Diante da onda impetuosa de políticas anti-indígenas
implementadas a toque de caixa pelo Congresso, com ampla complacência do
governo Temer, o presidente da Funai, Antônio Fernandes Toninho Costa, foi exonerado
nesta sexta-feira (5). Enquanto em Brasília se davam as movimentações
para que ele deixasse o cargo “por ser defensor da causa indígena diante
de um ministro ruralista”, segundo definiu, no Pará, guerreiros do povo
Munduruku, armados com bordunas e arcos e flechas, interditavam uma
ponte na rodovia Transamazônica em um ponto-chave para o escoamento da
produção de soja para os portos no rio Tapajós. O protesto gerou uma
fila de mais de 40 km de caminhões por mais de uma semana e só terminou
na tarde de quinta-feira (4), com o desbloqueio da rodovia.
Viajando de Santarém para Itaituba para uma reunião com colonos da
região, o pesquisador Mauricio Torres acabou ficando acidentalmente
preso no trânsito. Ao chegar ao bloqueio, foi reconhecido pelos
Munduruku, com quem tem contato há anos, e os índios pediram a sua
colaboração na redação de suas notas. Ele acabou ficando no ato até o
final, na tarde desta quinta-feira, dia 4, oito dias depois.
Caminhoneiros presos no bloqueio falaram em atropelar os Munduruku
para desobstruir a pista. Com espantosa tranquilidade, ao ouvirem as
ameaças, os índios gritam “Sawe” – uma saudação de apoio, algo como
“Muito bom! Isso mesmo!” – e avisaram que, caso fossem atacados,
ateariam fogo à ponte.
Mas a hostilidade que marcou o início do protesto deu lugar a um
apoio mútuo quando os dois lados se reconheceram como vítimas das
políticas do atual governo.
Os motivos da manifestação eram a recusa do governo em demarcar terras indígenas, conforme está previsto na Constituição de 1988, e o desmonte da Funai.
A interdição foi também um claro protesto contra a bancada ruralista,
que domina o Congresso e que pressionou o Executivo para que fossem
implementadas iniciativas contra os direitos dos índios aos seus
territórios.
Povo Munduruku Ocupa Transamazônica e Sai Vitorioso
https://www.youtube.com/watch?v=t_9LP3nYsKM
Mundurukus bloqueiam a Transamazônica
Em 26 de abril, 130 índios Munduruku, apoiados por ribeirinhos de
Montanha e Mangabal, comunidades à beira do rio Tapajós, interditaram a
rodovia Transamazônica e ocuparam uma ponte 25 quilômetros a leste do
porto de Miritituba (PA), ponto-chave da principal rota de escoamento de
grãos pelo Norte, onde estão localizados os terminais de transbordo de
gigantes transnacionais, como a Bunge e a Cargill.
Depois de dois dias com a rodovia totalmente obstruída nos dois
sentidos, no dia 28 o bloqueio adotou uma intermitência, liberando o
fluxo a cada 12 horas. Mas, a partir da manhã do dia 3, a interrupção
voltou a ser total, barrando inclusive viaturas de polícia e abrindo
exceções apenas a ambulâncias.
Liderança política da Terra Indígena Sawre Muybu, Antonio Munduruku,
35, falou a The Intercept Brasil sobre os dois motivos do bloqueio:
“Queremos que os funcionários da Funai
que estavam trabalhando conosco voltem às suas funções. Precisamos
deles. Eles são nossa ferramenta mais poderosa na luta pela demarcação
das nossas terras. E não vamos sair de mãos vazias. O [então] presidente
da Funai nos disse, na sexta-feira, que ele iria resolver isso. Mas não
acreditamos mais em palavras. Queremos que a recondução deles seja
publicada no Diário Oficial”.
“É nossa terra, mas nada acontece. Madeireiros continuam a derrubar árvores”.
Ele continua: “Em segundo lugar, queremos que a terra indígena Sawre
Muybu seja demarcada direito. É nossa terra, mas nada acontece.
Madeireiros continuam a derrubar árvores”.
O velho cacique Vicente Saw, que percorreu mais de 400 quilômetros de
estradas de terra para chegar ao protesto, afirmou que interditar o
tráfego da rodovia é uma medida efetiva: “O coração do governo está aqui
nessa estrada”.
Os
Munduruku não foram hostis aos caminhoneiros. A liderança indígena
Tomas Manhuary Munduruku afirma: “Somos a favor dos caminhoneiros. Eles
também precisam de apoio. Não está certo o governo cortar a
aposentadoria deles”.
O mais surpreendente é que, mesmo afetados pelo protesto, parte dos
caminhoneiros tenham passado a apoiar os índios. “Essa estrada é
fundamental para o Brasil, e o protesto precisa acabar. Só que os
direitos dos índios não estão sendo respeitados, assim como os nossos
também não estão. Mas a gente está aqui carregando o Brasil nas costas.
Não dá para parar. Precisamos que o governo resolva isso. Nenhum de nós
merece ser tratado desse jeito”, diz o caminhoneiro Mário Nascimento.
Outro caminhoneiro preso no bloqueio, que não quis revelar seu nome,
como é comum nessa violenta região, por temor de represálias, afirma:
“Eles [os índios] estão certos. Não dá para negar. E se tiver gente
querendo me linchar porque estou dizendo isso, então que me linchem”.
Tanto os caminhoneiros quanto os índios acusaram várias vezes o governo de não escutá-los: “O maior problema é o governo”.
Havia
uma preocupação de que a fome, a sede e o calor amazônico afetassem os
índios e os caminhoneiros – e, com isso, os humores também esquentassem.
Um caminhoneiro que não quis se identificar chegou a ameaçar: “Vamos
passar por cima dos índios, um por um, com nossos caminhões. Se esse
governo horroroso não conseguir acabar com o bloqueio, é que vamos
fazer”.
Em tom de deboche, outro caminhoneiro afirma: “Está ficando
insuportável para todo mundo. Não tomo banho há mais de 24 horas, nesse
calor. Estou com vontade de jogar minha cueca no rio. Aí vai matar os
peixes. E aí os índios não vão ter peixe para comer, e a gente também
não”.
Como a fila de caminhões se estendia por muitos quilômetros, era
difícil medir o humor dos caminhoneiros. Mas, na tarde de quarta-feira,
houve uma reviravolta. Um grupo significativo deles se reuniu com os
índios sobre o leito da rodovia. Os dois lados expressaram apoio mútuo,
reafirmando que a principal queixa de ambos é em relação ao atual
governo.
Apesar de não ser unanimidade entre os caminhoneiros, essa é a visão
de um número representativo deles – o que é uma novidade extraordinária
pois, no passado, ações indígenas como o bloqueio de estradas causavam
indignação, principalmente por parte desses trabalhadores. Um sintoma da
altíssima taxa de rejeição ao atual governo por eleitores dos mais
diferentes tipos. O presidente Temer tem o apoio de apenas 9% da
população, uma marca inédita.
Violência no Maranhão
Em 30 de abril, jagunços comandados por fazendeiros atacaram índios
do povo Gamela, que ocupavam uma parte de sua Terra indígena (não
demarcada pelo governo) que estava ilegalmente ocupada por fazendeiros. O
massacre aconteceu no município de Viana, a 214 quilômetros de São
Luís, no Maranhão, estado dominado há décadas por grileiros e
latifundiários, liderados pela família Sarney (um dos membros do clã é
José Sarney Filho, atual ministro do Meio Ambiente).
Trata-se de um território que era tradicionalmente dos Gamela, que
foram expulsos pela ditadura militar. Fazendeiros ocuparam a área e
derrubaram a floresta para criar gado e não demorou para que começassem a
se arrogar como legítimos donos da terra.
No entanto, cerca de 300 famílias Gamela permaneceram na região,
determinadas a retomar o território apesar dos riscos aí implicados. A
despeito da legitimidade de sua reivindicação, os índios não conseguiram
que as autoridades cumprissem suas obrigações constitucionais: demarcar
a terra indígena. Pressionada pelos fazendeiros, a Funai se recusou a dar início ao processo de demarcação das fronteiras do território Gamela.
“As condições de vida foram piorando ano após ano, e os Gamela se convenceram de que só sobreviveriam se o povo reagisse.”
Há três anos, os índios entraram na Justiça para obrigar os
fazendeiros a abdicar do território, mas o caso não andou por conta de
atrasos burocráticos. As condições de vida foram piorando ano após ano, e
os Gamela se convenceram de que só sobreviveriam se o povo reagisse.
Eles deram então início a uma série de ações de retomada da terra que
era tradicionalmente deles.
Essa última ocupação foi feita para coincidir com os protestos em Brasília e com a primeira Greve Geral
em 21 anos, organizada pelas centrais sindicais contra as severas
medidas de austeridade do governo Temer. Entretanto, como diziam os
velhos caciques que comandavam a ação, “para índio Munduruku a Greve
Geral só acaba quando a gente resolve o problema”.
Era uma estratégia arriscada, tendo em vista o forte anti-indigenismo vigente em Brasília e que ecoa, potencializando a violência nos campos mais remotos. Os fazendeiros locais responderam rapidamente. De acordo com um relato, eles trocaram mensagens via WhatsApp e convocaram colegas e pistoleiros a se reunir perto do acampamento.
Mensagens de apoio aos fazendeiros inundaram a mídia. Em entrevista a uma rádio
local, o deputado federal Aluisio Mendes Filho (PTN/MA), secretário de
Segurança Pública do Maranhão no governo Roseana Sarney, acusou os
Gamela de serem “arruaceiros” e estimulou a violência contra eles.
Os índios estavam em minoria e, ao serem atacados por homens empunhando rifles e facões, não puderam fazer muito mais do que fugir para a floresta.
“Ele botou gasolina na fogueira”, definiu um dos índios.
Os fazendeiros fizeram um churrasco, beberam muito álcool e foram
ficando agressivos ao falar dos índios. Estava claro que um ataque
estava sendo planejado. Mas quando ele de fato aconteceu, a política
militar (que tinha chegado mais cedo ao local) não interveio.
Os índios estavam em minoria e, ao serem atacados por homens
empunhando rifles e facões, não puderam fazer muito mais do que fugir
para a floresta.
De acordo com o Conselho Indígena Missionário (Cimi), treze índios
ficaram feridos. Cinco foram baleados, dois deles tiveram as mãos
decepadas, outros foram espancados, um teve traumatismo craniano. Kum
‘Tum Gamela, ex-padre que já recebeu inúmeras ameaças de morte, também
ficou ferido.
A vontade de resistir
Os Munduruku ficaram chocados, mas não surpresos, com o que o
aconteceu com os Gamela: “Eles são de uma etnia diferente, mas são
nossos irmãos, do mesmo sangue”, afirma Jairo Saw Munduruku. “O governo
parou de demarcar terras indígenas, as que existem não são fiscalizadas e
estão destruindo a Funai. O resultado só pode ser esse mesmo. Nós
lutamos hoje para que não aconteça com a gente o que aconteceu hoje com
os Gamela.”
Jairo é bastante consciente do que importa ao branco em suas terras:
“O governo tem que demarcar nosso território. Se não, grandes
madeireiras, grandes mineradoras vão invadir. E vão dar início a
conflitos, vão nos atacar, assassinar nossos líderes. É o que o governo
quer, mas precisamos impedir que isso aconteça. Não temos ninguém para
falar por nós no Congresso. Nós mesmos temos que nos defender”. Ao longo
das últimas semanas, The Intercept Brasil tentou contato com o governo
brasileiro para comentar o caso, mas não obteve resposta.
“Não temos ninguém para falar por nós no Congresso. Nós mesmos temos que nos defender”
Na tarde do dia 4, os Munduruku obtiveram de Paulo de Tarso Oliveira,
procurador da República em Itaituba, a notícia de que a exoneração do
responsável pela coordenação da Funai na região, Ademir Macedo da Silva,
havia sido revertida. Todo o trâmite estava encaminhado e a publicação
no diário Oficial da União seria questão de tempo. Em função da grande
confiança do grupo no procurador, o bloqueio foi desmobilizado após as
danças de guerra que celebram a vitória do grupo.
Poucas horas depois, publicam mais uma nota, bem direcionada e contundente:
“Essa ocupação foi só uma demonstração do que a força guerreira do
povo Munduruku pode fazer. Continuamos tendo nossas reivindicações e já
avisamos que iremos voltar se não nos ouvirem. Vamos novamente retornar
para interditar a estrada e com maior grupo de guerreiros Munduruku e
também seguiremos à capital do Brasil.”
Em nota à imprensa,
o ministro da Justiça, Osmar Serraglio, prometeu investigar “o
incidente envolvendo pequenos agricultores e supostos indígenas no
povoado de Bahias”. O termo “supostos” gerou uma onda de indignação por
parte dos indígenas e foi rapidamente retirado da nota. Logo depois, o
termo “pequenos agricultores”, criticado por se tratar de um eufemismo
para milícias armadas pagas por fazendeiros, também foi apagado. No fim
das contas, a nota se resumiu a dizer que o ministério iria investigar
um “conflito agrário”. A Comissão de Direitos Humanos da OAB deve pedir ajuda à Anistia Internacional para resolver a disputa.
Uma divergência crescente
Protestos no Maranhão e no Pará não são casos isolados. De 24 a 28 de
abril, o Acampamento Terra Livre reuniu em Brasília mais de 4 mil
lideranças indígenas na maior manifestação, em números de participantes,
do país. Os índios exigiam que o governo voltasse atrás e atendesse às
demandas indígenas. Os manifestantes foram recebidos com gás
lacrimogêneo.
Por todo o território brasileiro, índios expressam seu medo do
futuro. Paulo Marubo, índio do Vale do Javari (AM), região próxima à
fronteiro com o Peru, diz que a Funai, dizimada por cortes
orçamentários, terá de fechar muitas das Bases de Proteção
Etnoambiental, as Bapes, que têm um papel fundamental no monitoramento
do território ocupado por índios isoladas.
“Se as equipes de proteção forem desativadas, vai ser que nem antes,
quando os índios eram massacrados e morriam de novas doenças. Se os
madeireiros se instalarem, vão fazer contato com os índios isoladas, vão
espalhar doenças e matá-los”, conta Marubo à Survival International.
O governo federal parece estar dando as costas às demandas indígenas.
Após 55 dias no cargo, o ministro da Justiça, Osmar Serraglio, não teve
sequer uma reunião com um índio. Mas achou espaço na agenda para se
encontrar a portas fechadas com 100 proprietários de terras e executivos
acusados de corrupção na Operação Lava Jato.
Durante a grande manifestação em Brasília, Serraglio e o ministro da
Casa Civil, Eliseu Padilha, demoraram para propor uma reunião aos
índios, que recusaram o convite. Os dois ministros são conhecidamente
responsáveis por traçar a estratégia anti-indígena do governo. Sem
nenhuma possibilidade de acordo sobre a mesa de negociações, os líderes
indígenas não viram razão para se encontrar com eles.
Esse ataque aos direitos dos índios é o mais grave desde o fim da ditadura militar, em 1985. O Instituto Socioambiental (ISA) afirma
que, desde que Temer assumiu o governo, observa-se “um aumento
exponencial da violência no campo”: “A circunstância de estar Ministério
da Justiça ocupado por [Osmar Serraglio,] um militante da injustiça
reforça essa sinistra sinalização”, avalia a entidade.
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