quinta-feira, 23 de julho de 2015

O BRASIL VIROU O PAÍS DO FANATISMO?

2014, CURITIBA: Segundo pesquisas, apenas 7% das pessoas que fazem parte de uma torcida organizada  participam de conflitos violentos no futebol (Foto: Heuler Andrey/ AGIF)
2014, CURITIBA: SEGUNDO PESQUISAS, APENAS 7% DAS PESSOAS QUE FAZEM 

PARTE DE UMA TORCIDA ORGANIZADA PARTICIPAM DE CONFLITOS VIOLENTOS 

NO FUTEBOL (FOTO: HEULER ANDREY/ AGIF)


As eleições presidenciais acabaram em outubro, com a legítima eleição da presidente Dilma Rousseff.
Desde o começo do ano, à medida que cada vez mais pessoas aprenderam a escrever“impeachment”, a reação dos partidários de ambos os lados ganhou contornos ainda mais radicais. Em meados de março, duas manifestações tomaram conta das ruas das principais cidades brasileiras: uma a favor do governo, e a outra, maior em número, contra. Os protestos não registraram confusões, mas foram palco de cenas preocupantes: faixas com a suástica nazista pedindo a volta da ditadura militar em plena avenida Paulista, pessoas hostilizando jornalistas ideologicamente contrários ao movimento e acusações de golpismo para quem é contra o governo.
Durante os pronunciamentos da presidente e de dois de seus ministros na televisão,milhares de pessoas saíram na janela de casa para promover um panelaço – o barulho foi tão alto que abafou qualquer possibilidade de ao menos tentar ouvir o que diziam. Nada contra manifestações, é claro. O problema é que, ao ignorar opiniões contrárias, as pessoas tendem a aderir cegamente a uma posição, doutrina ou sistema e a caminhar numa direção perigosa: a do fanatismo.
Há alguns anos a ciência tenta explicar por que, afinal, é tão fácil alinhar-se a um conjunto de pessoas que encontrou um Judas particular e culpá-lo por todo o ­caos do universo. Uma prova disso é o paradigma dos grupos mínimos, elaborado nos anos 1970 pelo psicólogo Henri Tajfel, da Universidade de Bristol, na Inglaterra. Ao serem aleatoriamente agrupados de acordo com critérios irrelevantes, como o pintor favorito, os participantes do experimento criaram forte ligação entre aqueles que dividiam a mesma turma, exaltando suas qualidades e hostilizando os rivais. Ao final do experimento, formou-se o “nós contra eles” – será que alguém aí ouviu algo parecido com isso no que ficou convencionado chamar de protestos de março?
Ainda no século 19, o pensador francês Gustave le Bon já havia atentado para o comportamento bizarro das pessoas ao se unirem em grupos, formando uma espécie de mentalidade única irracional – ou o que o escritor Nelson Rodrigues chamaria de “unanimidade burra”. Na obra Psicologia das multidões (WMF Martins Fontes), de 1895, Le Bon escreveu: “Nas grandes multidões, acumula-se a estupidez, em vez da inteligência. Na mentalidade coletiva, as aptidões intelectuais dos indivíduos e, consequentemente, suas personalidades se enfraquecem”. É como se, ao se unir aos seus pares, as pessoas deixassem de usar a razão e passassem a deixar a emoção tomar conta, tornando-se presas fáceis de manipuladores. Segundo o historiador Jaime Pinsky, autor do livro Faces do fanatismo (Contexto), o grande perigo das devoções extremas é a convicção inabalável. “A certeza da verdade do fanático não é resultante de uma reflexão ou de uma dedução intelectual”, diz o escritor.
1936, BERLIM: alemães realizam a típica saudação nazista para receber o líder adolf hitler durante os jogos olímpicos realizados na cidade (Foto: Bettmann/CORBIS)
A isso se junta o experimento do psicólogo Philip Zimbardo, da Universidade Stanford. Há mais de 40 anos, ele resolveu simular o comportamento dentro de uma prisão, atribuindo aleatoriamente o papel de “guardas” e “prisioneiros” a estudantes. No entanto, o que deveria seguir por duas semanas durou apenas seis dias. Ninguém ali era Meryl Streep, mas os participantes do estudo interpretaram tão bem seus papéis que os “guardas” se revelaram verdadeiros sádicos, humilhando e causando traumas entre os “prisioneiros”. “Em grupo somos capazes de realizar ações que individualmente não seríamos”, diz Ligia Mendonça, participante do convênio do laboratório de psicopatologia clínica e psicanálise da Universidade de Toulouse.
Além de inspirar o filme The Stanford Prison Experiment (“O experimento da prisão de Stanford”, em tradução livre), lançado em janeiro nos Estados Unidos, o estudo de Zimbardo também ajudou na formulação da teoria da identidade social, dos psicólogos John Turner e Henri Tajfel – o mesmo dos grupos mínimos. Segundo a ideia, quanto mais inserido em um conjunto, mais o participante acata seus valores. “Quando uma pessoa pertence convictamente a um grupo, ela adquire uma identida­de social: valores, objetivos, memórias etc. Essa identidade contrapõe o participante aos que não fazem parte do seu grupo”, diz o psicólogo Geraldo José de Paiva, da Universidade de São Paulo.
Seja um cicloativista que vê um inimigo em qualquer objeto de quatro rodas, um extremista religioso que não concorda com a linha editorial de um jornal francês e mata os responsáveis, um torcedor de um time que não consegue conviver com alguém vestindo a camisa do time adversário ou um fã da Apple que olha com desdém para qualquer aparelho Android, a não aceitação de ideias diferentes e a cegueira causada pela crença absoluta em “verdades reveladas” ainda insistem em aparecer nas mais diferentes esferas da sociedade, ameaçando a liberdade e o conceito básico de democracia.
2014, SÍRIA: com discurso religioso, os extremistas do Estado Islâmico tornaram-se um dos grupos mais violentos da atualidade (Foto: Medyan Dairieh/ZUMA Wire)
O TRIUNFO DA BARBÁRIE
Como explicar que a nação de Johann Wolfgang Goethe, Ludwig van Beethoven e Albert Einstein também tenha se tornado o local onde se realizou uma das maiores atrocidades da história? Para especialistas, o fenômeno nazista na Alemanha vai além da ideia de um aparente surto psicótico coletivo. “Um líder carismático como Hitler, que promete felicidade a qualquer preço, passa a ser uma figura sedutora para uma massa desacreditada que vive o desemprego, a fome e a escassez de alimentos”, afirma Ana Maria Dietrich, professora do programa de pós-graduação da Universidade Federal do ABC. “Em momentos de crise, tende-se a eleger um líder e também a escolher bodes expiatórios.”
Quando Hitler chegou ao poder, em 1933, a Alemanha passava por um momento de instabilidade política e eco­nômica: as lembranças da derrota na Primeira Guerra Mundial ainda eram muito recentes e se refletiam em diferentes problemas, como desemprego, inflação e fragilidade do sistema político. A ascensão de um líder capaz de resgatar o sentimento de orgulho alemão e conclamar a revanche pelas humilhações sofridas no conflito mundial teve alta aceitação entre as massas. Só faltava encontrar um inimigo comum e responsabilizá-lo. Spoiler para quem não viveu na Terra nos últimos 80 anos: os judeus foram os escolhidos, assim como outras minorias, como negros e homossexuais.
"Vemos o ser humano que já perdeu todos os laços de solidariedade. Isolado e sem consciência de classe ou de família, ele se torna um número na massa e é capaz de perpetrar as maiores atrocidades como quem carimba um papel"
Para dar conta das aspirações nazistas, criou-se uma verdadeira indústria da morte, comandada por homens como Adolf Eichmann, que foi capturado em Buenos Aires em 1960. No livroEichmann em Jerusalém (Companhia das Letras), a filósofa política Hannah Arendt conta a história do julgamento do oficial, e o descreve não como um “manía­co assassino”, mas como um ­burocrata a serviço do partido, que tinha obrigação de obedecer ordens. Quem disser que este é o conceito do termo “banalidade do mal”, cunhado pela autora, ganha pontos no vestibular da vida.
“Vemos o ser humano que já perdeu todos os laços de solidariedade. Isolado e sem consciência de classe ou de família, ele se torna um número na massa e é capaz de perpetrar as maiores atrocidades como quem carimba um papel”, afirma Ana Maria Dietrich. O extremismo político não respeita as contradições do jogo democrático e rejeita a ideia de saber lidar com o outro. “No caso do nazismo, a lei de que só o líder tinha razão e os judeus eram os culpados de todas as mazelas fazia que as reflexões sobre os problemas perdessem o sentido”, completa.
Apesar de parecerem historicamente distantes, algumas das premissas tota­litárias do episódio ainda não foram completamente resolvidas pela sociedade. “O argumento racional faz parte do gênero humano, e o debate entre ideias diferentes é importante para que as coisas se esclareçam”, diz Jaime Pinsky. “Mas o limiar disso está na racionalidade: quando passa a ter dogmas, você extrapola a racionalidade e se torna um fanático.” Qualquer semelhança com o extremismo de discursos entre “coxinhas” e “petralhas” observado nos últimos meses não é mera coincidência.
O racha entre militantes do PT e do PSDB teve início antes mesmo das eleições do ano passado, marcadas por discussões intermináveis nas redes sociais,  com o fim até de certas amizades. Este ano, essas discussões entre pessoas pró e contra o governo ganharam um novo palco: as ruas.
No dia 15 de março, manifestações tomaram conta de 153 cidades do Brasil. Independentemente do lado, o que se vê em alguns casos é o ódio to­mar o lugar do debate: como se gritar “Dilma vagabunda” ou desqualificar uma manifestação por causa da classe social de quem participa fosse argumento. Como lembrou o filósofo Vladimir Safatle em sua coluna do jornal Folha de S.Paulo, o discurso de conciliação não funciona na política porque é exata­mente ela que coloca as contradições à mostra. Para ele, a “rachadura” do Brasil sempre existiu, com a ajuda da concentração de renda, da disparidade regional e de preconceitos. “Essa polaridade apenas permitiu que a divisão se expressasse”, escreveu ele.
FÉ CONTRA FOGO
A psicologia ajuda a entender por que grupos como o Estado Islâmico, o Boko Haram e a Al-Qaeda são tão implacáveis com aqueles que consideram infiéis. Ao coordenar as primeiras pesquisas com homens-bomba frustrados (que não explodiram por problemas técnicos ou por terem sido pegos pela polícia), o psicólogo Ariel Merari, da Universidade de Tel-Aviv, constatou que os principais fatores que motivavam os terroristas a tirar o pino de uma granada não eram a religião nem o desejo de vingança, mas sim a vontade de ser admirado pelo grupo, compensando sua falta de habilidade social. Ou seja, corresponder às expectativas do meio é um fator mais dominante que a ideologia. “Eles eram jovens fracos e dependentes, não o tipo de pessoa ideo­lógica”, afirmou Merari a GALILEU.
Para a tristeza dos conservadores, o islamismo não detém o monopólio do fundamentalismo religioso. Em maior ou menor grau, grande parte das reli­giões já ultrapassou a linha do extremismo. Como lembra a professora Maria de Lourdes Corrêa Lima, do departamento de teologia da PUC-Rio, o conceito do fundamentalismo tem início no século 20, quando a American Bible League lançou em 12 volumes a obra The Fundamentals: a Testimony to the Truth (“Os pontos fundamentais: um testemunho para a fé”, em tradução livre). A ideia era defender os cristãos das ameaças do liberalismo e do modernismo, que iam de encontro a suas convicções. “O fundamentalismo se baseia numa visão dualista, segundo a qual tudo o que não está de acordo com o que o grupo defende é considerado mau. Não entram mais em jogo nem a reflexão nem a tolerância, mas somente a afirmação categórica de certos princípios”, explica ela.
Vale lembrar que o fanatismo religioso já despertava o interesse de filósofos, como o inglês John Locke, no século 17, quando a reforma luterana esquentou o clima na Europa.Para Locke – ele próprio um religioso –, ao povo era necessário dar as­sistência moral, e não dogmas teológicos. Ele acreditava que representantes de religiões diferentes pudessem conviver em paz, e que garantir o respeito entre opiniões divergentes ficaria a cargo do Estado. Mas, para o filósofo, até a tolerância tinha limite. Por responder a um líder estrangeiro (o papa romano), os católicos, que já haviam usado os tribunais da Inquisição para queimar desafetos na fogueira, não deveriam ser contemplados com esse benefício, assim como os ateus. “Os que negam a existência de Deus não podem ser tolerados de modo algum”, afirmava ele.
Não é preciso viajar no tempo para observar a ironia teológica. Parte da militância ligada a religiões no Brasil atravanca a ampliação de direitos indivi­duais e questões de saúde pública, como a união civil homossexual e o aborto. Não foi à toa que, no início de março, um vídeo que mostra fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus uniformizados como militares, marchando e gritando frases de efeito assustou muita gente. Por parecer, de fato, um exército, não faltaram comparações com os registros de Leni Riefenstahl da ascensão do regime fascista.
Não era para tanto. Segundo a Universal, a única atividade regular dos 4,3 mil jovens que compõem o projeto Guardiões do Altar é assistir a aulas que “estimulam o debate e a reflexão sobre aspectos do texto bíblico e do trabalho missionário”. Procurada por GALILEU, a Universal enviou um texto disponível no seu site e respondeu às perguntas solicitadas por e-mail com a pérola: “Se restarem dúvidas sobre o acima explicado [no texto], ficará claro que a pergunta não tem sentido”.
“Eles acham que vocês são uma amea­ça”, afirma Fábio Marton, autor de Ímpio: o evangelho de um ateu (Leya). Criado em um ambiente religioso, o jornalista foi pastor mirim e ajudou a exorcizar a própria mãe quando fazia parte de uma igreja pentecostal conhecida como Igreja Evangélica Exército Celestial. “Foram quatro anos de introspecção, até que notei uma coisa estranha em ser um robô de Cristo, umaautoaniquilação”, afirma. Para Marton, um ponto-chave para entender os evangélicos no Brasil é compreender sua relação com as religiões africanas. “Para os evangélicos, os orixás são demônios, eles acreditam mais nisso do que em Deus. Esse clima de batalha eles têm em comum com o fanatismo islâmico”, diz ele.
Para o psicólogo Ariel Merari, apesar de certos tipos de pessoas serem mais fáceis de influenciar do que outros, os mecanismos de convencimento usados por algumas igrejas são semelhantes aos utilizados por muçulmanos extremistas – o que muda é a influência cultural e social. “São processos psicológicos universais que resultam da pressão ou da vontade de ser apreciado pelo grupo.”
2013, JOINVILLE: no jogo entre  atlético paranaense e vasco,  as atenções deixaram o campo e se voltaram para a violência nas  arquibancadas (Foto: Pedro Kirillos/Agência O Globo)
MORTE E PAIXÃO NO CAMPO
Em 2013, Atlético Paranaense e Vasco disputavam uma partida decisiva pela última rodada do Campeonato Brasileiro. Se perdesse, a equipe carioca enfrentaria o segundo rebaixamento de sua história. Logo após o início do jogo, os olhos concentrados no campo voltaram-se para as arquibancadas. Torcedores organizados dos dois times, rivais de longa data, começaram uma briga que não conseguiu ser contida pelos seguranças da Arena Joinville. O placar final de 5 a 1 para o Atlético Paranaense foi mero detalhe frente à imagem de um pai vascaíno que protegia seu filho em meio ao combate.
Apesar de os torcedores organizados estarem associados a atos de violência, suas origens são políticas. “As primeiras organizadas surgiram na década de 1960 e foram influenciadas pelo espírito da época, como um movimento de resistência e fiscalização dentro do futebol”, afirma Felipe Lopes, que defendeu tese de doutorado no Instituto de Psicologia da USP sobre o assunto. Mas, enquanto al­gumas torcidas se organizavam como “fiscalizadoras”, o sentimento de militarização, reflexo da época, também crescia.
“Certos grupos eram organizados em ‘pelotões’, e seus dirigentes eram chamados de capitães. Essa se tornou uma face mais ligada à guerra, machista e militarizada, e a partir dos anos 1980 essas torcidas deixaram as páginas esportivas para ocupar as páginas policiais”, afirma o sociólogo Mauricio Murad, autor do livro Para entender a violência no futebol (Benvirá).
A perda da força de instituições que eram fontes de identidade, como sindicatos e partidos, explica a escalada da violência. Isso fez que as torcidas acabassem se tornando um dos poucos espaços de reconhecimento social, ainda mais entre os jovens carentes de lazer e cultura. Nesse caso, a devoção pelo time de futebol se mistura à lealdade para com a torcida organizada. “O futebol é um dos maiores patrimônios da cultura coletiva brasileira e fruto de identidade social. Quando essa paixão excede os padrões de sociabilidade, isso se torna fanatismo, deixando de existir a diferença entre adversário e inimigo”, diz Murad. Segundo o pesquisador, o Brasil é o país mais violento do mundo em relação a conflitos entre organizadas: de 2012 a 2014, 71 mortes foram registradas por aqui.
Ainda assim, apenas 7% dos torcedores que pertencem a um grupo uniformizado participam dos conflitos. “Quem rouba a bandeira de uma torcida rival, por exemplo, ganha reconhecimento”, diz Lopes. Outra explicação para a violência se deve a fatores mais racionais, como a disputa pelo poder no comando da própria organização, algo que acontece de maneira recorrente nas barras bravas, as torcidas argentinas. “Existe a venda de drogas e álcool, o apoio financeiro de dirigentes, o lucro com a revenda de ingressos... Então vemos mortes de pessoas mais velhas que estão implicadas numa disputa pelo poder”, afirma André Luiz Nery, autor de Violência no futebol: mortes de torcedores na Argentina e no Brasil (Multifoco).
Seguindo os conceitos de Le Bon, Murad destaca a ideia do sentimento de invisibilidade no meio das massas como causa da violência. “Quando vemos torcedores dizendo que vão morrer pelo seu time e quando agridem outro torcedor, vemos esse lado irracional”, diz ele. Já para Felipe Lopes, é preciso tomar cuidado ao afirmar que as manifestações violentas estão ligadas ao comportamento das massas. “Se a massa é potencialmente violenta e irracional, você legitima a repressão”, ele afirma. “Mas isso não quer dizer que a pessoa não aja de modo mais intenso quando está em grupo: é esse contágio que faz o futebol ser tão interessante de ver de dentro do estádio.”
2014, HAMBURGO: As filas dos lançamentos da apple são uma atração à parte. a euforia para adquirir os aparelhos é tanta que, na china, um jovem vendeu o rim para comprar um iphone e um iPad (Foto: Axel Heimken/DPA/ZUMA Wire)
SIMPATIA PELO CONSUMO
Proporcionais ao aumento do tamanho do iPhone são as filas de consumidores ávidos por adquirir as novidades da Apple. As aglomerações já são uma atração aguardada não só por consumidores, mas também por empreendedores do acaso, que chegam a cobrar R$ 400 por um lugar na fila. Já para viabilizar o dinheiro necessário, a China é a mais inovadora. Em 2012, um jovem chinês de 17 anos transformou em realidade uma metáfora ao vender um rim para comprar um iPhone e um iPad. É claro que a euforia pela marca não se deve somente a seu charme irresistível – o marketing eficiente também tem seus méritos.
A campanha de 2006 “I’m a Mac, I’m a PC” deixa evidente a diferença do perfil dos consumidores da companhia e aumenta o sentimento de pertencer a um grupo exclusivo. Nos anúncios, o usuário de Mac é retratado como um jovem descolado, enquanto os usuários de PC são burocratas engravatados. Num artigo para o site Live Science, Albert Muniz Jr., professor de marketing da Universidade DePaul, em Chicago, lembra que, nos anos 1980, os applemaníacos já buscavam se diferenciar. “Eles diziam que, naquela época, era evidente que o pessoal da IBM tinha um jeito: vestia terno e votava no presidente Reagan. Já o pessoal do Mac tinha outro: vestia jeans e não votava no Reagan.”
Segundo Carlos Augusto Costa, diretor do laboratório de neuromarketing da FGV Projetos, 92% dos consumidores mudam de ideia na hora das compras. O desafio das marcas, portanto, é evitar que isso aconteça. Uma das formas mais tradicionais é a associação com os trend setters, pessoas que ditam tendências. Ao vermos alguém renomado ou um ídolo usando determinada marca de desodorante, por exemplo, tendemos a querer copiar a ação. Culpa dos neurônios espelhos, que fazem que nossa percepção visual inicie um tipo de simulação interna dos atos dos outros. “Voltando um pouco às propagandas da Johnson & Johnson, por exemplo, as mães podiam não ter bebês tão bonitos como aqueles, mas poderiam fazer seus filhos usarem fraldas iguais; o mesmo raciocínio serve para as propagandas de cuecas, e assim por diante”, explica Costa.
Isso funciona bem quando temos uma relação emocional acima da média com o produtoÉ por isso que para entender o sucesso de uma marca como a Apple é preciso conhecer os mecanismos da religião. Para Costa, as marcas que causam euforia têm símbolos fortes e pessoas inspiradoras que disseminam suas filosofias, como é o caso de Jesus Cristo na Igreja católica. “Nosso cérebro também gosta de uma novela. Como Buda, Maomé e Cristo, as marcas precisam criar envolvimento”, afirma ele. Nada que o messias Steve Jobs não tenha feito durante suas pregações.
O CAMINHO DA TOLERÂNCIA
A incapacidade de compreender opi­niões diferentes é uma ameaça à democracia, mas existe uma forma de combater isso? “A liberdade deve ser sempre a maior possível, mas isso significa colocar certos limites para garantir os direitos e a integridade de outros”, afirma Ricardo Bins di Napoli, professor de filosofia da Universidade Federal de Santa Maria e especialista em temas ligados à ética política. Para que isso seja possível, é necessário construir uma cultura de tolerância que passe por todos os elementos que compõem uma sociedade. “É a capacidade de se abster de intervir na opinião do outro, mesmo que se desaprove ou se tenha o poder para calá-la, cerceá-la ou até prendê-la”, diz o professor.
A aceitação de valores diferentes é um exercício de autocrítica. Ela cria as condições necessárias para construir um diálogo positivo para o desenvolvimento de uma sociedade sem rachaduras, na qual a palavra “respeito” não seja apenas uma estampa de camiseta. Afinal, qual seria a graça do futebol se o rival fosse extinto? Conflitos nos fazem questionar e evoluir. Antes de xingar a mãe dos desafetos, talvez seja melhor iniciar um diálogo capaz de conter o maior número possível de opiniões. E isso inclui adicionar novamente aquele  amigo excluído do seu Facebook durante as eleições e os protestos de março. Mais amor e menos ódio, por favor.
GUERRA SEM FIM

A história mostra que barbaridades foram cometidas em nome de várias religiões e opções políticas
1099 - CERCO DE JERUSALÉM > Exércitos cristãos da Europa iniciaram a tomada de Jerusalém, que culminou com o massacre de muçulmanos, judeus e cristãos ortodoxos
1478 - INQUISIÇÃO ESPANHOLA > O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição foi criado para combater muçulmanos que dominavam parte da Espanha. Milhares de pessoas de outras religiões foram mortas sob a supervisão da Igreja católica
1572 - NOITE DE SÃO BARTOLOMEU > Organizados pela monarquia católica francesa, cristãos protestantes foram mortos durante a madrugada do dia 24 de agosto
1792 - TERROR JACOBINO > Mais de 17 mil opositores políticos foram guilhotinados por ordem do grupo jacobino que liderava a Revolução Francesa
1871 - O FIM DA COMUNA DE PARIS > Primeiro governo operário da história, a Comuna de Paris foi dissolvida após um massacre que resultou em prisão, tortura e morte de quase 100 mil trabalhadores
1936 - PROCESSOS DE MOSCOU > Para manter a hegemonia no Partido Comunista da União Soviética, Josef Stálin inicia a perseguição e o fuzilamento de antigos camaradas contrários a suas decisões políticas
1938 - NOITE DOS CRISTAIS > O governo nazista instaura uma política de prisão, assassinato e destruição de propriedades de judeus, sob a coordenação das tropas de assalto do exército alemão
1965 - GOLPE DE ESTADO NA INDONÉSIA > Após a tomada do poder pelo general Suharto, o Partido Comunista da Indonésia foi extinto depois do massacre de quase meio milhão de militantes
1975 - O KHMER VERMELHO > O regime comunista liderado por Pol Pot obrigou os moradores das cidades do Camboja a migrar para o campo, fazendo cerca de 1,5 milhão de vítimas 
2001 - 11 DE SETEMBRO > A organização terrorista Al-Qaeda, alegando agir em nome da religião islâmica, realiza o maior atentado da história em solo norte-americano, causando a morte de 2996 pessoas
2014 - ESTADO ISLÂMICO > Grupo fundamentalista proclama a independência de regiões da Síria e do Iraque, as quais passariam a ser regidas por sua própria interpretação da lei sagrada islâmica

COMO CRIAR UM FANÁTICO

Muitos fatores levam as pessoas a cometer atos de intolerância, mas alguns fatores ajudam a compreendê-los
1. Ao separarmos o mundo em categorias como “cristão” ou “fã da Apple”,  nos incluímos em grupos que correspondem a nossas necessidades
2. Em um coletivo, somos sugestionados a exaltar pontos que o beneficiam, ignorando as fragilidades e tudo o que vai contra suas ideias e criando assim um inimigo a ser combatido
3. Esse sentimento de conexão é aumentado pelo poder das narrativas. Nosso cérebro precisa de histórias, como a de Jesus Cristo, por exemplo, para criar relação emocional
4. Quando o grupo é uniforme, ele cria uma mentalidade coletiva, com os mesmos valores e objetivos. Sentir-se parte do grupo é o que psicólogos chamam de identidade social
5. Os que têm identidade social intensa abrem mão de outras referências, estreitando sua percepção e reforçando as emoções que os ligam ao grupo
6. Sob influência do meio (e, em muitos casos, de um líder carismático), multidões podem lutar por benefícios comuns, como direitos civis, ou por catástrofes, como a ascensão do nazismo
7. Com o devido incentivo, as pessoas são capazes de fazer em grupo coisas que não fariam sozinhas

POLÍTICA NO DNA

A partir de análises de estímulos biológicos, o norte-americano John Hibbing, coordenador do Laboratório de Fisiologia Política da Universidade de Nebraska-Lincoln, afirma que nossas opções políticas nem sempre estão relacionadas a decisões racionais.

Como essa pesquisa foi desenvolvida?
Medimos movimentos musculares, padrões cardiovasculares e estímulos cerebrais, correlacionando essas análises biológicas às opiniões de cada pessoa a respeito de um amplo número de temas políticos controversos. Indivíduos que apresentavam uma forte ativação na região cerebral da amígdala quando expostos a estímulos negativos ou nojentos tendiam a adotar posições políticas conservadoras, relacionadas a segurança e tradição.
Então é possível dizer que o cérebro pode determinar nossa visão política?
Não, “determinar” é um termo muito forte neste caso, mas os padrões de ativação cerebral estão relacionados a nossa orientação política. Temos certas predisposições inconscientes que se espreitam em nós, e geralmente elas ajudam a determinar preferências políticas particulares em temas sociais, como nossa opinião a respeito de imigração. Quando apresentávamos imagens desagradáveis, como casas pegando fogo, pessoas usando o banheiro ou um homem comendo minhocas, o estímulo na região da amígdala era maior em pessoas com opiniões conservadoras. Essas medições biológicas se corresponderam bem em relação a opiniões políticas, porém menos nas questões econômicas.
O fanatismo político é potencializado por condições predeterminadas do cérebro?
Pessoas que têm sentimentos políticos intensos possuem uma assinatura biológica diferente e identificável. Em nosso trabalho, focalizamos as diferenças entre pessoas de esquerda e de direita, mas também estamos interessados nas diferenças entre os que são politicamente apáticos e aqueles tão envolvidos que podem cometer algum tipo de violência com motivos políticos.
Disponível em:  http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2015/05/o-brasil-virou-o-pais-do-fanatismo.html

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