quinta-feira, 11 de maio de 2017

O MONSTRO QUE SÉRGIO MORO AJUDOU A CRIAR E QUE TORNA IMPOSSÍVEL A ABSOLVIÇÃO DE LULA

O monstro que Sérgio Moro ajudou a criar e que torna impossível a absolvição de Lula 


Na quarta-feira, 10 de maio, a apoteose midiática na qual se transformou chamada operação Lava Jato atingiu o seu clímax. O ex-presidente Lula, na condição de réu, compareceu à 13ª vara federal de Curitiba para depor diante daquele que, muito embora seja seu julgador, foi estranha e condescendentemente elevado à condição de algoz, algo pouco usual para alguém do qual se exige institucionalmente o dever de imparcialidade.
A atmosfera criada ao redor da Lava Jato criou gigantescas expectativas. Nenhuma correspondente a um Estado verdadeiramente democrático e de direito. Estas expectativas, por sua vez, foram alimentadas e re-alimentadas por agentes públicos que se tornaram objeto da lascívia juvenil de quem se entusiasmou com o impeachment da presidenta Dilma, professou uma espécie de paganismo pós-moderno ao ajoelhar-se diante de uma representação divina em forma de pato e se dirigiu serelepe às suas respectivas varandas para bater panelas.
Esta atmosfera, profundamente antidemocrática, subverte a finalidade do processo em si, considerando que este tem como principal objetivo proteger os cidadãos e cidadãs do ímpeto absolutista e arbitrário do Estado. Fixam-se, assim, as regras do jogo, de maneira que ninguém possa ser surpreendido e acossado como aconteceu com Josef K. na obra clássica de Franz Kafka. Esta garantia se dá independentemente dos clamores da imprensa, sociedade civil ou de quem for, possuindo um valor inerentemente contramajoritário próprio de Estados Democráticos de Direito. Nenhum destes segmentos têm o condão de influir no processo no sentido de inventar prazos e procedimentos. Assusta que esta obviedade consagrada há mais de duzentos anos não tenha sido assimilada inclusive e principalmente por pessoas que se consideram juristas.
A verdade é que o processo enquanto conquista histórica do liberalismo foi completamente esquecido pelos agentes da Lava Jato. A quantidade de subversões à lei perpetrada por Sérgio Moro, da condução coercitiva do ex-presidente Lula, passando pelo abuso nas prisões preventivas, pelo alto grau de subjetividade na condução das audiências, pela violação de sigilo telefônico e pela inacreditável exigência de que o ex-mandatário comparecesse às oitivas de suas 87 testemunhas, representa algo deliberado ao invés de erros simplórios como o de quem exagera ao pôr azeite na salada. O mesmo se aplica à Dallagnol e ao Ministério Público Federal em vários procedimentos no mínimo questionáveis, a exemplo da execração pública do ex-presidente por meio daquele famigerado powerpoint.
A atmosfera criada em torno desses episódios alça seus agentes à condição de escravos das expectativas alimentadas por eles próprios, de modo que, mesmo que cogitem a hipótese de absolvição – algo, definitivamente, fora de cogitação –, o monstro que ajudaram a criar com o seu populismo judiciário, representado pelas sucessivas tratorizações de ritos processuais e da presunção de inocência (duas conquistas liberais clássicas, frise-se), para atender aos reclamos da opinião pública insuflada pela imprensa empresarial impede que qualquer epifania republicana possa brotar em suas mentes.
Na novela da Lava Jato, Sérgio Moro foi transformado em uma espécie de herói romântico e diletante, um cruzado em cujos ombros pesa o dever histórico de combater o mal de todos os males: a corrupção, principalmente aquela que viceja em nossa descredibilizada classe política, composta por pessoas mal intencionadas prestes a serem varridas pelos arcanjos capitaneados por Deltan Dallagnol, todos legitimados e investidos do poder divino de universalizar sua régua moral para tratar de problemas de índole institucional e política, por mais desprezo que nutram por esta palavra.
Não há solução fora da política. A mistificação do juiz paranaense, além de criminalizá-la, fulanizar o debate e safar as origens estruturais e sistêmicas que geram uma corrupção inerente â concentração de poder econômico, deu origem a uma assustadora e antirrepublicana adoração por parte da militância antipetista que em boa parte acredita piamente que Lula e o PT, se não são a origem de todo o mal, são o poço de onde sai a maior parte dele. O séquito morista, no seu conservadorismo galopante, chega ao ponto de confrontar o próprio Moro em nome do ícone messiânico que o juiz se tornou. O fato do magistrado ter reconhecido em mensagem ao STF que se excedeu na violação do sigilo telefônico e publicação do conteúdo das conversas entre Lula e Dilma não arrefeceu a adoração que lhe é dispensada pelo morismo, que continuou defendendo os propósitos morais com os quais seu guru violou a lei. São, no final das contas, mais católicos que o papa.
A todos estes fatos some-se uma espécie de mapeamento cognitivo que funciona segundo o esquema da “luta do bem contra o mal”, interpretando os acontecimentos sob a perspectiva maniqueísta e indolente de quem não se dispõe a fazer qualquer esforço intelectual em entender que a vida é muito mais complexa que a narrativa de mocinhos contra vilões. A novelização da Lava Jato parte exatamente da premissa de que para atingir alguns inconfessáveis propósitos é necessário fortalecer as paredes dessa caixa, trancando suas portas, cimentando suas janelas e impedindo qualquer oxigenação mental fora dela.
Muitos destes propósitos inconfessáveis se encontram no projeto que vem sendo aplicado no Brasil e que veio na esteira da operação Lava Jato, estrategicamente instrumentalizada contra o PT (que tem sim seu naco de responsabilidade nos malfeitos apontados por ela) ainda que tenha deixado clara a natureza sistêmica e estrutural da corrupção em nosso país. O afã moralista de apontar nomes e se adequar a esquema cognitivo serviu de amparo para o impeachment de Dilma Rousseff e a consequente concretização de um projeto ultraliberal que jamais, em quaisquer condições normais de temperatura e pressão democráticas, sobreviveria às urnas, assim como em tese não sobrevive à própria Constituição Federal que conforma a produção e reprodução de riqueza ao atendimento de imperativos éticos consagrados pela comunidade política.
A racionalidade do mercado em acumular predatoriamente é estancada por diretrizes como o combate à desigualdade social e a promoção do desenvolvimento nacional e regional previstos por nossa lei maior e amparados no fato de que o mercado interno constitui um patrimônio nacional (artigo 219) cuja riqueza não pode ser alocada segundo a lógica de acumulação e rapina do livre mercado. Reformas como a da previdência, trabalhista e do ensino médio, os ataques ao SUS e a aprovação da PEC do teto de gastos desconsideram por completo esta realidade constitucional, algo que não seria possível sem que houvesse a capitalização da Lava Jato com o intento de que propósitos antirrepublicanos e antidemocráticos pudessem enfim sair do papel.
O fato é que Moro sabe disto, assim como sabe também do teor de sua liderança a ponto de gravar vídeos para seus seguidores e de insuflar a imprensa para que saia a favor dos seus quixotescos propósitos. Toneladas de expectativas foram depositadas sob seus ombros, e nenhuma grama destas expectativas apontam para qualquer esboço de absolvição. O projeto que lhe foi caudatário precisa de uma condenação de Lula para que se mantenha de pé e não tenha suas contradições expostas na arena da democracia eleitoral.
Diante da condenação certa e da impossibilidade de lutar em um processo onde convicções já foram formadas desde antes mesmo de ser instaurado, Lula jogou as cartas no terreno que melhor sabe atuar: o da própria política, terreno este que a própria Lava Jato adentrou embora seus condutores achem ruim que respostas de cunho político venham sendo dadas aos surtos absolutistas de Sérgio Moro, tão políticos quanto palanques de comícios de interior. Em determinado trecho de seu depoimento, Lula diz que se Moro demonstrar uma tímida reflexão de que poderá, mesmo que remotamente, absolvê-lo, a matilha da imprensa empresarial não irá poupá-lo de sua sede por sangue assim como não vem poupando o ex-presidente. O processo, esta inconveniente garantia do réu, os depoimentos e todas as provas produzidas, ainda que apontem para isto, não são suficientes para que Moro deixe de alimentar o monstro que ajudou a criar e assim decepcione seu vasto fã clube. Definitivamente.

Gustavo Henrique Freire Barbosa é Advogado e professor

Disponível em:  http://justificando.cartacapital.com.br/2017/05/11/o-monstro-que-sergio-moro-ajudou-criar-e-que-torna-impossivel-absolvicao-de-lula/

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