Basta alguém questionar a posição doutrinária ou ética de algum líder religioso para que ele ou seus simpatizantes imediatamente lancem mão desta frase para se defenderem. Alguém já disse, com sabedoria, que o poder odeia a crítica, e isto é uma verdade também nas igrejas. Eu não defendendo a crítica barata, vingativa, mas, sim a construtiva, feita de acordo com a Palavra de Deus.
Essa expressão “não toqueis nos meus ungidos” aparece duas vezes na Bíblia: em 1 Crônicas 16,22 e em Salmos 105,15; ambas as referências são a respeito dos patriarcas, Abraão, Isaque e Jacó. As duas passagens não se referem a um questionamento ético ou doutrinário do líder, mas a algum perigo para a integridade física de um ungido de Deus. Observe o que aconteceu com Abraão em Gênesis 20,1-13. Estando em Gerar, mentiu ao rei Abimeleque, dizendo que Sara não era sua esposa, a fim de se proteger. Impressionado com a beleza de Sara, Abimeleque mandou buscá-la para fazê-la sua esposa. Deus, porém, avisou o rei em sonho durante a noite, dizendo-lhe que seria punido se tomasse Sara como esposa, o que o levou a desistir do seu plano. Embora Abimeleque tivesse sido proibido por Deus de tocar no profeta (Gn 20,7) e ungido do Senhor, isto é, de causar-lhe algum dano físico, Abimeleque não hesitou em repreender Abraão por ter-lhe mentido.
Davi também, quando perseguido por Saul e com oportunidade para matá-lo, limitou-se apenas em cortar-lhe a orla do manto, explicando com estas palavras o motivo de seu comportamento: “O Senhor me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, isto é, que eu estenda a mão contra ele, pois é o ungido do Senhor” (1Sm 24,6). Vemos novamente que o que estava em questão era a vida de Saul e não sua posição doutrinária, pois Saul sendo um mau rei, mas “ungido do Senhor”, Davi continuou a combatê-lo.
No Novo Testamento, a unção não é privilégio apenas de alguns, mas de todos os que estão em Cristo. Na sua primeira epístola universal, João mesmo reconheceu isso ao escrever: “E vós possuís unção que vem do Santo, e de todos tendes conhecimento” (1Jo 2,20). João acrescentou ainda: “E a unção que vós recebestes dele, fica em vós, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine; mas, como a sua unção vos ensina todas as coisas, e é verdadeira, e não é mentira, como ela vos ensinou, assim nele permanecereis” (1Jo 2,27).
É verdade que Jesus disse no Sermão do Monte: “Não julgueis, para que não sejais julgados” (Mt 7,1). Este é outro texto muito usado de forma seletiva e fora de seu contexto como escudo contra qualquer tipo de questionamento. O que Jesus está censurando nesta passagem é o julgamento hipócrita, algo que ele deixa bem claro nos versículos 3 a 5: “E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão”. Pode-se constatar que o Apóstolo Paulo tinha o cuidado de obedecer as palavras de Jesus Cristo pela sua exortação aos coríntios: “Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado” (1Co 9,27).
A Bíblia não proíbe o questionamento, pelo contrário, encoraja-o. Quando chegou a Beréia, Paulo teve seus ensinos avaliados à luz das Escrituras pelos bereanos. É interessante que os bereanos não foram censurados nem tidos como carnais porque examinaram os ensinos de Paulo, mas, sim, foram elogiados e considerados mais nobres que os de Tessalônica (At 17,11). Observe a atitude de João. Apesar de ser amoroso (como “filhinhos”, “amados”) ele não deixou de alertar seus leitores quanto aos perigos de ensinos e profetas falsos com essas palavras: “Amados, não deis fé a qualquer espírito, mas examinai se os espíritos são de Deus, porque muitos falsos profetas se levantaram no mundo” (1Jo 4,1).
Nosso Senhor Jesus Cristo recomenda claramente que nos acautelemos “quanto aos falsos profetas. Eles se aproximam de vós disfarçados de ovelhas, mas no seu íntimo são como lobos devoradores” (Mt 7,15-20) e nos pergunta “por que não julgais também por vós mesmos o que é justo?” (Lc 12,57).
Devemos aprender “a discernir o que é agradável ao Senhor” (Ef 5,10), pois se no tempo do Apóstolo e Evangelista João “muitos falsos profetas têm saído pelo mundo” (1Jo 4,1), quanto mais não será agora, nestes tempos confusos?, por isto ele insiste para “não darmos crédito a qualquer espírito, mas avaliemos com cuidado se os espíritos procedem de Deus”. Jesus Cristo diz a este mesmo Apóstolo no Apocalipse (2,2) “Conheço as tuas obras, tanto o teu trabalho árduo como a tua perseverança, e que não podes tolerar pessoas más, e que puseste à prova aqueles que a si mesmos se declaram apóstolos, mas não são, e descobriste que eram impostores”.
Não há que complicar as coisas de Deus, pois Jesus Cristo simplificou e resumiu “toda a Lei e os profetas em amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a nós mesmos” (Mt 22,20; Gl 5,14) e “quem ama cumpre toda a Lei”. São Francisco, no inicio, quando reuniu os primeiros irmãos em uma fraternidade, não tinha nenhuma regra, apenas que abriram três vezes o livro do Evangelho e leram o que estava escrito: ser pobre, ser alegre, e pregar a palavra em todos os momentos; mais tarde ele foi forçado, para “legalizar” sua obra diante do Papa, a escrever uma Regra de vida, que ele procurou e pretendeu fosse a mais simples e resumida possível.
O critério é o amor: “Amados, amemos uns aos outros, pois o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido e conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus, porquanto Deus é amor” (1Jo 4,7-8), porque "Mesmo que eu possua o dom de profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, e ainda tenha uma fé capaz de mover montanhas, se não tiver amor, nada serei" (1Cor 13,2). Ser de Deus ou ser do diabo, a medida é a justiça “Deste modo, conhecemos quem são os filhos de Deus e quem são os filhos do Diabo: quem não pratica a justiça não procede de Deus, nem tampouco aquele que não ama seu próprio irmão” (1Jo 3,10) e “a marca do cristão é o amor” (1Jo 3,10b), pois “se alguém declarar: “Eu amo a Deus!”, porém odiar a seu irmão, é mentiroso, porquanto quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não enxerga” (1Jo 4,20).
“Sem mais, irmãos, procuremos agir com maturidade, tenhamos bom ânimo, nos encoragemos mutuamente, tenhamos um só pensamento principal e vivamos em harmonia; assim o Deus de amor e paz estará convosco” (2Cor 13,11).
Para Jesus Cristo, bastava “dois ou mais estar reunidos” no Nome dele, para que ele estivesse no meio deles (Mt 18,20) e nos garantiu que se permanecêssemos nele, ele permaneceria em nós (Jo 15,4) porque o verdadeiro testemunho “através do qual todos reconhecerão que somo discípulos de Jesus Cristo é se tivermos amor uns pelos outros” (Jo 13,35). No mais são doutrinas humanas.
Simples assim.
Dom Antônio Piber, Abade
Mosteiro Domus Mariae
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