O relato dos três anos em que Belchior viveu em um mosteiro
POR Jotabê Medeiros
Em 2009, Belchior sumiu. Foi quando o jornalista Jotabê Medeiros
deu partida à pesquisa para um livro sobre o artista. Durante anos, ele
fez dezenas de entrevistas com parceiros musicais, amigos de infância,
familiares e produtores de seus discos. Quando se preparava para viajar
para Santa Cruz do Sul – cidade próxima a Porto Alegre, onde Belchior
vivia anonimamente –, Medeiros soube da morte do cantor.
O trecho abaixo foi extraído do primeiro capítulo do livro, a ser
publicado em setembro pela editora Todavia. Trata de um período pouco
conhecido na vida de Belchior: os três anos que passou como interno no
Mosteiro de Guaramiranga, na região serrana do Ceará, durante a
adolescência. Foi ali que o artista travou seu primeiro contato com a
literatura e a filosofia e habituou-se ao silêncio e à introspecção que
marcariam sua trajetória singular até o fim da vida.
–
Mede cerca de dez centímetros de
comprimento, olhos brancos. Tem um canto anasalado, descompassado, que
começa sem melodia (tiutiu) e termina com um sibilo (tchitchuuuuu). O
macho, nessa clássica misoginia da natureza, é sempre mais vistoso,
preto nas costas, com coroa e nuca vermelho-vivas e faixa
branco-amarelada na base da cauda; há algum branco na asa, visível
principalmente durante o voo, e tem amarelo por baixo, com o peito
também tingido de vermelho. A fêmea é verde-oliva, cor mais intensa no
dorso e mais clara na barriga, levemente amarelada. O passarinho
guaramiranga (também conhecido como uirapuru-laranja, dançador-laranja,
tangará de cabeça amarela e uirapuru de cauda curta) é considerado uma
ave isolada na região, há diversos lugares onde sua espécie é mais
numerosa. Mas foi a ele que cumpriu a tarefa de nomear todo esse oásis
particular do Ceará, a Serra de Guaramiranga.
Sob o sol inclemente que encaçapa quase o Ceará inteiro, a Serra de
Guaramiranga (também conhecida como Serra de Baturité ou Maciço de
Baturité) é uma exceção climática atraente. Rodeada de cachoeiras e
matas preservadas, de noite a temperatura ali pode beirar os 15 graus, o
que faz o cearense de classe média tratar a cidadezinha de
Guaramiranga, no coração da montanha, como a sua Campos do Jordão
improvável, a sua Bariloche de estimação: há bistrôs, cafés, choperias,
spas, comida alemã de turista e sopas e fondues aculturados aqui e ali.
Além do passarinho de canto anasalado, essa terra seduziu outras
criaturas. Por conta do clima privilegiado, chegaram à região no século
17 as missões catequizadoras dos jesuítas, com o intuito de trabalhar na
conversão de índios Tapuias ou Paiacus. No século 18, o português João
Rodrigues instalou ali o primeiro ato colonizador, batizando a própria
façanha de Sítio Macapá. Entre 1777 e 1793, uma inclemente seca fez com
que fazendeiros cearenses migrassem para a serra, iniciando o cultivo do
café, cultura que se adaptou facilmente ao clima. Surgiu a capela Nossa
Senhora da Conceição, tornada matriz em 1873.
No começo dos anos 1930, desembarcou ali uma comitiva religiosa de
frades italianos lombardos liderada pelo frei Bernardino de Désio. Na
ladeira da gruta, em terreno doado, os frades construíram, em 1935, o
Mosteiro dos Capuchinhos, ou Mosteiro da Gruta, uma edificação
neoclássica cheia de estruturas arqueadas e ambientes amplos, jardins,
além de capela. Um belo pastiche gótico a 960 metros acima do nível do
mar – há também um convento jesuíta em Baturité, fora da cidade, no
início da subida da serra, a seis quilômetros da cidade.
A Ordem Menor dos Capuchinhos, que veio fincar raízes ali, já tinha
estrutura sólida no País, pois estabelecera-se no Brasil a partir de
1612, quando aqui chegaram os primeiros frades provenientes da França.
Os capuchinhos no Nordeste (sobretudo no Ceará e Piauí) vieram a partir
de 1880. A atuação no Ceará foi precedida de um constante trabalho de
grandes missionários capuchinhos no Nordeste, desde os primórdios de
1700, com Frei Carlos de La Spezia, culminando com Frei Damião de
Bozzano.
Em 18 de dezembro de 1935, começou no mosteiro a ação do estudantado
filosófico e teológico. Em 1942, por conta da participação da Itália na
Segunda Guerra Mundial, o comandante da 7a Região Militar ordenou que os
frades do seminário Nossa Senhora do Brasil, em Fortaleza, conhecido
como Messejana (bairro de Fortaleza, antigamente município de Messejana)
fossem confinados em Guaramiranga, para que os “súditos do Eixo” fossem
“afastados da Costa” brasileira. Os frades só retornariam ao Messejana
no final daquele ano.
Em 1997, terminada a construção da residência missionária, no Piauí, o
noviciado de Guaramiranga foi transferido para a nova casa. Após 56
anos, Guaramiranga deixava de ser o centro de formação dos frades
capuchinhos da província.
Atualmente, o antigo convento funciona como uma disputada pousada,
aberta tanto aos religiosos quanto aos turistas comuns. Possui 46
quartos. As antigas acomodações dos noviços foram modernizadas e
transformadas em espaços de lazer. Um frade, frei José Maria, coordena
os serviços turísticos.
Os capuchinhos cortavam o cabelo tipo “tigelinha” (o que facilitou
contatos com índios, contam historiadores), zerado para baixo um dedo
acima da orelha e com o cocuruto também raspado. Capuchinho seria um
tipo de dissidente radical – os franciscanos tinham que manter o voto de
pobreza, mas muitas vezes afrouxavam, o que gerou descontentamento. O
patrono dessa dissidência, São Félix de Cantalício, nascido em 1515, era
chamado, não por acaso, de “O Santo das ruas de Roma”. Provavelmente, o
mais famoso capuchinho que os brasileiros conheceram foi Frei Damião,
morto em 1997, e a cujo velório compareceram cerca de 300 mil pessoas.
Além de serem rebatizados, os frades capuchinhos brasileiros
costumavam carregar no novo nome o carimbo de suas origens. Frei José de
Manaus, Frei Metódio de Fortaleza, Frei Vidal da Penha, Frei Pacífico
de Baturité, Frei Daniel de Barreirinhas, Frei Fidelis de Aracatis, Frei
Tito de Milagres, Frei Martinho de Cedro, Frei Timóteo de Canindé, Frei
Bernardo de Viçosa.
Numa manhã nebulosa e melancólica de fevereiro, em pleno ano de golpe
de Estado, 1964, iniciou seus estudos em Guaramiranga uma turma de 14
noviços capuchinhos. Entre eles, destacava-se o frei Francisco Antônio
de Sobral, um rapaz de 18 anos de rosto geométrico como um cartum de
Nássara e memória prodigiosa, além de facilidade despresunçosa para
escrever. A bagagem que trouxe, em uma mala de mascate, era mínima como a
dos demais noviços: dois lençóis, duas toalhas e três mudas de roupa,
além de escova, pasta, saboneteira e sabonete. Espelho, pente e qualquer
perfume eram proibidos. Uma hora após adentrar o mosteiro, seu cabelo
foi raspado e o noviço foi enfiado num hábito rude, que a ele pareceu
subitamente confortável.
O rapaz de Sobral recebeu depois um regulamento em linguagem
rebuscada, cujas frases teve que reler continuamente para compreender.
“Lembramos aos fradinhos da proibição omnímoda de se tocarem uns aos
outros; os que não cumprirem essa regra serão punidos com o máximo rigor
e nenhuma indulgência”, dizia uma das regras.
Logo descobririam: aquele jovem de Sobral trazia outras coisas para
Guaramiranga além da bagagem exígua. Era capaz de improvisar repentes e
emboladas durante até duas horas, para alegria de sua turma. A escolha
do nome Sobral foi de um bairrismo orgulhoso, mas essa seria uma das
raras concessões de Antonio à cidade natal ao longo de toda a vida.
Além de bem-humorado, Frei Sobral era atento, disciplinado, fraterno e
cortês. Recitava capítulos inteiros da Regra de Vida (espécie de
Constituição dos capuchinhos), todo o Testamento de São Francisco,
longas passagens de Os Lusíadas, de Camões. Mostrava controlada
tendência para o rigorismo (as penitências e os jejuns impostos pela
ordem). Encarava o cilício quase com indiferença. “Na época, nós noviços
usávamos o cilício (um cinto de arames de agarração aracnídea entre o braço e o hábito)
toda sexta-feira, das 5h30 até as 7h30. Casualmente, noviços notavam
que ele continuava usando o penoso cilício “pelo resto da manhã ou mesmo
do dia”, conforme lembrou um rapaz de Quiterianópolis, cidadezinha no
centro oeste do Ceará, e que se tornaria dos seus mais constantes
colegas: Hermínio Bezerra. Apaixonado por etimologia, Hermínio estava
desde os 11 anos na vida religiosa e conhecera Frei Sobral ainda como
frequentador de cursos externos em Fortaleza, entre 1962 e 1963.
Frei Sobral tinha notabilíssimo senso de humor. Criava textos parodiando os fatos dos Fioretti de
São Francisco (“causos” religiosos misturando ficção e realidade), mas
colocando os próprios colegas noviços como personagens. Exímio
versejador, ele conseguia improvisar repentes por duas ou três horas
seguidas, em tardes de passeio. Tinha vários traços que o distinguiam,
segundo seu amigo Hermínio: inteligência, comunicação, alegria e bom
humor, e contribuía para alegrar o grupo, com repentes rimados e tiradas
cômicas. Escrevia textos com grande facilidade. Algo da produção que o
distinguiria no futuro já estava delineado ali mesmo, na vida monástica.
A vida anterior em Sobral, a fase da infância do novo frade, ao
contrário do que certos relatos biográficos contariam três décadas
depois, não era adornada com sonhos de se tornar artista, repentista ou
poeta. A cidade tinha pouco mais de 30 mil habitantes e toda a infância
do rapaz foi gasta na tranquila Rua Santo Antonio, sem prédios até hoje,
ainda mantendo suas árvores de ficus e benjamins nas praças, ainda
ecoando música de igreja dos seus templos, além de rádios
predominantemente musicais.
Em Sobral, “entroncamento de todas as estradas que levam para o
extremo norte”, as experiências não foram decisivas. Ele considerava que
ainda não tinha idade para o sexo. Mas frequentava a “zona” por conta
de um grande saxofonista que se apresentava por lá. Ou seja: ia pela
música, fugindo da severa vigilância de seu Otávio, seu pai. Descrevia o
pai como “alto, tranquilo e forte como um sertanejo. Minha mãe,
diferente, muito branca, traços afilados, o oposto do sertanejo típico.
Meus avós e bisavós tinham certa ascendência holandesa”. O avô tinha uma
bodega que vendia tecidos – cáqui Floriano, mescla, pano de saco,
farinha, fumo e “uma outra fazenda que até hoje não sei o que é,
verde-oliva”. O velho avô tocava flauta, os tios eram seresteiros e,
“naturalmente, morreram disso”, bromeou, certa vez.
A rotina no convento era dura. O noviço que quebrasse algum objeto na
cozinha se via obrigado a amarrar os cacos desse objeto num cordão,
dependurando-os no pescoço e indo até a sala do “capítulo”, geralmente
repetindo o ritual de beijar os pés dos superiores e pedindo perdão por
ter quebrado o prato. Essa penitência muitas vezes se constituía em
ficar de joelhos, até decorar determinados capítulos da Imitação de Cristo,
de Tomás de Kempis. Às sete horas da manhã os noviços assistiam à
missa. Depois, havia os cantos gregorianos e em seguida o café da manhã.
Depois disso, recolhiam-se aos seus quartos em profundo silêncio.
Um dissidente da ordem daqueles tempos descreveu a árdua rotina do
noviciado, um tipo de provação medieval. Segundo ele, quando se entra no
convento da Ordem Capuchinha é preciso entregar tudo: os pertences
pessoais, os documentos, trocar de nome e desistir da própria
personalidade. Daí em diante, o fradinho age como autômato. Não tem
vontade própria, nem lhe é permitido o direito de exprimir seus
pensamentos. Durante as refeições, não se podia falar uns com os outros.
Às sextas-feiras praticava-se jejum absoluto.
Guaramiranga, apesar da austeridade, tinha fama de colônia de férias
em meio a essa realidade. Frei Domingos Teixeira Lima, capuchinho que
estudou em Messejana de 1953 a 1957, descreveu uma realidade menos azeda
em um belo texto sobre as férias dos noviços capuchinhos.
“O que catalizava as atividades dos seminaristas durante as férias
era o passeio à praia da Jardilina. Na véspera, alguns passavam o dia
todo na cozinha com Frei Jesualdo Rios preparando sanduíches, pastéis…
Dormia-se mais cedo para se despertar a uma hora da manhã. Após breve
asseio, rezava-se em latim, fazia-se breve refeição e a gente partia.
Cada um recebia dois cocos verdes para levar. Nas sacolas alguns
conduziam sorrateiramente garrafas de gororoba – suco natural de caju
enterrado no chão que fermentava, virando vinho de caju.”
A vida monástica atraiu o inquieto Frei Sobral por conta de seu debate intelectual, introspectivo e também público.
Quando concluiu que não tinha vocação para a vida religiosa, mesmo
considerado um estudante exemplar, ele foi até o superior, Frei
Pacífico, um homem generoso, mas seco nos modos. O frade já sabia do que
se tratava, já tinham preparado seu espírito. “Você já pensou bem?”,
disse o superior. Frei Sobral respondeu, sem baixar os olhos: “Já pensei
sim, e já decidi”. Frei Pacífico se manteve imperturbável: “Pois então
pode ir!”, sentenciou. Em 14 palavras, terminava um período de três anos
no coração da Serra.
Frei Pacífico era seu diretor de estudos, a quem ele tinha a
obrigação de comunicar a decisão. Hoje, se pode sair da vida monástica
com serenidade, mas naquela época era um drama. Os orientadores, como
alguns ramos evangélicos de hoje em dia, sustentavam que aquilo era
tentação do demônio, tibieza, falta de oração. Insistiam para que os
dissidentes pensassem melhor. Isso significa que a atitude de Frei
Pacífico, embora parecesse dura, foi inusitada para a época.
Depois que saiu, por muitos anos, Frei Sobral passou a usar seu
verdadeiro sobrenome como cartão de visitas, mas colocava um acento
circunflexo na letra O. Pronunciava assim: Belchiôr. Antonio Carlos
Belchior. Ele voltaria numerosas vezes aos conventos de Fortaleza,
Sobral e Teresina para conversar com ex-colegas e sempre demonstrava a
mesma alegria e cordialidade de quando foi frade. Sempre descrevia
ideias e planos grandiosos. A última vez que viu Hermínio, em 1996 ou
1997, falou ao amigo de um grande projeto de “se isolar para traduzir,
em linguagem popular, a Divina Comédia de Dante Alighieri”.
Frei Hermínio lembra, ainda hoje, alguns motes das improvisações de
Belchior, o que lhe sugere que ele já tinha escrito, ali entre os
capuchinhos, pelo menos uma de suas principais canções, Galos, Noites e Quintais. Ou seja: Belchior gestou no claustro os versos que só gravaria em 1977, no disco Coração Selvagem, 13 anos depois.
Quando eu não tinha o olhar lacrimoso, que hoje eu trago e
tenho/ Quando adoçava meu pranto e meu sono, no bagaço de cana do
engenho/ Quando eu ganhava esse mundo de meu Deus, fazendo eu mesmo o
meu caminho, por entre as fileiras do milho verde que ondeia, com
saudade do verde marinho/ Eu era alegre como um rio, um bicho, um bando
de pardais/ Como um galo, quando havia… quando havia galos, noites e
quintais/ Mas veio o tempo negro e, à força, fez comigo o mal que a
força sempre faz/ Não sou feliz, mas não sou mudo: hoje eu canto muito
mais.
Belchior - Galos, Noites e Quintais
https://www.youtube.com/watch?v=EXYKg9Efiv0
Disponível em: http://piaui.folha.uol.com.br/o-claustro/
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