“Mais do que o impacto social, em locais de implantação de
grandes obras, a exploração sexual e a prostituição se convertem em
condições para sua existência e realização, pois historicamente uma está
ligada à outra”, afirma o pesquisador.
Que relação existe entre os grandes empreendimentos, como Belo Monte, e o chamado “mercado do sexo”?
“Existe um mercado do sexo próprio das grandes obras, que possui um
grau de articulação variado, mas que atua há bastante tempo e cuja ação
do Estado, em termos de conhecimento e de repressão, ainda está muito
aquém do necessário”.
A afirmação é de Assis Oliveira, coordenador da pesquisa “Trabalhadores e Trabalhadoras de Belo Monte: percepções sobre exploração sexual e prostituição”, que identificou, entre 2013 e 2014, “um total de seis modalidades distintas de exploração sexual, que envolviam, em maior ou menor intensidade, também a presença de crianças e adolescentes”.
Apesar de a maioria dos entrevistados terem relatado à pesquisa que tinham conhecimento da existência desse mercado, Oliveira comenta que “em se tratando do contexto de Belo Monte, pode-se dizer que, de início, nos saltou os olhos o modo como este mercado do sexo,
que envolvia a exploração sexual de crianças e adolescentes, era
invisível às instituições públicas e aos dados oficiais dos órgãos da
rede de proteção”.
Segundo ele, essa invisibilidade
pode ser explicada pela falta de denúncias ao poder público, falta de
apuração rigorosa quando elas eram feitas e também porque “este mercado
do sexo detinha diferentes moldagens de configuração, que só fomos
conseguir entender com o caso da Boate Xingu”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, o pesquisador também chama a atenção para as implicações sociais do mercado do sexo, ressaltando o “efeito psicológico” que a prostituição e a exploração sexual geram em crianças e adolescentes
que são colocados “em dinâmicas de serviços sexuais que afetam
completamente o modo como compreendem sua sexualidade, as relações
afetivas e a projeção para o futuro. É preciso dizer que tais pessoas
acabam tendo uma redução de rendimento ou, mesmo, o abandono da escola e
que, em muitos casos, isso vem acompanhado de gravidez indesejada na
adolescência, de dependência química e de violência física que leva a
uma série de riscos e de reconfiguração da vida dessas pessoas”.
Assis Oliveira é
graduado em Ciências Jurídicas, mestre pelo Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade Federal do Pará – UFPA e doutorando pelo
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. É
professor de Direitos Humanos da UFPA e secretário de articulação do
Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais.
Confira a entrevista.
Foto: Tabajara Marques / maringanews.com.br |
IHU On-Line - Como foi realizada a pesquisa "Trabalhadores e
Trabalhadoras de Belo Monte: percepções sobre exploração sexual e
prostituição” e quais são seus principais resultados? Como a sua
pesquisa caracteriza exploração sexual e prostituição? Quais as
peculiaridades de cada uma?
Assis Oliveira - Penso ser importante informar, antes de tudo, que se trata de uma pesquisa que concretiza uma medida estabelecida no Pacto de Compromisso firmado entre o Consórcio Construtor Belo Monte e o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Altamira, e que possui uma série de medidas que visam garantir a responsabilização do consórcio empresarial para com os impactos que sua atividade acarreta nas condições de vida de crianças e adolescentes, especialmente no tocante à exploração sexual.
Por isso, essa pesquisa teve por
finalidade dar continuidade ao levantamento de dados sobre a situação da
exploração sexual contra crianças e adolescentes, e a exploração sexual e prostituição
no contexto geral, a partir da participação dos próprios trabalhadores,
de certo modo buscando humanizar a percepção que se tem sobre eles, no
intuito de compreender os sentidos e significados que atribuem à
presença ou inserção nas dinâmicas de exploração sexual e de
prostituição. A partir disso, buscou-se identificar como o consórcio
empresarial e os poderes públicos podem qualificar suas atuações de
prevenção e de repressão a tais cenários.
Desse modo, a pesquisa foi realizada
durante os meses de abril e maio de 2015, ainda na época em que havia um
grande quantitativo de pessoas trabalhando em Belo Monte,
de aproximadamente 29 mil pessoas. Esta já não é mais a realidade atual
- de fevereiro de 2016, em que há cerca de 10 mil trabalhadores -, mas
envolveu, fundamentalmente, um trabalho de coleta de informações via
preenchimento de questionários objetivos pelos próprios trabalhadores,
durante o período do almoço, e depois a sistematização e análise desses
dados.
No geral, o primeiro grande resultado diz respeito à adesão
dos trabalhadores e das trabalhadoras à pesquisa: tivemos 1.483 pessoas
participando, o que, em termos percentuais, significa pouco mais de 5%
do montante de pessoas à época. No entanto, numa análise sobre o teor da
temática, de algo que envolve tratar de assuntos ligados à intimidade
das pessoas e a situações que são crimes sexuais no
Brasil, surpreendeu o tamanho da adesão, e, logo, o quanto isto pode
significar que os trabalhadores e as trabalhadoras também querem ajudar a
mudar esse cenário, por mais que, por trás dele, haja um modelo de desenvolvimento pautado em grandes obras que estrutura as condições para a reprodução histórica dessa violação de direitos.
Conhecimento das redes de exploração sexual
Bem, em termos de resultados
propriamente ditos, os mais importantes dizem respeito à quantidade de
pessoas que dizem ter conhecimento de locais de exploração sexual e de prostituição na região diretamente afetada por Belo Monte,
que chegou a um percentual de 65% dos participantes. Isto é, de cada 10
pessoas, 6,5 têm não somente informações sobre esses locais, mas,
pode-se projetar, uma boa parte tem certamente algum envolvimento com
esses casos.
Mesmo que 70% dessas pessoas tenham indicado que os locais estão geograficamente concentrados na cidade de Altamira, nos surpreendeu o fato de o segundo colocado ser a comunidade de Belo Monte, que é uma comunidade ribeirinha que fica às margens do rio Xingu, onde há a travessia da balsa que interliga a rodovia Transamazônica entre os municípios de Anapú e Vitória do Xingu.
Por conta disso, existem muitos bares, restaurantes e uma quantidade
expressiva de caminhoneiros, além de funcionários da obra, que transitam
por lá.
Enfim, essa comunidade deve ter uma
atenção redobrada, pois sua configuração de proximidade com o
empreendimento e de tráfego intenso de pessoas do sexo masculino acaba
gerando uma situação crítica de vulnerabilidade sexual às crianças e aos adolescentes, assim como às mulheres.
Um dado interessante foram os motivos que levam as pessoas a frequentarem locais de exploração sexual e de prostituição.
A pesquisa chegou ao resultado de que o principal deles seria “a
ausência da companheira, namorada ou esposa”, conforme indicam 39% das
respostas. Essa questão precisa ser seriamente discutida, pois é um dos
principais elementos caracterizadores das grandes obras, e que acarreta
múltiplos prejuízos às condições de vida dos trabalhadores e aos
cenários sociais dos locais de implantação dessas grandes obras, a
exemplo da cidade de Altamira.
Enfim, penso que aqui precisamos
discutir tanto a questão da ampliação da inserção de mão de obra local, o
que envolve também ampliar o acesso à qualificação profissional
adequada, como também a redução do chamado tempo para as “baixadas”, que
são os retornos programados dos trabalhadores para seus locais de
origem. A maioria dos trabalhadores de Belo Monte
retorna a suas casas a cada 90 dias, mas esse período já foi de 180
dias, tendo mudado em 2013. Mesmo assim, ainda não se consegue evitar
esta quebra de vínculos socioafetivos que potencializa o ingresso aos locais de exploração sexual e prostituição.
Uso de drogas e a potencialização da exploração sexual
Somado a isto, também coloco, como segundo principal motivo da frequência a locais de exploração sexual, o uso de álcool e outras drogas, conforme foi atribuído por 25% dos participantes.
No caso específico do cenário em que
vivemos hoje na região, as drogas não são apenas um forte indutor para
potencializar a inserção na exploração sexual e na prostituição dos
trabalhadores, mas estão “casadas” com tal cenário, são
interdependentes, uma está ligada à outra, pois as redes de drogas e exploração sexual se fundiram e hoje atuam como se fossem uma só. Isso as torna ainda mais poderosas e com maior potencial de agregar clientes.
Basta ver que uma das perguntas que mais
obteve respostas afirmativas na pesquisa foi justamente a que
solicitava informações sobre se a pessoa tinha conhecimento da presença
de drogas nos locais de exploração sexual e de prostituição; 566 pessoas
confirmaram, o que dá um percentual de 38,1%.
“Trata-se de uma rede que funciona com base na lógica do mercado, da oferta e da demanda, do lucro e da ‘satisfação’ do cliente” |
IHU On-Line - Como se formaram as redes de exploração sexual e prostituição em torno de Belo Monte?
Assis Oliveira - Duas
coisas me parecem importantes para que possamos entender como se
formaram as redes de exploração sexual e de prostituição no contexto de Belo Monte. A primeira diz respeito ao fato de entender o que é essa rede e qual é sua tipologia. Trata-se de um mercado do sexo,
com maior ou menor grau de organização, mas uma rede que funciona com
base na lógica do mercado, da oferta e da demanda, do lucro e da
“satisfação” do cliente. Há bastante tempo se sabe que os locais de
implantação de grandes obras são locais cujas configurações estruturais levam ao aumento da demanda por serviços sexuais, legais ou ilegais.
De certo modo, digo até que, mais do que um impacto social, em locais de implantação de grandes obras, a exploração sexual e a prostituição
se convertem em condições para sua existência e realização, pois
historicamente uma está ligada à outra, haja vista o modelo de
desenvolvimento. Por isso, no diagnóstico que lançamos, em 2014,
analisando o caso da Boate Xingu,
situação que ocorreu em fevereiro de 2013 e que levou ao resgate de 17
mulheres, uma adolescente e uma travesti de uma boate localizada entre
os sítios Canais e Pimental, o proprietário da Boate Xingu, Adão,
já atuava nesse mercado de administração de casas de prostituição em
locais de implantação de grandes obras há bastante tempo, pelo menos uns
10, 15 anos, tendo vindo de barragens no Sul do Brasil para depois se
instalar nas proximidades da Usina de Jirau, em Rondônia, e depois ter migrado para próximo de Belo Monte.
Ou seja, existe um mercado do sexo
próprio das grandes obras, que possui um grau de articulação variado,
mas que atua há bastante tempo e cuja atuação do Estado, em termos de
conhecimento e de repressão, ainda está muito aquém do necessário.
"No caso da Boate Xingu foram resgatadas 17 mulheres, uma adolescente e uma travesti. O proprietário da Boate Xingu, Adão, já atuava nesse mercado, em locais de implantação de grandes obras, pelo menos uns 10, 15 anos." Foto: Bruno Carachesti/Diário do Pará. |
As facetas do mercado do sexo
Uma segunda questão é que uma obra da magnitude da de Belo Monte, que chegou a ter 33 mil trabalhadores no pico máximo da obra, em junho de 2014, quando a previsão pelo EIA era de ter, no máximo, 19 mil trabalhadores, fez com que a população de Altamira saltasse de 99 mil, que foi o primeiro registro do Censo de 2010 do IBGE, para 154 mil, que foi o registro da Norte Energia
no relatório que lançou em 2015. Ou seja, a obra fez a cidade aumentar
seu quantitativo populacional em mais de 55% em poucos anos.
Uma obra dessas tem um efeito imenso no
cotidiano e nas condições de vida da população local, e as suas várias
etapas ou fases, ligadas também às distintas licenças
que lhe são autorizadas, desde a prévia, passando pela de instalação e
depois pela de operação, na qual estamos agora, acabam transformando-se
em condicionantes para a conformação do mercado do sexo, para a sua adequação a cada momento, visando sempre os seus objetivos particulares.
É por isso que nós estamos realizando um
diagnóstico permanente das diferentes conformações e estratégias que o
mercado do sexo vem desenvolvendo em Altamira e, agora, com o projeto PAIR Xingu, que estamos desenvolvendo, também abarcando os outros 10 municípios que compõem a região do Xingu. E, em se tratando do contexto de Belo Monte, pode-se dizer que, de início, nos saltou os olhos o modo como este mercado do sexo, que envolvia a exploração sexual de crianças e adolescentes, era invisível às instituições públicas e aos dados oficiais dos órgãos da rede de proteção.
Era invisível não somente porque as
denúncias não eram feitas ou, quando feitas, não eram apuradas com o
rigor que exigia, mas também porque este mercado do sexo detinha
diferentes moldagens de configuração, que só fomos conseguir entender
com o caso da Boate Xingu e, depois, com a pesquisa que
fizemos para mapear os locais de exploração sexual e as dinâmicas,
chegando, entre 2013 e 2014, a um total de seis modalidades distintas de
exploração sexual. Estas envolviam, em maior ou menor intensidade,
também a presença de crianças e adolescentes, desde a lógica das boates e bares, passando pela inserção com o tráfico de drogas,
situação ligada à poluição sonora, aos locais que eram pontos
transitórios de exploração sexual, sobretudo de rua e balneários, a
relacionada à “alta classe” e a que envolvia povos e comunidades
tradicionais.
Enfim, é um mercado do sexo
que possui muitas facetas e estratégias para garantir seu objetivo, por
isso mesmo não é um mercado em si, mas uma pluralidade de mercados do
sexo que atuam ou não em parceria, que muitas vezes são rivais entre si,
mas que acabam conseguindo inserir um público muito amplo de clientes e
de vítimas, assim como se entrecruzar com a estrutura do Estado para
fazer dele, em alguns casos, seu aliado, mais do que seu repressor.
Tudo isso ocorreu até o início do
processo atual que estamos vivendo, chamado de “desmobilização dos
recursos humanos”, que é, trocando em miúdos, a demissão em massa dos trabalhadores de Belo Monte, e cujas novas condições também geraram uma reconfiguração do mercado do sexo. Isto nos leva a entender que, por mais que Belo Monte passe, a exploração sexual
continua, seja no nosso próprio território, com novas configurações,
seja buscando novos locais de implantação de grandes obras para dar
continuidade à sua lógica de mercado e de casamento com este modelo de
desenvolvimento.
IHU On-Line - Que relações evidencia entre o uso de drogas e bebidas alcoólicas e os casos de exploração sexual e prostituição em Altamira?
IHU On-Line - Que relações evidencia entre o uso de drogas e bebidas alcoólicas e os casos de exploração sexual e prostituição em Altamira?
Assis Oliveira - Até pouco tempo atrás, nós sabíamos que as drogas estavam entrelaçadas com quase todas as modalidades de exploração sexual
que tínhamos identificado, mas estava mais presente e era mais intensa
nos antigos locais de bocas de fumo, pois na sua área de influência, que
era a vizinhança, as pessoas acabavam tendo sérios problemas de
dependência química, fazendo com que, como apuramos, pais dessem as
filhas como pagamento, via programas sexuais, aos traficantes, para que
pudessem continuar a consumir suas drogas.
Mas isto mudou, e mudou, posso dizer, fundamentalmente devido à reorganização espacial empreendida pela Norte Energia
para a população diretamente impactada, aquela que estava no território
urbano que seria alagado com o enchimento dos reservatórios da
hidrelétrica, e que acabava englobando boa parte dos locais que tínhamos
anteriormente mapeado como de exploração sexual e de tráfico de drogas.
A situação também mudou devido ao próprio sucesso das campanhas e da atuação da rede de proteção,
o que levou a mudanças nas estratégias para manutenção desse mercado do
sexo. Hoje, existe um só mercado, que atua nessas duas pontas, da
exploração sexual e do tráfico/consumo de drogas, e que elegeu um local
central para angariar novos adeptos e mais lucro: as escolas, onde esperamos encontrar espaços de socialização de conhecimento e de segurança às crianças e aos adolescentes.
Esse é cada vez mais o espaço escolhido por essa rede fundida de exploração sexual e drogas
para circular seus produtos, no caso das drogas, e aliciar pessoas,
sobretudo adolescentes, para se inserir numa dinâmica de exploração
sexual que acaba levando as adolescentes a serem
consumidoras e vendedoras de droga, o que as coloca numa situação de
risco ainda maior, mesmo que assim não percebam, em sua maioria.
“A pesquisa mostrou que todos os níveis de funcionários do empreendimento têm conhecimento dos locais de exploração sexual e de prostituição na região” |
IHU On-Line - Qual é o perfil das pessoas envolvidas nesta rede de exploração sexual e prostituição?
Assis Oliveira - Em
termos de clientes, diria que a pesquisa mostrou que todos os níveis de
funcionários do empreendimento têm conhecimento dos locais de exploração
sexual e de prostituição na região. Por isso mesmo, projeta-se que há
uma inserção de clientes de diferentes níveis ou classes sociais, mas
que participam de modalidades diferentes de exploração sexual. Basta
lembrar o caso da Boate Xingu, que, durante as
investigações policiais e judiciais, tomou-se conhecimento de que era
frequentada por pessoas do baixo escalão do Consórcio Construtor de Belo Monte - CCBM,
e que ao lado dela estavam sendo construídas outra boate e uma pousada
para servirem a outros públicos da obra, mas que nunca foram
finalizadas.
Enfim, lembro isso só para reforçar o fato de que a diferença de poder aquisitivo dos clientes, e aqui falamos basicamente de homens,
é algo que condiciona o tipo de serviço sexual que será oferecido e as
estratégias para executá-lo, especialmente tendo em vista a “segurança”
dos clientes e o perfil das adolescentes e mulheres, sobretudo, que
serão inseridas nessa dinâmica de exploração sexual.
Além disso, um dado interessante, que
ainda estamos buscando aprofundar, é que na pesquisa houve,
proporcionalmente, mais mulheres do que homens respondendo
afirmativamente à pergunta sobre se suspeitam ou têm conhecimento da
presença de crianças e adolescentes em locais de
exploração sexual. Esse é um dado que merece uma atenção, pois talvez
estejamos revelando uma forma de inserção das mulheres, como clientes, dentro da dinâmica de exploração sexual, e que até então não tínhamos tanto conhecimento disso estar ocorrendo no contexto de Belo Monte.
IHU On-Line - Desde o início da
construção de Belo Monte, há denúncias da existência de redes de
exploração sexual. Como o poder público tem se manifestado em relação a
esses casos de prostituição e exploração sexual?
Assis Oliveira - Acho que é preciso sinalizar aqui algumas questões ligadas tanto ao poder público quanto aos consórcios empresariais envolvidos com a obra, como a Norte Energia e o CCBM. De início, um ponto que sempre friso é a omissão desse assunto no Estudo de Impacto Ambiental de Belo Monte, quer dizer, as violações de direitos não aparecem no EIA, e, dentre estas, as ligadas à violência sexual de crianças e adolescentes. Logo, não havia a preocupação de identificar os cenários prévios à implantação da obra e suas projeções.
Isto resultou na ausência de medidas
específicas de intervenção dentro das condicionantes socioambientais e
de ações antecipatórias de políticas públicas que pudessem fazer uma intervenção mais adequada e, sobretudo, prévia à instalação dos canteiros de obra, na questão da exploração sexual, especialmente em relação à proteção de crianças e adolescentes.
Com isso, há, posso dizer, um “erro de
origem” do tratamento dado à temática da exploração sexual e, de maneira
mais ampla, das violações de direitos, que envolve discutir seriamente a
melhoria da qualidade dos EIA, para garantir, de fato, formas de intervenção que evitem ou reduzam os impactos com a instalação do empreendimento.
Estamos acompanhando essa mesma situação em Tapajós, pois o Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente da hidrelétrica de São Luís do Tapajós
caminha no mesmo sentido, não possuindo nenhuma informação a esse
respeito, por mais que os movimentos sociais da região, e
particularmente o Movimento dos Atingidos por Barragens,
já estejam denunciando casos de exploração sexual e as projeções de
aumento com uma possível instalação do Complexo Hidrelétrico naquela
região.
Enfim, digo isso, sobretudo, para
colocar em alerta o fato de termos de qualificar o modo como é feita a
identificação dos impactos sociais dos grandes empreendimentos no
instrumental jurídico-administrativo que temos hoje, o licenciamento
ambiental, de modo a incidir diretamente no Termo de Referência dele,
que é o que vai balizar todo o levantamento de dados posterior, assim
como na aproximação com os especialistas locais, no caso, a rede de
proteção, para saber, de fato, quais as violações de direitos que
ocorrem e como projetá-las para o futuro, assim possibilitando a
construção de medidas específicas e adequadas.
Não à toa, tudo o que envolve Segurança Pública em Belo Monte não entrou como condicionante socioambiental, mas sim como Termo de Cooperação entre a Norte Energia e o governo estadual.
Logo, as principais medidas só começaram a ficar prontas em 2015,
quando a obra já caminhava para seu declínio de recursos humanos, ou
seja, na reta final da obra e com atrasos e aditivos seguidos do prazo
de vigência que nada implicavam na emissão das licenças, sobretudo a
última, de operação.
Interferência do poder público
Mas, seguindo com a pergunta, posso
dizer que temos tido diferentes respostas do poder público aos casos e
aos estudos que são noticiados. O município de Altamira possui uma Comissão Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes
desde 2005, mas que passou a intensificar suas ações a partir de 2011.
Dela participam, basicamente, representantes do poder público municipal,
estadual e da sociedade civil, além das universidades, que conseguiram,
ao longo desses anos, elaborar e fazer incidir o Plano Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes
do município, no qual houve bastante avanço na promoção de campanhas de
sensibilização, especialmente no espaço escolar. Houve também a
pactuação do termo com o CCBM, apesar de termos tentado, sem sucesso, o mesmo termo com a Norte Energia.
Temos fluxos de atendimento de casos de abuso e exploração sexual, um deles, inclusive, voltado para os cenários existentes em povos indígenas e comunidades ribeirinhas,
assim como conseguimos intensificar o papel investigativo das polícias e
do Ministério Público, para com estes cenários de exploração sexual.
Ainda assim, durante o período mais agudo do empreendimento, de 2012 a
2014, os órgãos públicos, sem exceção, passaram por uma sobrecarga de
demanda que, costumo dizer, foi inversamente proporcional ao
investimento que tiveram para se estruturarem para suportar essa
demanda.
Assim, um exemplo, em 2012, a Comissão Municipal verificou que a Polícia Rodoviária Federal
passou de um quantitativo de 33 policiais para somente 11 policiais,
com isso deixando de fazer, durante algum tempo, o trabalho de
monitoramento dos potenciais locais de exploração sexual de crianças e
adolescentes ao longo da rodovia Transamazônica,
simplesmente a “campeã” de pontos desse tipo no relatório da PRF de 2011
a 2012. E com uma projeção de aumento populacional tão grande, não se
previu, como condicionante ou medida antecipatória, um segundo Conselho Tutelar na cidade de Altamira,
tampouco uma forma de melhoria salarial dos profissionais da rede
municipal, levando a uma debandada de profissionais, como psicólogos e
assistentes sociais, para as empresas que atuavam no empreendimento,
devido ao fato de o salário ser muito superior.
“O tempo atual já não é mais só o de denunciar os problemas de exploração sexual e de outras violações de direitos ligados às grandes obras” |
Enfim, estou dizendo que houve avanços, que a rede de proteção de Altamira procurou planejar as formas de intervenção, calcada na estruturação de um espaço intersetorial de articulação permanente, a Comissão Municipal, e de um planejamento organizacional e com força normativa, o Plano Municipal. Porém ainda assim os efeitos do processo de implantação de Belo Monte
foram enormes e, sobretudo, nas condições dos serviços de darem conta
da demanda inflacionada, o que envolve também pensar a prioridade de
investimento e de preparação do território que o Estado e o empreendedor
estão garantindo, ou não.
Em relação à exploração sexual de
maneira mais específica, creio que tenhamos avançado no aspecto
repressivo da temática, apesar de ainda precisarmos melhorar a parte de
investigação policial. Mas temos um grande gargalo em relação ao
atendimento das crianças e adolescentes que são
retiradas dessas situações, ou seja, dos serviços que a rede pode
oferecer a elas, pois nossos serviços - e isso no Brasil como um todo -
estão mais voltados para os cenários de abuso sexual, e não de
exploração sexual. Essas são duas modalidades bem distintas de
ocorrência e de forma de abordagem, inclusive com as vítimas.
No ano passado, começamos a discutir, em parceria com o Núcleo de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas do Estado do Pará, um planejamento e a qualificação da intervenção para os cenários de tráfico de pessoas,
especialmente aqueles com fins sexuais que acabam sendo uma das
modalidades de exploração sexual. Mas ainda precisamos melhorar as
respostas de atendimento institucional que podemos ofertar às vítimas,
além de pensar a eficácia dos mecanismos de repressão ao mercado do sexo.
Por outro lado, em nível de governo
federal, creio que conseguimos avançar na internalização da pauta dos
direitos das crianças e dos adolescentes em contexto de grandes
empreendimentos. Isso foi possível a partir da estruturação do espaço da
Agenda de Convergência Obras e Empreendimentos dentro da Secretaria de Direitos Humanos,
que em 2015 conseguiu avançar no processo de construção de medidas que
internalizem elementos de garantia de direitos às crianças e aos
adolescentes nas diferentes etapas e espaços de decisão que conformam as
grandes obras e empreendimentos.
Enfim, acho esse espaço nacional e esse
instrumento jurídico, que deve virar um decreto, algo fundamental para
pensarmos o futuro e evitarmos cometer os mesmos erros do passado,
inclusive os de Belo Monte. O tempo atual já não é mais só o de denunciar os problemas de exploração sexual e de outras violações de direitos ligados às grandes obras.
É preciso mudar as práticas e as formas de materialização dessas
políticas, e é preciso mostrar como fazer, pois não estamos simplesmente
dizendo que deve ser pensado outro modelo de desenvolvimento, o que
efetivamente seria a melhor resposta. Mas mesmo nesse modelo de
desenvolvimento hegemônico é preciso fazer diferente, aliar garantia de
direitos com crescimento econômico, e não fazer, como ainda é hoje, com
que os direitos sejam vistos como "empecilhos" ao crescimento econômico.
Hidrelétrica de Tapajós – a continuação de grandes empreendimentos
A situação do Tapajós
também envolve uma confluência simultânea de grandes empreendimentos, de
dezenas de portos, duplicação da BR-163, complexo hidrelétrico, avanço
da soja e da mineração.
Assim como Célio Bermann definiu, em um artigo científico, que Belo Monte não era só uma hidrelétrica, mas um novo paradigma para o planejamento hidrelétrico brasileiro, posso dizer que o Tapajós é um novo paradigma para o planejamento simultâneo de grandes empreendimentos.
Lá será preciso um trabalho ainda maior
para evitar os erros cometidos aqui e para garantir direitos, antes e
independente da chegada dos grandes empreendimentos. Por fim, algumas
questões ligadas às práticas empresariais devem ser colocadas, pois o
avanço na identificação dos casos de exploração sexual nos fez aproximar ainda mais do próprio consórcio empresarial que lida diretamente com a obra de Belo Monte.
Dentro desse pacto, estamos fundamentalmente colocando que o consórcio empresarial é responsável pelos impactos
que sua dinâmica empresarial conforma aos seus trabalhadores, a cadeia
produtiva e ao entorno da obra, ou seja, à área de influência da obra.
Isto nos parece muito importante de ressaltar, pois na medida em que a
pesquisa aponta uma série de questões trazidas pelos próprios
trabalhadores e trabalhadoras do empreendimento, ela também se volta, na
parte final, para rediscutir as condições de execução do
empreendimento, propondo recomendações ao CCBM e ao poder público.
Ainda assim, muito nos entristece o fato do outro consórcio empresarial, a Norte Energia, não ter avançado na proposta de alinhamento do Plano Básico Ambiental com o Plano de Ação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente - CMDCA de Altamira,
que fora iniciado em 2012, mas nunca foi concluído. E, agora, a rede de
proteção local também já está tentando buscar contato com o Consórcio Montador Belo Monte, o qual vai continuar até 2019 com a parte hidráulica da obra, para também discutir as obrigações no campo dos direitos das crianças e dos adolescentes, particularmente ligado à exploração sexual.
É preciso, fundamentalmente, fazer com
que essas empresas e consórcios empresariais não se vejam como
apoiadores da rede de proteção, como nós e eles, mas sim como parte
dessa rede de proteção, com responsabilidades advindas de preceitos
jurídicos que devem ser internalizados para garantir outras formas de
atuação que não violem os direitos de crianças e adolescentes.
“Os profissionais do Estado, sobretudo no campo policial, sabem e atuam como aliados, por vezes como clientes, desse mercado do sexo” |
IHU On-Line - Hoje, com a
finalização da obra de Belo Monte, quais são os efeitos e as
consequências geradas pela rede de exploração sexual e prostituição que
foi desenvolvida em Belo Monte?
Assis Oliveira – Acredito que o primeiro efeito tenha sido psicológico, pois colocou as crianças e os adolescentes
em dinâmicas de serviços sexuais que afetaram completamente o modo como
compreendem sua sexualidade, as relações afetivas e a projeção para o
futuro.
É preciso dizer que tais pessoas acabam
tendo uma redução de rendimento ou, mesmo, o abandono da escola, e que,
em muitos casos, isso vem acompanhado de gravidez indesejada na
adolescência, de dependência química e de violência física que leva a
uma série de riscos e de reconfiguração da vida dessas pessoas.
Um segundo efeito é em relação ao poder público,
ao Estado, e ao modo como, em vários casos que analisamos, ele foi
conivente. Os profissionais do Estado, sobretudo no campo policial,
sabem e atuam como aliados, por vezes como clientes, desse mercado do sexo.
É preciso rasgar na própria carne e
dizer que o Estado também está envolvido com a forma de produção da
exploração sexual em Altamira, e isto exige medidas de correção da
própria máquina estatal, de punição aos que se envolvem e de
qualificação dos profissionais, mas também de consideração ao
envolvimento maior do Estado para discutir suas responsabilidades para
com as omissões e as negligências ao longo desse processo.
Por último, um efeito positivo foi o da mobilização da sociedade civil e das instituições do poder público, da atuação delas dentro da Comissão Municipal e do CMDCA
e de como, ao longo desses anos da obra de Belo Monte, a discussão
sobre o abuso e a exploração sexual contra crianças e adolescentes
sempre foi uma pauta prioritária nos diversos espaços de decisão que
esta rede local atuou.
Por Patricia Fachin
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/?id=552175
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