imagens foi possível ver o suspeito Paulo Henrique Porto de
Oliveira, sendo cercado, rendido, revistado, algemado, logo após é
desalgemado e baleado pelos policiais.
O
vídeo também mostra um policial correndo sem arma, entrando na viatura,
falando no rádio e depois volta correndo e coloca uma arma na mão da
vítima.
Nesse mesmo ano aconteceu a chacina de Costa Barros,
no Rio de Janeiro, em que 5 jovens negros foram fuzilados por mais 100
tiros dentro de um carro, onde os Policiais Militares abriram a mala do
veículo e colocaram uma arma de brinquedo para tentar forjar um auto de
resistência.
A simulação de um tiroteio é uma prática ensinada no processo de formação dos policiais, a revista Época publicou uma matéria em que um instrutor do curso de reciclagem da Polícia Militar do Rio de Janeiro ensinou a “prática da mãozinha”.
Porém,
é importante ressaltar que essa prática Policial é legitimada pelo
poder judiciário, através dos arquivamentos dos autos de resistência. No
livro “Indignos de vida – A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro”,
o Delegado Orlando Zaccone estudou a promoção de arquivamento de autos
de resistência, evidenciando a existência de uma política pública de
extermínio de pessoas consideradas suspeitas/criminosas.
A
construção da legítima defesa começa na fraude processual da Polícia e
termina no arquivamento dos processos realizados pelo Poder Judiciário.
Os promotores e juízes reforçam em suas decisões a construção da
legitimidade das mortes registradas por policiais, desconsiderando os
acontecimentos, quantidade e locais dos tiros nos corpos, voltando sua
análise para a construção do morto como criminoso/inimigo.
A
produção de uma narrativa padrão para os autos de resistência acontece
também para os seus arquivamentos, a identificação do morto como
traficante ou assaltante, a apreensão de armas, drogas, e a junção dos
antecedentes criminais são suficientes para que o fato em si seja
ignorado, e a ação policial seja enquadrada como legal.
Uma pesquisa realizada
pela Defensoria Pública de São Paulo demonstrou que 90% dos autos de
resistência são arquivados no Estado sem investigação. No Rio de Janeiro
o índice de arquivamento entre os anos de 2001 e 2011 foi de 96% dos autos de resistência. E foi também em uma sentença relâmpago que a juíza Marivalda Almeida absolveu os 9 Policiais Militares que participaram da chacina do Cabula, mesmo havendo claros indícios de execução.
Os
autos de resistência se tornaram a forma jurídica da política de
extermínio de pessoas no Brasil, ações ilegais da Polícia são então
colocadas dentro da legalidade, onde o resultado é que todas essas
mortes que acontecem à margem do direito estão sendo na verdade
legitimadas por ele.
Henrique Oliveira é graduado em História e mestrando em História Social pela UFBA e militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira/Bahia.
Referência bibliográfica
D’ELIA
FILHO, Orlando Zaccone, Indignos de vida: a forma jurídica da política
de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro,1ªed, Rio de
Janeiro, Revan, 2015.
Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/06/05/autos-de-resistencia-como-forma-juridica-da-politica-de-exterminio-de-pessoas/
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