"O imaginário do armário carece de nova significação e pode ser
pensado à luz do respeito à dimensão de mistério constitutiva de cada
ser humano, dimensão a exigir minha postura ética de reverência e de
acolhida", escreve Omar Lucas Perrout Fortes de Sales, doutor em Teologia pela FAJE e doutorando em Filosofia pela UFMG.
Eis o artigo.
“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
Caetano Veloso
Caetano Veloso
Introdução
A metáfora “sair do armário”, comumente utilizada como alusão à atitude de assumir publicamente a orientação sexual não configurada dentro dos padrões heteronormativos povoa há tempos o imaginário do coletivo LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans) assim como o imaginário social acerca de tal grupo.
O presente artigo propõe a saída do armário como
movimento fruto de exercício da autonomia e da emancipação do sujeito
perante a realidade à sua volta. Ilumina positivamente o armário aqui
retratado como a morada interior constitutiva e originante da identidade
pessoal de cada ser humano.
Nesse intuito, não se fará menção à origem da expressão em jogo,
tampouco se contestará os significados a ela já atribuídos. Urge propor
abordagem humanizadora a valorizar o direito de se vivenciar e de se
partilhar a intimidade pessoal de acordo com a autonomia do sujeito
implicado.
1- Conceituação positiva do “armário nosso” de cada dia
No mundo globalizado habitado pela diversidade, a imagem evocada pela ideia da “saída do armário”
carece de outras leituras e interpretações. No presente caso, não se
trata de negar o significado já consolidado no uso corrente de tal
expressão; antes de se propor e de se afirmar positivamente o armário,
para tanto se ancorando na afirmação do exercício da autonomia do
sujeito.
O armário pessoal configura-se como “lugar” no qual se guardam coisas
novas e coisas velhas, ambas consideradas importantes para o sujeito.
Tais coisas são as lembranças, as vivências, a historicidade, as
escolhas (a autonomia enquanto a capacidade de se gerir suas escolhas e
de orientar as próprias ações), os medos, os anseios, as luzes e sombras
a desenhar o sujeito. De todos os itens citados merece particular
atenção a historicidade do sujeito. Cada pessoa é fruto de sua
historicidade, ou seja, do entorno no qual nasceu, no qual estudou, onde
despertou a consciência de ser indivíduo distinto de outros, etc. As
escolhas pessoais encontram-se condicionadas ao universo de
possibilidades existentes. Um exemplo: na década de 1980 a internet não
havia sido difundida no Brasil e desse modo, historicamente impossível
de ser acessada.
Tal armário pode ser compreendido como a morada interior de cada
pessoa, repleta de gavetas e compartimentos, alguns destes de caráter
mais público e outros de caráter mais privado, de acordo com o modo de
ser pessoal e com o quanto cada um pretende dar-se a revelar ao outro, a
partir da compreensão possuída acerca de si. Aqui reside a dimensão
relacional do armário:
1- Eu diante de minha realidade humano-existencial (minha morada interior);
2- Minha realidade humano-existencial perante o outro e os outros.
Nem sempre constitui atitude fácil o olhar para dentro de si e
visitar esse armário aqui compreendido como intimidade. O meu “armário” é
a minha intimidade. Sair do armário configura o lançar da minha
intimidade para fora desse dentro racional, psíquico, afetivo,
espiritual, cultural e histórico, caracterizados como minhas
circunstâncias. O armário remete ao oculto e ao escuro, haja vista os
armários das residências se encontrarem geralmente de portas fechadas. A
intimidade, para além da dimensão de ocultamento,
apresenta horizonte aberto de possibilidade, do vir-a-ser, da pertença e
afirmação (e ou negação) daquilo que me constitui como pessoa. Pessoa
vem do grego prósopon (máscara) recepcionado pelo latim como per-sonare
(fazer soar a melodia da vida). Assim sendo, a intimidade pessoal
congrega as melodias executadas ao longo do percurso existencial.
Ora, considerar o armário como intimidade permite a passagem de uma
imagem estática a um modo atuante de ser e de se situar perante o mundo e
também perante a construção da intimidade e da identidade.
Inclusive da identidade e da intimidade que ainda escapam à apreensão
de minha consciência. Afinal, a grande centralidade da razão apregoada
pelo racionalismo encontra um de seus limites na descoberta do
inconsciente. Não somos apenas razão e a nossa razão não nos determina
plenamente. O inconsciente pode ser considerado como a intimidade da
intimidade a saber: a intimidade ainda não devidamente acessada e
ruminada.
2- O desafio de acolher positivamente a própria intimidade
O encontro do sujeito com o seu próprio eu implica a atitude de
desnudamento de si para vir à tona o que se encontra por vezes amparado
por cortinas, máscaras, mecanismos de defesa e, paradoxalmente, de
proteção do eu interior e da intimidade constitutiva e determinante
desse eu.
Essa viagem em busca de si requer habilidade e maturidade para se
deparar com aquilo que faz com que o eu seja eu e não o outro. E muitas
vezes essa intimidade pode apresentar surpresas e realidade/condição
divergente da moralidade dominante, dos valores culturais e religiosos
normatizados pela família e pela sociedade. Impõe-se aqui o dúplice
desafio de acolher o próprio modo de ser e de abraçar até mesmo as
limitações, a finitude, a caducidade, a impermanência à qual todo ser
humano se encontra entrelaçado.
Acolher positivamente a própria intimidade, inclusive com as redes
vivenciais causadoras de temor e de angústia, exige a acuidade de se
abrir para situar-se amorosamente diante de si e abraçar generosamente
os arranjos e os rearranjos historicamente possíveis de serem tecidos
até o presente momento. Isso sem perder de vista o horizonte da
possibilidade de mudança, de aprimoramento ou de afirmação da própria
intimidade. A minha intimidade
diz respeito inalienavelmente a mim; sou responsável por minhas
escolhas e sobre estas recaem ônus e bônus gerados por minhas ações e
posicionamentos.
A acolhida da intimidade possibilita o encontro, a
familiaridade e a (re)conciliação com a morada interior enquanto
processo constante de aprofundamento de si e de contato com a riqueza
única de seu universo pessoal. Tal encontro acontece de acordo com as
condições de possibilidade de o sujeito situar-se perante si e, desse
modo, protagonizar a aventura do mergulho naquilo que se é. E, se for o
caso, acolher e abraçar o que considera o negativo da vida. Vale
ressaltar: o que é qualificado como negativo para x pode ser positivo
para y, indiferente para z, pode ser tomado como negativo hoje e
positivo amanhã, etc. Há de se assumir posicionamento receptivo diante
da existência passível de constantes mudanças.
3- O êxodo de si em direção ao outro como abertura da intimidade ao encontro de alteridades
A saída do armário deve ser pensada como disposição
do sujeito para dar-se a conhecer e como êxodo, ou seja, como movimento
de saída de si em direção ao encontro com o outro mediante o
ultrapassamento da tênue e significativa distância entre as alteridades.
De outro modo, sair do armário apresenta-se como via propícia à
instauração da revelação da intimidade pessoal e condição indispensável
ao encontro assimétrico de intimidades. Cada pessoa revela sua
intimidade em intensidades e níveis diferentes, de acordo com percursos e
vivência. A assimetria desse encontro se deve ao fato de cada eixo da
relação já possuir de antemão uma responsabilidade pelo outro.
Responsabilidade esta a anteceder a própria liberdade do sujeito. Donde
dizer não ao outro, negar a sua alteridade, constitui extermínio da
intimidade e do modo de ser alheio e, inversamente, instaura afirmação
ditatorial do meu eu.
A etimologia da categoria revelação radica-se ao termo latino revelatio,
da qual provém. Nesse contexto, apresenta duplo significado: refere-se
ao que simultaneamente se dá a conhecer e se oculta. Essa dialética de
abertura e ocultamento encontra-se garantida pelo prefixo ‘re-’ presente
nas palavras compostas e tem o sentido tanto de repetição de algo
idêntico, quanto o de passagem para situação oposta. Desse modo,
‘re-velar’ demarca o ato da passagem do oculto para o manifesto, o qual
não exclui o horizonte de uma reduplicação, de um permanecer do véu e,
até mesmo inclui o colocar do véu justamente no ato em que este parecia
já ter sido retirado.
Paradoxalmente, “sair do armário” alberga ainda uma
reserva de sentido. A revelação da intimidade pessoal pressupõe o
ocultamento de si e a preservação da morada interior não totalmente
trazida à tona, tampouco conhecida em sua totalidade. O ato de censurar o outro
por não “sair do armário” constitui violência contra a vivência da
intimidade alheia e desrespeito para com o tempo necessário ao outro
para narrar-se e revelar a sua intimidade, caso assim o queira. Claro,
existe a possibilidade de o outro optar por não revelá-la. Considerar a
não saída do armário como atitude enrustida do sujeito, sobretudo no
tangente à orientação sexual, instaura atentado à dignidade da pessoa. A
decisão de revelar a intimidade pessoal compete a cada um. E tal
revelação não se dá na mesma medida para todos os indivíduos. Pode-se
abrir a intimidade pessoal de um modo para o empregador, de outro para o
cônjuge, de outro para o colega, de outro para o amigo, de outro para a
família... Em todos os casos há de se garantir a autonomia do sujeito
perante a (im)possibilidade da revelação da intimidade. Isso não se
trata de assumir postura enrustida, mas de exercício de liberdade do
sujeito inscrever ou não a sua intimidade junto à intimidade do outro.
Anterior à curiosidade ou ao interesse pela intimidade alheia,
sobrepõe-se a exigência de ocupar-se responsavelmente pela preservação
da intimidade do outro e a da própria intimidade. Em perspectiva ampla,
intimidade não se limita à orientação sexual (ou ao seu
exercício); inclui também questões econômicas, políticas, religiosas,
de saúde, de trabalho, ideológicas e etc. Nessa extensão da compreensão
da morada interior (do “armário”), em maior ou em menor medida todos
buscam garantir o direito à privacidade e à vivência de sua intimidade.
4- Conclusão
Deliberar espontaneamente sobre a revelação/partilha da intimidade pessoal
caracteriza atitude primordial para a conquista da emancipação do
sujeito perante o risco da ditadura do outro (ser humano, instituições,
sociedade) diante do eu e perante a invasão arbitrária e violenta da
morada interior de cada ser humano. A morada alheia eticamente exige a
prática do cuidado e não de especulações ou proposições invasivas acerca
da intimidade que não me pertence.
O imaginário do armário carece de nova significação e
pode ser pensado à luz do respeito à dimensão de mistério constitutiva
de cada ser humano, dimensão a exigir minha postura ética de reverência e
de acolhida.
As portas do armário hão de se abrir de modo
distinto junto aos atores envolvidos, em tempo oportuno e de acordo com o
contexto no qual se inserem e em sintonia com o grau de confiança e de
reciprocidade das intimidades em diálogo. Como exigência ética impõe-se o
reconhecimento e a afirmação da diversidade, ou no mínimo, a atitude
humana de permitir que outro seja verdadeiramente outro e não mera
extensão ou reprodução de um modo de ser regado de pretensões
totalizantes do meu eu.
5- Referências
DICCIONARIO LATIM-PORTUGUEZ: Etymológico, prosódico e orthográfico. 12.ed. Rio de Janeiro/Lisboa: Livraria Francisco Alves/ Livraria Bertrand, s/d.DUSSEL, E. Ética comunitária. Petrópolis: Vozes, 1986.
LÉVINAS, E. Ensaios sobre a alteridade. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
FADIMAN, J.; FRAGER, R. Teorias da personalidade. São Paulo: Editora Harbra Ltda. 2002.
TERESA DE JESUS, S. Castillo interior o las moradas. Barcelona: Montaner y Simón, 1944.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/567442-a-saida-do-armario-como-possibilidade-emancipativa-de-vivencia-autonoma-da-intimidade-pessoal
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