O Estado laico brasileiro encontra-se sob ameaça de grupos fundamentalistas que iludem o povo com seus discursos mentirosos e de ódio. Os radicais religiosos dizem que lutam pela liberdade religiosa e pela cidadania, mas na verdade querem instalar um Estado teocrático, ou seja, uma ditadura tipo Irã, para impor a toda a sociedade seus padrões morais e de comportamento. É puro fascismo religioso!
Rev. Carlos Eduardo Calvani
Campo Grande não merecia, na comemoração dos seus 114 anos de emancipação, o desprazer de assistir a tal “Marcha para Jesus” organizada por pastores-políticos e políticos-pastores reunindo cerca de quarenta mil fanáticos para ouvir o “mais do mesmo” – as bobagens retrógradas de Silas Malafaia, Robson Rodovalho e outros. E o pior é que insistem em me enviar convites para que nossa Igreja participe dessas idiotices.
Que vergonha imaginar que no Brasil, entre os anos 40 e 60, o termo “evangélico” designava cristãos que optavam por viver sua fé fora da Igreja Católica Romana, pautando-se pelos princípios da Reforma Protestante do século XVI. Naquela época a palavra “pastor” impunha autoridade e respeito até mesmo entre os católicos-romanos. Pastor era símbolo de alguém honesto, sábio, conhecedor das Escrituras e capaz de dialogar em ambientes universitários. Sim, as igrejas evangélicas eram conservadoras, mas não eram fanáticas. Não se viam pastores pulando e esbravejando nos púlpitos; os cultos sóbrios não eram “shows da fé”; ninguém ousava cobrar prosperidade material de Deus, mas entendia que o estudo, o trabalho honesto, a moderação nos gastos e a liberalidade trariam consequentemente melhorias na vida familiar e financeira.
Nos anos 70, as igrejas protestantes sérias, preocupadas com seu baixo crescimento quantitativo, começaram a abrir a guarda para os pentecostais. Esperavam que todo aquele ânimo revertesse em crescimento. Os pastores que não aceitavam o ridículo pentecostal eram chamados “tradicionalistas”. Mas eles estavam certos. O movimento pentecostal das classes mais pobres e o carismatismo reacionário da classe-média só trouxeram prejuízos para as Igrejas Protestantes.O zelo pela educação teológica foi deixado de lado; afinal, era preciso “pegar leve” com os coitadinhos que não conseguiam estudar teologia, línguas bíblicas, liturgia, etc… As Igrejas Protestantes chocaram ovos de serpente em seu meio; criaram cobras e agora não sabem como deter sua proliferação. Todas as iniciativas institucionais para criar um mínimo de ordem através da antiga Confederação Evangélica Brasileira ou AEvB (Aliança Evangélica Brasileira) foram tomadas de assaltos pelas hordas e legiões fanáticas, capitaneadas por pastores poderosos. Os resultados visíveis foram os múltiplos cismas e divisões dentro das igrejas históricas e a constante subdivisão de igrejolas de porta-de-esquina. O único consolo é saber que, como todos eles amam o poder, acabarão se matando uns aos outros em seus próprios ninhos de serpente.
Hoje as palavras “evangélico” e “pastor” designam exatamente o oposto – ambição desenfreada; uso abusivo do nome de Deus em vão; mantras ridículos repetidos exaustivamente e atribuídos ao Espírito Santo; constantes reportagens na mídia sobre pastores fraudulentos que exploram a boa-fé das pessoas mais humildes ou que se aproveitam da ignorância da classe-média depressiva e consumista. É certo que nem todos os evangélicos são assim, a ponto de os protestantes “tradicionais” atualmente evitem usar o termo “evangélico” por vergonha de se identificarem com os que se apoderaram desse termo. Os evangélicos de hoje não são propriamente evangélicos. São religiosos ávidos pelo poder na sociedade. E esse pentecostalismo fanático nada tem a ver com os princípios da Reforma Protestante.
Após terem se infiltrado em várias igrejas, tentam também se infiltrar na Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. São acolhidos em nossas paróquias mas não querem mudar seus princípios. Ao contrário – querem mudar a Igreja que os acolheu. Reclamam do Livro de Oração Comum; reclamam da Liturgia; reclamam dos hinos; reclamam do ministério episcopal; menosprezam os sacramentos; desdenham da educação teológica séria; criticam os valores éticos que defendemos; ironizam e fazem piadas de nossos irmãos e irmãs gays e lésbicas, passam por cima dos cânones alegando que o que importa é o “Espírito” e não a letra… e nem sempre encontram autoridades dispostas a colocá-los em seu lugar.
Não tenho dúvidas: Os ramos carismáticos e pentecostais só contribuem para abaixar o nível do ministério anglicano no Brasil.
O fundamentalismo evangélico hoje é um dos maiores perigos para a sociedade brasileira e o Estado Laico. Malafaia, Feliciano, Rodovalho, Macedo, R.R. Soares e outros nomes menores que estão despontando (e outros que ainda despontarão) são a pior espécie de fanatismo religioso possível. Alguém em são consciência e com um mínimo de instrução ou sensibilidade consegue acreditar neles e em seus discursos?
Em 1994 quando organizaram a primeira “marcha para Jesus” na cidade de Londrina (PR), escrevi um artigo no jornal da cidade dizendo que aquela manifestação era sociologicamente igual às “paradas gays” – expressão de um grupo que queria visibilidade. Na época eu lecionava em um Seminário Evangélico. No mesmo dia em que o artigo foi publicado, os organizadores foram lá, exigir minha demissão. Um deles era um presbítero que injetava dinheiro na denominação e posteriormente foi preso várias vezes por contrabando e envolvimento em cartel de postos de gasolina; o outro era médico, e no ano seguinte foi cassado no CRM do Paraná por praticar atos libidinosos em suas pacientes. Mas estavam lá, liderando a “marcha para Jesus”. Alguns anos depois encontrei esse presbítero em um vôo e, dentro do avião enquanto arrumava minha bagagem, ele perguntou: “você não é o Calvani? o que está fazendo aqui em Londrina?”; falava como se ele fosse o “dono da cidade”. Respondi secamente: “eu nunca tive meu direito de ir-e-vir impedido, quanto a você, eu é que gostaria de saber o que você está fazendo fora da cadeia que é seu lugar”.
Portanto, esqueçam qualquer possibilidade de contra-argumentação razoável. Eles não entendem o significado das palavras “dialética’, “princípio do contraditório”, “direito à liberdade de opinião”. Eles sempre tentarão calar todos que não concordam com eles. Afinal, “Deus” fala com eles diretamente.
Ricardo Quadros Gouvêa, outro grande teólogo publicou tempos atrás o excelente livro “O Anticristo” (estudo exegético, histórico e teológico sério e criterioso com profundas implicações práticas em relação a tudo isso que escrevi acima).
O grupo “Triângulo Rosa” divulgou outro excelente texto na época da polêmica “Feliciano” (http://ciatriangulorosa.info/?p=329 ), o CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs) já se pronunciou, juntamente com outros movimentos cristãos… parece que de nada adianta. Os evangélicos não lêem. Se lêem, não entendem. .
Não nos iludamos. Os evangélicos têm um projeto de tomada de poder na sociedade brasileira. Os evangélicos têm um projeto político muito perigoso para o Brasil. O fundamentalismo que os anima é, em todas as sociedades, a base de qualquer totalitarismo e ameaça às liberdades democráticas. Utilizam as Escrituras Sagradas do modo como lhes convém, para interferir na Comissão de Direitos Humanos, para propor ou alterar leis e infringir descaradamente as cláusulas pétreas da Constituição Federal. Eles se infiltram nos partidos e conseguem ser eleitos para cargos no executivo e no legislativo. Mas eles não têm fidelidade partidária nem princípios sociais claros. São mesquinhos e egoístas. Seus princípios são os da promiscuidade “igreja-estado”. No fundo, o que desejam é acabar com as manifestações religiosas com as quais não compartilham, sejam elas católico-romanas, espíritas, do candomblé, umbanda ou de qualquer outra religião que não a deles; desejam interferir na orientação sexual privada das pessoas “em nome de Deus”; fazem acusações levianas de que o movimento LGBT deseja acabar com as famílias; querem dominar o Ensino Religioso nas Escolas Públicas e, se conseguirem tomar o poder, não hesitarão em se infiltrar nas forças armadas utilizando o potencial bélico brasileiro para seus objetivos.
Sim, matarão se for preciso, invocando textos bíblicos; sim, destruirão o “Cristo Redentor” e qualquer outro monumento de outra religião; sim, se tiverem pleno poder proibirão o carnaval, festas juninas, romarias marianas, folias-de-reis, terreiros de candomblé e exigirão conversão forçada a seu modelo de vida e à sua religião; te tratarão bem e prometerão “prosperidade”, “cura”, “restauração”, mas no fundo se interessam é pelo seu dinheiro; o fundamentalismo que os inflama não terá qualquer restrição em proibir shows populares, biquínis nas praias e utilizarão armas químicas para fazer valer seus ideais. Viveremos um “talibã evangélico”, com homens com o mesmo olhar raivoso de malafaia, e gays internados em campos de concentração para que sejam “curados”.
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