26 de junho de 2015 foi dia de comemoração. Após a Suprema Corte dos Estados Unidos decretar que todos os estados do país deveriam garantir o direito ao casamento civil de casais homossexuais, o mundo celebrou. Era um sinal positivo da nação mais influente do planeta de que casais, não importando a orientação, teriam os mesmos direitos pelo país afora.
Em quase todo o mundo, militantes e simpatizantes da causa LGBT comemoraram. Alguns saíram às ruas em festa. Dezenas de milhões alteraram a foto de perfil nas redes sociais em solidariedade à causa.
Ao mesmo tempo, em outros lugares, foi só mais um dia “normal”. Foi assim em Cuba.
Enquanto cidadãos de países vizinhos vestiam a bandeira do arco-íris, os cubanos simpáticos à causa tiveram que permanecer calados. Não por sua vontade, mas por imposição do governo.
Seguindo sua política centralizadora, o governo da família Castro estatizou mesmo o movimento LGBT. Ninguém, senão Mariela Castro, filha de Raúl Castro e atual diretora do Centro Nacional de Educação Sexual (CENESEX), pode organizar uma manifestação LGBT na ilha. Somente com o aval de Mariela é permitido sair às ruas em grupos vestindo a bandeira do orgulho gay.
E não é por acaso: até 1997, demonstrar publicamente apoio à homossexualidade era crime em Cuba. Apesar da lei ter sido alterada, manifestações públicas ainda hoje são muito restritas.
“A realidade para a comunidade LGBT em Cuba é bem diferente daquela descrita pela mídia internacional. Nós vivemos sob constante assédio e vigilância por parte do governo, enquanto, ao mesmo tempo, somos manipulados por suas motivações políticas”, conta o militante Ignacio Estrada, numa entrevista ao Foreign Policy.
Estrada foi classificado como dissidente em 2011, após realizar uma Parada Gay ilegal no país. O militante também comanda a Liga Cubana Contra a AIDS, uma organização que nunca recebeu reconhecimento do governo e que, portanto, atua na ilegalidade. Não é difícil perceber que Cuba não é exatamente um paraíso LGBT.
Numa reportagem publicada no último domingo, no entanto, a revista Carta Capital desafiou a realidade ao sugerir que os homossexuais brasileiros fossem para Cuba. “Se você é gay, vá para Cuba”, dizia o título da matéria.
Talvez os editores da revista são saibam, mas a homossexualidade só deixou de ser crime no país em 1979. Nessa época, países ocidentais até algumas décadas avessos aos direitos LGBT, como a Inglaterra, já haviam removido suas proibições. Nos Estados Unidos, o movimento gay já andava a passos largos e revistas direcionadas ao público gay eram uma realidade.
Mariela Castro liderando uma passeata LGBT.
A história dos direitos LGBT – ou melhor, da falta deles – na Cuba castrista começa logo após a revolução. Por volta de 1960, bastava frequentar bares e boates gays para ser catalogado e colocado sob suspeita. Não sem um propósito: boates se tornaram um ponto de encontro de opositores do regime. Mas o governo teve a infelicidade de associar a orientação sexual com a visão política.
Ao menor sinal de que o indivíduo apresentasse comportamento “contrarrevolucionário”, incluindo ser um homossexual, o governo iniciava uma perseguição. A partir de 1965, quem se enquadrasse nessas características podia também ser preso.
Nas prisões, fortemente inspiradas nos gulags soviéticos, homossexuais eram jogados ao lado de espiões, estupradores, opositores e assassinos. Através de trabalhos forçados, o governo cubano tentava reeducar os criminosos e forçar os homossexuais a se “converterem” em heterossexuais.
A orientação sexual era tida como um entrave para o avanço do socialismo. Fidel acreditava que os gays não poderiam ser “verdadeiros revolucionários”, pois sua conduta “ia contra a natureza humana”.
Mesmo com o fim da perseguição oficial, em 1979, homossexuais continuaram sendo classificados como uma subclasse da sociedade cubana. Como conta o escritor Reinaldo Arenas, que passou dois anos preso nesses campos de concentração, mesmo depois de liberto, seus livros continuaram censurados pelo governo. O novelista, que ficou famoso no exterior após ter seus livros publicados na França, foi removido da lista de escritores “oficiais” do governo e passou a não ser mais reconhecido como tal.
“Eu saí da prisão justamente no momento mais incrível de minha carreira, quando estava mais famoso no exterior. E foi nesse mesmo momento que eu me tornei uma ‘não-pessoa’. Eu não tinha nem um quarto, nem sequer uma máquina de escrever, vivia como um mendigo, cada noite dormindo na casa de um amigo. E as pessoas que perguntavam por mim recebiam a resposta de que eu não existia, eu me tornei um personagem de George Orwell, uma não-pessoa.”
Hoje, mais de três décadas após o fim da política discriminatória de Cuba, a situação dos homossexuais no país continua longe do ideal. A burocracia aparelhou até mesmo a livre manifestação dessas minorias. O governo não reconhece nenhuma comemoração internacional de direitos LGBT além do Dia Internacional Contra a Homofobia, celebrado 17 de maio. Fora dessa data, raramente alguma manifestação é permitida.
Outro militante que recentemente conquistou a antipatia do governo é Mario Jose Delgado, que comanda uma organização LGBT, a Divina Esperança.
Em novembro, Delgado foi sequestrado por três homens que o levaram para uma área deserta de Havana. Lá, foi agredido com socos e pedradas.
Mas não se engane: os sequestradores não queriam dinheiro ou jóias. Eles estavam interessados em documentos que Delgado carregava em um pendrive, nos contatos de seu celular e em alguns livros que carregava. O militante acusa forças do governo pelo crime.
O homossexual Mario Jose Delgado, que acusa forças do governo cubano de o terem espancado.
Como, então, um país onde a discriminação é suportada pelas autoridades pode figurar tão bem num ranking de tolerância? Para Delgado, por conta da propaganda internacional de Mariela.
Mariela já participou de fóruns internacionais sobre sexualidade nos Estados Unidos e no Canadá, sempre levando a imagem de uma Cuba tolerante e que respeita a diversidade. Numa dessas ocasiões, em 2013, recebeu dois prêmios por sua atuação em defesa dos LGBTs. Delgado, no entanto, discorda:
“[As premiações] não refletem o sentimento da comunidade gay da ilha.”
Wendy Iriepa, parceira de Ignacio Estrada, concorda com a posição de Delgado. Wendy foi a primeira pessoa a receber uma cirurgia de mudança de sexo na ilha, em 2007. O sucesso da cirurgia virou uma grande propaganda para Mariela, que utilizou-se da experiência para promover-se politicamente e ganhar atenção para a legalização do procedimento na rede de saúde, aprovada um ano depois.
Após Mariela tomar conhecimento sobre a militância de Ignacio Estrada, porém, começou a confrontar Wendy: “como você pode viver, na mesma cama e na mesma casa de um inimigo da revolução?”, questionou.
Após o assédio, Wendy pediu demissão de seu emprego na CENESEX.
“Mariela é um camaleão; ela pode mudar seu temperamento facilmente. Ela é bem sociável com as pessoas que trabalham com ela, mas nunca faz nada sem esperar algo em troca”, completa Estrada.
Mariela Castro na Parada Gay de Hamburgo, na Alemanha.
Apesar do forte ativismo, Mariela resiste em admitir que o país um dia tenha perseguido e aprisionado homossexuais, transsexuais e travestis.
Numa entrevista em 2012, ao ser questionada sobre os “campos de concentração para gays” existentes durante a década de 1960 na ilha, a principal militante LGBT do país se esquivou, afirmando que se tratavam apenas de “campos de treinamento”.
Para alguns, a resposta dos bons índices de Cuba é a desigualdade, que persiste no país, apesar da propaganda do governo afirmar o contrário. Como o acesso à internet, que tem uma das menores taxas de usuários da América Latina, é restrito a uma pequena elite de funcionários públicos e estudantes, não é de se espantar que o país figure numa boa posição no Gay Happiness Index (GHI), usado como argumento central pela revista Carta Capital para aconselhar os gays brasileiros a se mudarem para Cuba.
A pesquisa foi realizada com os usuários do fórum Planet Romeo, voltado para o público gay masculino. Apenas 166 cubanos participaram da pesquisa, o que reforça a segregação do perfil dos usuários de internet do país.
Alguns membros dessa elite, como Mariela, vivem numa Cuba utópica, tolerante, que nunca perseguiu gays. O restante da população, no entanto, vive às margens da sociedade, na Cuba real. É o caso de Ignacio Estrada, de Wendy Iriepa e de Mario Jose Delgado que, sem dinheiro e após ter seu único celular levado, agora pede doações para poder comprar um novo. Como já diz um provérbio cubano, “cada um irá falar da feira a partir de como chegou lá”.
Não, Carta Capital, Cuba definitivamente não é um paraíso para os gays.
Disponível em: http://spotniks.com/nao-carta-capital-cuba-nao-e-um-paraiso-para-os-gays/
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